31.8.04

Post It #190



Crónica do nosso enviado especial à Convenção Republicana.
Um exclusivo Quartzo, Feldspato & Mica/ USA Today.

Post Scriptum #341



Vasant Abaji Dahake
(Índia, n. 1942)


TARDE

Esta é uma tarde completa:
mil cacos de solidão.
Eu conto
eu comparo
eu formo
eu junto.
Estas são as minhas mãos nuas
numa mesa nua e triste.
Tento fixar este instante,
este fragmento de tempo, dissecá-lo completamente.
Tenho os olhos bem abertos.
Sinto o áspero e louco toque
da solidão.
Um sol branco, solitário e enlouquecido
está suspenso
no céu branco.

Tradução de Pedro Amaral, a partir da versão inglesa de Ranjit Hoskote, disponível aqui.

Umbigo #67

Outro curioso hábito do blogger é o seu costume, logo que chega de manhã, de afiar minuciosamente as teclas, uma após outra. Por mais tarefas que tenha em mãos, o blogger afia primeiro as teclas do computador. O seu argumento é que, se adiar essa importante tarefa, as teclas nunca serão afiadas. E, na ideia do blogger, inscrever os seus caracteres numa delicada, legível e ornamentada caligrafia é uma questão da maior importância. Em relação a todos os outros aspectos, porém, o blogger é um irresponsável, um valdevinos.

Ilha dos Amores #76


Leon Nikolayevich Bakst, Souper, 1902.

30.8.04

Post Perlimpimpim #5

De certa maneira, detesto blogues, ou, por outra, detesto blogues de certa maneira. São máquinas de narcisismo e tendencialmente impedem uma discussão, não digo serena, mas digo equipotente.

Vem isto a propósito de uma reacção do anjo élico a um post meu. Podem ver a sua reacção, bem como as minhas reacções à reacção dele, na caixa de comentários do post. Ora bem, não acho que tenha ido bem nas reacções. Muito loquaz no post, seco e lacónico e áspero nos comentários, abusando da posição dominante!

Não é que eu abdique do que disse. Não. É que não nos situamos ao mesmo nível. Ele insinuava, se bem o interpretei, que a gasolina em Portugal é mais cara do que em Espanha. Eu estava a falar de coisas a mais longo prazo.

Mas sempre quero dizer que, a curto prazo, ele deve ter razão (não conferi, mas acredito): em Portugal, a gasolina é mais cara do que em Espanha, e isto será verdade sobretudo desde a liberalização, como pode ser visto na manchete do Jornal de Notícias de hoje. Bonito serviço, caros economistas dominantes; a vossa treta é isso mesmo, treta: os preços do mercado "livre" não são sempre favoráveis ao consumidor.

Quanto mais livre o mercado, pior para nós, portugueses. São destes paradoxos: as consultas médicas são mais caras em Portugal do que na Bélgica, como eu já disse. Os preços dos produtos de primeira necessidade, parece que também são mais elevados do que na média dos outros países europeus. Os salários são mais baixos (Estas coisas ouvi eu dizer ao professor Rebelo de Sousa, ontem na TVI, e acho que ele não levará tão longe o seu gosto da manipulação). E pronto, mais nada! A gasolina segue o mesmo padrão.

Ora eu continuo a dizer: não vejo país da Europa Ocidental mais americano do que Portugal. Basta ver os/as apresentadores/as de televisão (esta é baixa, mas estou com pressa).

Bem, uma coisa é isso. Outra coisa é o andamento geral da nossa sociedade mundial. E aí, sejam quais forem os ajustamentos circunstanciais, a verdade é só uma (puxa, mas que raio, lá estou eu... até pareço o Salazar e o SNI): o petróleo demasiado barato ajudou a configurar uma sociedade orientada para soluções insustentáveis (o lucro é mais cego do que o amor) e vamos pagar caro isso.

O Povo é Sereno #147


Cartoon de Emek.

Post Scriptum #340

Contaram-me que estavas apaixonada por outro/ e então fui para o meu quarto/ e escrevi um artigo contra o governo/ razão pela qual estou preso.

Ernesto Cardenal.

Ó VÓS QUE ENTRAIS, NÃO PERCAIS TODA A ESPERANÇA.

Post Scriptum #339



André Breton
(França, 1896-1966)

"Há homens que sonham, que pensam e amam em simultâneo. Homens que falam - e a sua palavra é uma escrita indelével no espaço e no tempo. Homens que olham - e o seu olhar revela o mundo. Homens que escrevem - e os seus livros são os actos, os acontecimentos e a respiração da História (...). Homens que conhecem a amizade, a paixão, a cólera, a solidão e que não separam nunca os seus sentimentos das suas ideias, a teoria da prática (...). A esses homens a sociedade usa chamar poetas - e por vezes consente-lhes que actuem como tal..."

Alain Jouffroy, do prefácio a "Luz da Terra"


POEMA

Tenho na minha frente a fada de sal
cuja túnica recamada de cordeiros
desce até ao mar
Cujo véu pregueado
de queda em queda ilumina toda a montanha.

