A França votou claramente não no referendo sobre o Tratado Constitucional da UE, num referendo extremamente participado, e depois de um amplo debate, propulsionado por metade dos socialistas, pelo PCF, pelos altermundialistas, pela extrema-esquerda trotskysta e certos anarquistas e ecologistas, pelas associações cidadãs, por meios sindicais, pela Confédération Paysanne, pelos blogueiros mais activos.
(Misturou-se neste não uma franja de extrema-direita, que, sinceramente, creio não ter contribuído significativamente para o movimento de fundo. Pelo contrário, pela primeira vez desde há muitos anos, a extrema-direita apareceu coxa, sem conseguir determinar a discussão, a tentar aproveitar uma dinâmica que não era a dela. O que fez a diferença nesta discussão foi o debate em inúmeras assembleias, nas ruas, nos cafés, debates em que os partidários duma Europa social imperaram.)
Repare-se que este «não» extremamente participado se fez contra a quase unanimidade dos órgãos de comunicação social - televisões, jornais, revistas -, dos intelectuais mediáticos, dos políticos europeus dominantes, contra, inclusive, as brochuras distribuídas aos milhões pelo Governo e a Comissão Europeia. Nele surgiram vedetas improváveis, como, por exemplo, um professor do liceu, de direito e informática, Etienne Chouard, praticante de parapente, que, na sua página web pessoal, fez uma crítica pormenorizada, corrigida quase diariamente pelos seus leitores, ao Tratado Constitucional. A campanha do não foi feita à custa de meios artesanais e derrotou a poderosa máquina propagandística a favor do sim.
Será que estou contente? Sim e não. Estou contente porque a sociedade que almejo precisa desta participação, desta intervenção de todos e cada um, dos que não valem nada mas sabem que valem alguma coisa. Sem isso nada feito.
Mas estou apreensivo, porque agora é que a porca torce o rabo. É que o «não» a este Tratado Constitucional deixa muitas incógnitas. O «não» foi um «já chega» geral a trinta anos de políticas neo-liberais que Valéry Giscard d'Estaing, presidente da Convenção que elaborou o Tratado, imprudentemente, quis consignar numa Constituição.
Ora, trata-se de mais de trinta anos de política económica europeia: isto é, o que anteriormente aparecia como uma série de medidas descosidas, por magia de VGE, surgiu agora congregado, cristalizado num Tratado que se queria Constituição. E, caída a escama, como diz a Bíblia, os cidadãos disseram «chega».
Só que não é fácil encontrar uma resposta, e o campo do «não» encontra-se agora em posição delicada.
Há duas saídas, uma maximalista, outra minimalista. A maximalista, seria impulsionar um movimento dos povos europeus para convocar uma Assembleia Constituinte europeia, com um debate a nível europeu sobre o que queremos, todos nós europeus, como regime constitucional.
Outra minimalista, seria os Governos se deixarem de coisas, e reformularem o texto, simplificando-o (como pedia, aliás, o Conselho de Laeken), limitando-o (digo eu agora) ao funcionamento das instituições. Dessa forma, deixavam de lado a parte III (que consigna, num texto constitucional, políticas económicas que deveriam ser deixadas aos governos eleitos e que variam enormemente).
Isto são as duas opções extremas. Mas há inúmeras hipóteses intermédias, as piores das quais seriam novas negociações de corredor, toma lá dá cá, a que ninguém tem acesso real, a não ser os implicados directos (especialistas da coisa).
Bem, não chateio mais, que já ocupei demasiado tempo de antena.
[Tenho consciência do esquematismo deste post, mas deixo-o esquemático, porque uma análise de fundo exigiria extensão que não cabe nem nas minhas disponibilidades nem no estilo blogueiro.]
Em tempo. Como acaba de me escrever um caro amigo por mail, "foi simplesmente a primeira vez em que num grande país da UE a discussão sobre a UE chegou à rua, atravessando todos os sectores da sociedade". Por favor, comentadores, não falseiem a democracia, que é ainda, que eu saiba, o governo do povo, pelo povo, para o povo. Ou será que querem eleger outro povo, como dizia o Brecht, criticando os estalinistas, depois das revoltas operárias de Berlim em 1953, que levaram à construção do muro?