Ela brilha ao sol como um lustro de água iridiscente
E os pequenos oleiros da noite serviram-se das suas
unhas onde a lua não se reflecte
para moldar o serviço de café da beladona.

O tempo enrodilha-se miraculosamente detrás dos seus
sapatos de estrelas de neve
ao longo dum rasto perdido nas carícias
de dois arminhos.

Os perigos anteriores foram ricamente repartidos
e mal extintos os carvões no abrunheiro bravo das sebes
pela serpente coral que sem custo passa
por um delgado
filete de sangue seco
na lareira profunda
sempre sempre esplendidamente negra
Esta lareira onde aprendi a ver
e sobre a qual dança sem cessar
o crepe das costas das primaveras
Aquele que é necessário lançar muito alto para dourar
a mulher em cujos cabelos encontro
o sabor que perdera
O crepe mágico o sinete voador
do amor que é nosso.

in "Luz da Terra".


Tradução de Nicolau Saião.

Post It #188

Um saco de lixo que fazia parte de uma obra de arte no museu Tate Britain, em Londres, foi jogado fora, acidentalmente, por uma faxineira.

Mais pormenores sobre esta falta de respeito, aqui.

[Via Jornada]

28.8.04

O Povo É Sereno #146

Esta semana, no mítico IP5, (mítico sobretudo para nós, camionistas e emigreses), operação caracol.

Os primeiros da nossa espécie (isto é, os camionistas) protestam e querem que o Governo baixe os impostos dos combustíveis.

A minha alma (a parva) balança:

1) Gostaria que o Lopes Santana caísse com grande estrondo, batendo, com aqueles gestos presuntuosos, no princípio da realidade;

2) Gostaria ainda mais que a malta acordasse.

Porquê? - pergunta o ansioso leitor. Por muito simples:

porque baixar os impostos dos combustíveis é, com sua licença e do Edgar Correia, querer tapar o sol com a peneira. Penso sempre naqueles holandeses que vão sobreelevar os diques durante alguns anos desesperadamente e debalde (pois de balde) para tentarem conter a inexorável ascensão das águas (sempre quero saber onde os vão alojar, aos holandeses, os nobres europeus seus vizinhos).

Puxa, parece que estou a gozar, mas não estou. Estamos a mudar de época. O petróleo está caro e vai ficar caro.

O capitalismo em geral e os neo-liberais em particular tentaram e continuam a tentar convencer-nos de que a melhor maneira de lutar contra a pobreza é dar aos ricos a possibilidade de investirem, para que eles criem novos empregos, e etc., isto é, o produtivismo incessante, não vou estender-me sobre o assunto. Dizem eles em resumo: "na maré alta, todos os barcos sobem".

Só que, tal como o capitalismo configura o aumento da produtividade (em função do lucro privado), o crescimento exponencial do PIB (coisa impossível de conseguir num mundo finito), temos assegurado o esgotamento dos recursos para assegurar um rendimento razoável para os nossos predadores (já repararam como a figura do predador invade os nossos cérebros como explicação universal?)?

Pronto, pronto, já me estendi e já me embrulhei, mas é assim: eu tenho, faz de conta, 20 mil milhões de dólares e exijo um "razoável" retorno sobre o investimento de 5% (por amor de Deus, não é muito...); já viram quanto "eu" quero, em valor absoluto, daqui a 10 anos? Mas é isso que "eu" exijo da sociedade para continuar a investir, senão, não vale a pena. "Eu" sou o empresário e o lucro é o salário do meu trabalho, puxa! Não sejamos miserabilistas!

Poetas, engenheiros, cientistas, operários, e outra gente menor, que são? Especialistas nos seus domínios! Simples técnicos! "Eu" sou o empresário, aquele que domina os arcanos da nossa sociedade, quase deus, tenho estátua do José Rodrigues, puxa! Até a arte eu compro! Sou eu quem detém os direitos de propriedade material ou intelectual. Preciso de pensar? Contrato um pensador.

Alto aí, diz o leitor, e com razão. Começámos no IP5 e já vamos na propriedade intelectual? Pronto, desculpem, pronto... Então, bamos lá pra Biseu, porra e para o IP5 outra vez.

É mito dos economistas (bem, dos economistas dominantes, dos economistas que nos dominam, simples psitacistas da realidade realmente existente, não dos grandes teóricos, Ricardo, Marx, Keynes) que o mercado e os preços do mercado organizam por si optimamente a sociedade, mesmo contra a vontade dos humanos que realmente (sobre)vivem. Ora, pergunto eu: qual o verdadeiro preço do petróleo? Os 10-20 dólares que duraram nos anos 80-90? Os 40 dólares de hoje?

É óbvio que algum desses preços tem de ser mentira. Dir-me-ão: pois, o cartel da OPEP distorce o mercado. Só posso dizer uma coisa: o cartel da OPEP (por interesses próprios, não o nego, e que não são os meus interesses) tentou precisamente estabilizar os preços, que, nos mercados, flutuam em função das expectativas especulativas... E a verdade é que, durante os anos 80 e 90, quando o tal cartel era mais fraco, o petróleo estava a preços que não reflectem a sua escassez. Muito simples: o petróleo não se fabrica, o petróleo é escasso, o petróleo vai acabar, dentro de algumas dezenas de anos. Os poços que existem começam a esgotar-se e a seguir virá a exploração de poços cada vez mais exóticos.

Ora, e aqui é que bate o ponto: é racional uma sociedade que, à custa de petróleo demasiado barato, se organizou em torno do "just in time", do outsourcing, da deslocalização e do poder imenso da grande distribuição? Quero eu dizer, cada empresa se dedica apenas ao que sabe melhor fazer e encomenda tudo o resto a empresas de fora, as quais correm com os seus camiões a fornecer-lhe no tempo preciso aquilo de que ela precisa?

A nível mundial, é lógico que aviões pressurosos levem a Paris o peixe fresco de África onde o aguarda uma frota imensa de camiões que espalha tal preciosa mercadoria pelos estômagos dietéticos dos consumidores preocupados com a sua linha estragada pelos excessos da carne?

É lógico que os EUA sobrevivam comprando cada vez mais fora e vendendo promessas de pagamento, simples papéis, aos seus fornecedores?

E, pior do que tudo, a nossa grande revolução tecnológica dos últimos anos, que foi ela? A compressão de custos na distribuição, nem mais. As palermices das dotcom que vinham assegurar um maravilhoso mundo novo, reduziram-se a uma coisa muito simples: falhadas a maior parte das dotcom que iam trazer legumes e pizzas mais baratos a nossa casa, ficaram as centrais de compras das grandes empresas e das grandes cadeias comerciais que procuram (por quanto tempo, Catilina) espremer ao máximo os seus fornecedores: elas são os "consumidores" que venceram na Internet. Não me vou imiscuir na terrível guerra das coisas do espírito (venda de livros, ou piratagem de discos) que por aí lavra, pois, na minha modesta opinião, é coisa de somenos.

Ora, reparem: as grandes cadeias de distribuição organizaram as nossas cidades em função do petróleo barato. Parabéns, estimados ouvintes: estais preocupados com como pagar as reformas? Pois sempre quero saber quem vai pagar as vossas auto-estradas, as reparações das vossas pontes, as belas rotundas, as máquinas que regularmente limpam as simples e modestas estradas municipais para que possamos vislumbrar os sinais de trânsito.

E as férias nas Caraíbas? Petróleo barato. E a loucura imobiliária do Algarve? Petróleo barato. E o festival do Sudoeste? Petróleo barato. Eh pá, quando há tanta coisa maravilhosa à nossa volta: por exemplo, dois olhos que podem reflectir tudo o que há no mundo próximo e longínquo. Basta ter olhos de ver e de sentir.


27.8.04

Post Moderno #1

Estou aqui a traduzir a "Santa Joana dos Matadouros" de Bertolt Brecht, com a RTP a passar em fundo "A Menina da Rádio".

Distraidamente, vejo uma cena em que António Silva explica ao merceeiro, ao cangalheiro e a outros eiros do bairro, que são contra os modernismos, quão fino é fazer publicidade na rádio e quanto isso vai favorecer os seus deles negócios. Agradeço ao teletexto para os surdos, porque tenho o som cortado.

Que grande parábola involuntária, este filme de Arthur (isso mesmo com antiquado "h") Duarte!

Foram os surrealistas que mostraram como o que se quer muito moderno rapidamente se antiqua (daí um certo charme involuntário), e como o antigo tantas vezes perdura.

Mas isto é demais. A rádio, que surgiu nos anos 20 nos EU com a mesma força, os mesmos mitos e os mesmos tiques da Internet nos anos 90 (a mesma loucura bolsista, as universidades por rádio, uma nova economia, etc.), surge-nos em Portugal 20 anos depois. E quem cativa ela na altura, por interposto cinema? O merceeiro de bairro!

Ah, grande classe média, que te moldas a tudo, minha magana! Motor do nosso progresso, heroína barriguda ou slender, merceeira ou jet set, da nossa modernidade! Deus te proteja e todos os regimes!

O Silêncio é de Ouro #133



O filão de Gould.
Mais uma biografia de Glenn Gould, a juntar às 450 já existentes. Mas quando se trata de Gould - e creio que a Cristina concordará comigo - vale sempre a pena mais uma.

Post Scriptum #338

(...) Deus me proteja de ser um velho
a quem todos bajulem e chamem
pelo vazio do seu nome (...)


Yeats e Panero, juntos e traduzidos pelo Rui Almeida.

Post Scriptum #337



Tristan Tzara
(Roménia/França, 1896-1963)

Como prometido, aqui está a tradução (excelente, como sempre) de Nicolau Saião de um fragmento do poema "A Primeira Aventura Celeste do Senhor Antypirine", de Tristan Tzara.

O critério usado nesta tradução foi absolutamente pessoal e obviamente arbitrário. Assim, teve-se em conta não só o texto saído em "Poètes d'aujourd'hui" mas também a versão que dele nos dá René Lacôte no ensaio dedicado ao autor de "Maison Flake".

A PRIMEIRA AVENTURA CELESTE DO SENHOR ANTYPIRINE
(Fragmento)

Nós declaramos que o automóvel é um sentimento
que já nos animou em demasia na lentidão das suas abstracções
e os transatlânticos e os ruídos e as ideias. Entretanto
exteriorizamos a felicidade, buscamos a essência central
e ficamos muito contentes por a esconder. Nós não queremos
contar as janelas das maravilhosas elites, pois que Dada
não existe para ninguém e queremos que todos percebam isso mesmo
uma vez que é da varanda de Dada, garanto-vos, que se podem ouvir
as marchas militares
e descer cortando o ar como um serafim nos balneários públicos
para urinar e compreender a parábola.
Dada não é loucura, nem sabedoria, nem ironia - olha para cá
a ver se me vês
gentil burguês.
A Arte era um jogo, uma noz, as criancinhas
juntavam as palavras com um guiso na ponta e depois choravam
gritavam a estrofe e calçavam-lhe botinhas de boneca e a estrofe
transformava-se em rainha para morrer um bocadinho
e a rainha transformava-se numa baleia e as crianças corriam
corriam até perder o fôlego.

Então chegaram os grandes embaixadores do sentimento
gritando historicamente em coro
psicologia psicologia ia ia
Ciência Ciência Ciência
viva a França!
Nós não somos ingénuos
nós somos sucessivos
nós não somos o contrário de exclusivos
de certeza que não somos simples
e sabemos perfeitamente discutir a inteligência.

Mas nós, Dada, nós não somos da sua opinião
visto a Arte ser uma coisa pouco séria
asseguro-vos
e se vos apontamos o Sul e o crime
para dizer empanturradamente ventilador
arte negra e sem humanidade
é para que o prazer vos sufoque
queridos ouvintes
amo-vos tanto tanto
asseguro-vos
e adoro-vos.

Tradução e nota de Nicolau Saião.

Umbigo #66

Nos últimos tempos tem crescido em mim a vaga esperança de que a qualquer momento alguma coisa aconteça. De que a qualquer momento o blogue desate a escrever-se a si próprio como uma máquina louca e incontrolável cheia de vontade própria.

25.8.04

Señor Tallon #71

Outro post em forma de teaser.

Em breve, Breton e Tzara inéditos, com tradução de Nicolau Saião.

Ilha dos Amores #75


Fotografia de Jeffrey Young.

Post Scriptum #336



ROBERT WALSER: POEMA II.

PARA QUÊ?

Quando de repente o dia voltou
tão puro,
falou lentamente e com firmeza,
branda e sinceramente:
alguma coisa deve mudar,
entro na luta,
eu também quero ajudar, como tantos outros,
a erradicar o mal do mundo,
quero sofrer e vaguear
até que o povo se liberte.
Não quero voltar a declinar, cansado;
alguma coisa tem que
acontecer. Mas nesse momento apoderou-se dele uma vaga sensação,
um torpor: oh, deixemos isso agora!

(Poemas, 1909).

Como já disse, estas tentativas de tradução são minhas (com base na versão em castelhano de Matilde Sánchez e Guillermo Piro, editada no nº 61 do Diario de Poesía). Agradeço comentários, correcções, sugestões e insultos.

Señor Tallon #70

É lamentável que o homem moderno, nas suas leituras, assuma automaticamente, como primeiro e muitas vezes único, o ponto de vista crítico. De um livro deveríamos aproveitar, agradecidos, aquilo que nos estimula, e ignorar pura e simplesmente o resto.

Georg Simmel, citado por Michael Krüger, citado por João Barrento, em "O Lago" (Krüger, 1986).

Post It #187

Literary treasures found in abandoned library.

24.8.04

Ilha dos Amores #74



Do nosso correspondente em Paris.

Post Scriptum #335



Robert Walser
(Suiça, 1878-1956)

NO ESCRITÓRIO

A lua observa-nos do lado de fora,
e repara em mim, pobre empregado,
a desfalecer sob o olhar implacável
do chefe.
Atrapalhado, coço o pescoço.
Nunca conheci um sol perdurável
em toda a minha vida.
A privação é a minha sina:
coçar o pescoço
sob o olhar do chefe.

A lua é a ferida da noite
e todas as estrelas são gotas de sangue.
A felicidade permanece muito longe de mim,
por isso a minha natureza é modesta.
A lua é a ferida da noite.

(Poemas, 1909).


Esta é a minha tentativa de tradução deste poema de Walser (peço desculpa ao autor e aos leitores), com base na versão em castelhano de Matilde Sánchez e Guillermo Piro, e editada no nº 61 do Diario de Poesía (Setembro de 2002). Outros poemas se seguirão durante os próximos dias. Agradeço todas as sugestões que possam melhorar estes textos.

Umbigo #65

As ideias morrem como moscas, nestas manhãs frias de Agosto.

Señor Tallon #69

Muito se pode dizer acerca do diabo:/ ele não está morto, está vivo./ Como poderia ele ter sido abolido/ por um Deus que está sempre ausente?

Gunnar Ekelöf, Snakehead.

23.8.04

Post Scriptum #334



Uma pergunta a Edoardo Sanguineti e resposta.

P: Bien, entonces, hay que acabar con los elementos "poéticos" de la poesía...

R: Eso es. Yo creo que la poesía y lo poético, en cierto modo, son dos cosas opuestas. Lo que aparece como poético en una cultura quiere decir que ya ha sido asimilado, un poco como mirar los paisajes basándose en las postales, se trata de una belleza... legalizada. De lo que se trata es de hacer poesía inventando algo que no era poético pero que puede volverse poético, descubriendo de manera realista lo que responde a modos de ver que son adecuados al tiempo cotidiano. La verdadera lucha de la poesía es justamente contra lo poético. Los poetas a menudo hablan en una jerga "poética", separando la lengua de la poesía de la lengua de la prosa, buscando a toda costa "situaciones poéticas"... Yo creo que el poeta debe buscar que las palabras que usa se vean prosaicas, pero que en realidad contengan elementos esenciales para comprender la época y la vida.

Post Scriptum #333

Uma página sobre Elmer Diktonius.

Post Scriptum #332



Elmer Diktonius
(Finlândia, 1896-1961)

PRESSENTIMENTO

Uma semente germina no meu cérebro,
sugando a medula da vida e o seu fluxo.
O meu barril terá a cor do sangue, eu sei
que acabarei por enlouquecer.

O meu túmulo não terá coroa de flores,
não terá uma cruz cristã com palavras de luz.
Vento do norte. Uma noite de Inverno.
Mas debaixo do gelo a seiva há-de ferver.

Tradução de José Agostinho Baptista.

Ilha dos Amores #73


Chagall, Seurat e Rouault.

22.8.04

O Silêncio é de Ouro #129

Chiu

o melhor nome português é

Francis Obikwelu

obrigado

Umbigo #64

Traduzi hoje duas páginas
Mas como é possível manter tal contabilidade
com os óculos
embaciados?

21.8.04

Umbigo #63

Não há também palavras para o choro.

Experimentem
chorar
com
palavras

Post Scriptum #331

Para chatear, aqui vai um texto do Paul Celan. Dizem que se refere a uma conversa que queria ter tido na montanha com Adorno. Adorno tinha escrito que após Auschwitz já não era possível escrever poesia. Segundo ainda se diz, Paul Celan tentou encontrar-se como ele para discutir isso, mas por não sei que razão, não se encontraram. Celan teve outro encontro falhado com o chamado filósofo, oops, pensador, alemão Heideegrer, quer dizer Heideger, puxa, Heiddeger, arre, Heiddegger. O Lenz de que aqui se fala é um dramaturgo alemão do fim do século XVIII, percursor do naturalismo, autor de peças "sociais". Tradução em cuecas. Sei que há outra do João Barrento, certamente melhor do que a minha, mas esta é minha, feita com o meu sangue e a minha dor.

Conversa na serra

Uma vez ao cair da noite, afundara-se já o sol e não só o sol, lá foi, saiu da sua casinha e lá foi, o judeu , judeu e filho de judeu , e com ele o seu nome, nome impronunciável, lá foi e veio, veio a pequenos passos por aí fora, fazendo-se ouvir pelo caminho, com o seu bordão, veio sobre as pedras, estás a ouvir-me, sim estás, sou eu, sou eu, eu e quem tu ouves, quem supões que ouves, eu e o outro, e, portanto, lá foi, ouvia-se a andar, lá foi ao cair da noite, já se tinham afundado algumas coisas, foi por sob as nuvens, foi à sombra, a sombra própria e a sombra estranha, pois o judeu, como sabes, que coisa tem que seja mesmo dele, que não seja emprestada, tomada e não restituída, lá foi, portanto, seguindo o seu caminho, o belo, incomparável caminho, caminhando como Lenz pelas serras, ele a quem deixaram viver lá em baixo, onde lhe pertencia viver, nos terrenos de baixo, ele, o judeu, caminhava, caminhava.
Caminhava, sim, caminhava por essa estrada, essa bela estrada.
E quem achas que veio ao seu encontro? O primo, o primo veio ter com ele, o primo direito, mais velho um quarto de vida de judeu, alto veio, veio, também ele pela sombra, emprestada, claro, pois, pergunto eu e pergunto-te a ti, como poderia vir com a própria sombra se Deus o fez judeu, veio, alto, veio ter com o outro, Gross chegou-se a Klein, e Klein, o judeu, calou o bordão diante do bordão do judeu Gross.
As pedras, também estavam caladas. E havia silêncio nas serras onde eles caminhavam, um e outro.
Portanto, havia silêncio, silêncio ali nas montanhas. Mas não durou muito o silêncio, pois quando vem um judeu e encontra outro, o silêncio não dura, mesmo nas montanhas. Pois o judeu e a natureza são estranhos entre si, sempre foram e ainda são, mesmo hoje, mesmo aqui.
Portanto, aí estão eles, os primos. À esquerda, floresce o lírio-turco, floresce selvagem, como em mais lugar nenhum, e à direita, o rapúncio, e o dianthus superbus, o cravo soberbo, não muito longe. Mas, eles, os primos, por culpa de Deus, não têm olhos, ou, melhor, até eles os têm, olhos, mas há um véu suspenso em frente deles, não, à frente não, por detrás, um véu que se move. Mal lá entra uma imagem, fica presa na teia, e começa a tecer-se um fio, e começa a tecer-se à volta da imagem, um fio-véu; vai-se tecendo à volta da imagem e gera um filho, meio imagem, meio véu.
Pobre lírio-turco, pobre rapúncio. Ali estão os primos, num caminho da serra, o bordão calado, as pedras caladas, e o silêncio não é silêncio. Nenhuma palavra se calou e nenhuma frase, é apenas uma pausa, um espaço vazio entre as palavras, um espaço branco, vêem-se as sílabas à espera ali em torno, à espera. São língua e boca, como antes, ambos, e nos seus olhos pende um véu, e vós, pobres flores, nem sequer estais aí, nem floris, não existis, e Julho não é Julho.
Os fala-baratos! Mesmo agora, quando as línguas deles tropeçam torpes nos dentes e os lábios deles não se arredondam, têm algo a dizer um ao outro. Bem, deixemo-los falar?
"Vieste de longe, fizeste um longo caminho para aqui chegar ?"
"De longe vim. De longe, como tu."
"Eu sei."
"Sabes. Sabes e vês: a terra dobrada até aqui, dobrada uma vez e outra vez e três vezes, e aberta no meio, e no meio há água, e a água é verde, e o verde é branco, e o branco vem ainda mais de cima, dos glaciares, e poderíamos dizer, mas não deveríamos, que esta é a língua que aqui conta, o verde com o branco lá dentro, uma língua que não é para ti nem para mim, porque, pergunto-te eu, para quem é destinada, a terra, não para ti, digo eu, não te é destinada, nem para mim, uma língua, bem, uma língua sem Eu e sem Tu, só com Ele, só com Isso, percebes, só com Ela, e mais nada."
"Percebo, percebo. No fim de contas, vim de muito longe, de muito longe como tu. "
"Eu sei."
"Sabes e queres perguntar: e mesmo tendo vindo de tão longe, até aqui, mesmo assim, porquê e para quê?"
"Porquê e para quê? Porque tinha de conversar, talvez, comigo ou contigo, conversar com a minha boca e a minha língua, não apenas com o bordão. De facto, com quem é que ele conversa, o meu bordão? Conversa com as pedras, e as pedras, com quem conversam elas?"
"Com quem hão-de conversar, primo? Não conversam, falam, e quem fala não conversa com ninguém, primo, fala porque ninguém o ouve, ninguém, ninguém, e nessa altura ele diz, ele mesmo, não a boca nem a língua, ele, e só ele, diz: estás a ouvir-me?"
"Estás a ouvir-me, diz ele - eu sei, primo, eu sei? Estás a ouvir-me, diz ele? E Estás-a-ouvir-me não diz nada, não responde, porque Estás-a-ouvir-me é só um com os glaciares, é o que se dobrou em três e não é para os humanos? O verde e branco que ali está, com o lírio-turco, com o rapúncio? Mas eu, primo, eu que aqui estou no caminho, aqui onde não pertenço, hoje, não porque ele se tenha afundado, o sol e a sua luz, eu, aqui, com a sombra, a minha e a que não é minha, eu-eu que posso dizer-te:
Estou deitado nas pedras, no passado, sabes, nas lajes; e perto de mim, os outros que eram como eu, os outros que eram diferentes e no entanto como eu, meus primos. Estão deitados, dormindo, dormindo e não dormindo, sonhando e não sonhando, e não me amavam e eu não os amava, porque eu era um e quem quer amar um quando há muitos, mesmo mais do que os que estão deitados junto a mim, e quem quer ser capaz de amar todos, e não to escondo, não os amei a eles que não podiam amar-me, amei a vela que ardia no canto esquerdo, amei-a porque ardia, não porque ardia, porque era a vela dele, do pai da nossa mãe, porque nessa noite começara um dia, um dia especial: o sétimo, o sétimo que havia de ser seguido pelo primeiro, o sétimo e não o último, primo, não a amei, amei o seu arder e, sabes, não amei nada desde então.
Não, nada. Ou talvez tudo o que arde como ardia a vela nesse dia, o sétimo, não o último; não o último dia, não, já que aqui estou, aqui, neste caminho que dizem que é belo, aqui estou junto ao lírio-turco e ao rapúncio e a cem passos, mais acima, aonde poderei ir, a lárica dá lugar ao pinheiro cembra, vejo-o, vejo-o e não o vejo, e o meu bordão que falava com as pedras, o meu bordão está calado agora, e as pedras dizes que podem falar, e nos meus olhos há esse véu que se move, há véus, véus que se movem, levanta-se um, e lá está outro, suspenso, e a estrela lá está, sim, lá está ela ali em cima, sobre a serra, se quiser entrar terá que casar-se e em breve já não será ela, mas meio véu e meio estrela e eu sei, eu sei, primo, eu sei que te encontrei aqui, e que conversámos, muito, e que essas dobras ali, sabes que não são para os humanos, e não são para nós que saímos de casa e viemos encontrar-nos aqui, sob a estrela, nós os judeus, que viemos como Lenz pela serra, tu Gross e eu Klein, tu, o fala-barato, e eu, o fala-barato, com os nossos bordões, com os nossos nomes impronunciáveis, com as nossas sombras, que são nossas e não são nossas, eu e tu aqui - eu aqui, eu, que te posso dizer tudo isto, poderia ter dito e não digo e não te disse, eu, com um lírio-turco à esquerda eu com o rapúncio, eu com a minha vela ardida, eu com o dia, eu com os dias, eu aqui e ali, eu, talvez acompanhado - agora - pelo amor dos que não amei, eu a caminho de mim, aqui em cima."

Post Scriptum #330

Caros amigos (e creio que ainda haverá alguns):

Entre muitas e várias desilusões, e a coisa está a ficar grave, há esta paranóia do anti-semitismo, lançada (eu diria com precisão cirúrgica) relativamente a pronto coisas que estão a acontecer.

Não me sinto muito bem e noto em mim reacções preocupantes. Mas vamos manter a calma.

Para explicar melhor a complexidade das minhas circunvoluções (também penso que os milhões de leitores atentos deste blogue terão tido experiências semelhantes na massa cinzenta) resolvi traduzir um poema do yidish. Sim senhor, essa língua meio alemã (que ironia) que os judeus da diáspora espalharam pelo mundo e os nazis destruíram com as suas patorras de sangue (o que, diga-se de passagem, só prejudicou a cultura alemã, palermas, além de assassinos).

Parece, porém, que alguns e algumas querem ajudar à missa. Não contem comigo. E mais não digo. Dá vontade de ir ver se o rio tem realmente profundidade para acolher o meu pobre invólucro. Aí vai pois em original e pobre tradução um hino judeu da diáspora dos séculos passados:

In kamf
David Edelstadt (1866-1892)

Mir vern gehast un getribn
mir vern geplogt un farfolgt
un alts nor derfar vayl mir libn
dos oreme shmakhtende folk

Ir kent undz dermordn tiranen
naye kempfer vet brengen di tsayt
un mir kemfn mir kemfn biz vanen
di gantse velt vet vern bafrayt

Na Luta
David Edelstadt (1866-1892)

Somos expulsos, odiados
Torturados, perseguidos
e tudo só porque amamos
o pobre povo perdido

Podeis matar-nos tiranos
Cada dia outro guerreiro
Virá lutar sem descanso
Libertar o mundo inteiro.

Como não posso deixar de apresentar a outra versão (como compete a qualquer observador imparcial dos factos, isto é, como convém respeitar a opinião de todas as partes), eis também
o salmo 137 (atenção, a tradução não é minha):

Filha de Babilónia, que vais ser assolada,
Ditoso quem te der a paga
Do mal que nos fizeste!
Ditoso quem tomar e esmagar,
Contra uma pedra, os teus filhos.

Salmo 137

20.8.04

Post It #186



O Guardian anuncia mais um romance de Calvino descoberto em Itália.

The sex life of Italy's most respected 20th-century novelist was heading for the courts yesterday after his widow instructed lawyers in Rome to seek an injunction banning the publication of further extracts from his passionate correspondence with a married lover.
The row centres on a series of letters written by Italo Calvino in the 1950s to the actress Elsa de' Giorgi. Extracts serialised this month in the newspaper Corriere della Sera testify to a torrid love affair between the writer and the star of, among other films, Pier Paolo Pasolini's Salo or the 120 Days of Sodom.


Continua...

Cimbalino Curto #106

Mas que diabo de anedota é esta?

[Via Elsinore]

Cimbalino Curto #105

Há quanto tempo, neste blogue, não se serve um cimbalino curto? Quem anda a precisar de um cimbalino para despertar: nós ou a própria cidade?

Post It #185

Sugestão literária do dia.

A história fantástica de um corte de cabelo.

O Povo é Sereno #143



MESMO NA BISCA DÁ GOSTO

Às vezes a emoção domina-me. Ante a beleza, os rasgos de muito talento, um horizonte sobre as montanhas, um pequeno bosque à entrada dum deserto? Sim, em todas essas circunstâncias. Mas, garanto com sinceridade e doçura algo irónica (magoada?): muito mais me emociono agora ante a estupidez pura e dura. No fundo, admirável como uma flor um pouco maldita.
Claro, vocês não acreditam, pensam que estou a fazer espírito. Mas e se eu vos disser que é a verdade verdadinha?
Deixem-se de coisas. E meditem em que sou um tipo um pouco sofisticado: conheci alguns génios, tive experiências de assarapantar; vi países distantes e amenidades em regiões inóspitas; li muitos livros, contemplei muitos quadros - bons livros e bons quadros - e como "gourmet" basta que notem que pela estrada real da minha garganta, até ao saco-das-migas, passaram algumas das mais deliciosas iguarias que a saborosa inventiva de povos criou. Estão a seguir-me?
Agora o que me turba e perturba, o que me excita mesmo - é mais a estupidez, quando poderosa e quase criativa. E quanto mais descarada melhor.
O meio político, evidentemente, lança-me em deliciosas navegações pelo prazer, admito que torcido, da emoção mefistofélica. Mas outros sectores e outras personalidades também me comprazem.
Há bocado, por exemplo, um digno futebolista da (gostosamente algo estúpida) selecção olímpica, dizia altiva e estupidamente que os erros cometidos em barda iriam ser debatidos mas - e aqui está o motivo do meu gosto - "entre nós e não na praça pública!".
Ainda bem que nunca este senhor pensou que é tributário do povo português, que a praça pública a que alude é nada menos que o local onde o povinho tem direito a pedir contas a quem o representa!
Para mim, desde há um certo tempo em que me tenho sofisticado, a estupidez altiva (soberba) é um festim para o meu interior a depravar-se paulatinamente. Que delícia!


Nicolau Saião

19.8.04

Post Scriptum #329


Philip Larkin, por Lawrence Whitehead.

Philip Larkin
(Inglaterra, 1922-1985)

CONVERSAR NA CAMA

Conversar na cama devia ser mais fácil.
Ficar deitado ao lado de outro é tão antigo,
Um símbolo de duas pessoas sendo honestas.

Mas cada vez mais tempo passa em silêncio.
Lá fora a agitação incompleta do vento
Constrói e dispersa nuvens por cima do céu.

E cidades sombrias amontoam-se no horizonte.
Ninguém se importa connosco. Nada mostra porque
A esta distância única do isolamento,

Se torna ainda mais difícil encontrar
Palavras ao mesmo tempo reais e simpáticas,
Ou não irreais e não antipáticas.

Tradução de Jorge Sousa Braga.

A versão original deste poema pode ler-se na Natureza do Mal.

O Silêncio é de Ouro #127



É uma das imagens mais emblemáticas da história do jazz: Roland Kirk a tocar três instrumentos em simultâneo. Em todo o caso, Roland Kirk (1935-1977) foi muito mais do que um excelente instrumentista. Foi um compositor rigoroso, excepcionalmente criativo, que utilizou o humor como poucos. Por isso, os seus trabalhos continuam a apresentar uma frescura invulgar. Ouça-se, por exemplo, este "Rip, Rig and Panic", gravado em 1965, com Elvin Jones na bateria, Jaki Byard no piano, e Richard Davis no baixo. Imprescindível.

Raul Silva

18.8.04

Anúncio

O Quartzo, Feldspato & Mica declara que patrocinará, através de uma quantia simbólica de 500 quilos de moral, a tradução de "Gräs Och Granit" (Erva e Granito), de Elmer Diktonius, nunca editado em português.
Os interessados deverão enviar uma proposta escrita para o nosso mail: quartzo@sapo.pt.

Señor Tallon #68

Finalmente, uma forma verdadeiramente inovadora de fazer crítica literária. Este é o "texto" mais original que já li sobre "The Bell Jar", de Sylvia Plath ("A Campânula de Vidro", na versão portuguesa).
Senhores críticos: não critiquem, inovem.

Post Scriptum #328

Outro poema do dia

tens lume?
não, mas tenho uma alma, queres?
a tua alma dá para acender este cigarro?
dá...

Post Scriptum #327

Poema do dia.

O Vaticano é contra a clonagem de embriões humanos porque pensa que Deus pode ficar com ciúmes.

17.8.04

Señor Tallon #67

Absolutamente extraordinário, o videoclip que o realizador australiano Daniel Askill concebeu para "Breath Me", o mais recente single de Sia, a vocalista dos Zero 7. É uma das peças mais belas que tive oportunidade de ver, dentro deste género, nos últimos meses. Está disponível no DVD que acompanha o último número da Creative Review. Infelizmente, são muito poucas as referências que encontrei na internet.

Post Scriptum #326



Jürgen Theobaldy
(Alemanha, n. 1944)

POEMA SOBRE O AMOR

Hoje de manhã, ao acordar,
pensei:
hoje, o amor vai assaltar-te
embora não soubesse como ele é
nem o que vale.

Eu acho que as coisas realmente grandes na história
(tanto na história UNIVERSAL
como na história pessoal
mas talvez eu esteja errado)
de modo nenhum são feitas por amor
ou em amor ou qualquer coisa assim;
eu acho que as coisas realmente grandes
se fazem por razões completamente diferentes.
Por exemplo, a SIEMENS não constrói por amor
uma barragem em Cabora Bassa, e também
uma revolução do amor não
levará a nada.
Claro que se pode tentar
mas eu não acredito nisso.

E tentei
explicar isto à mulher-do-meu-amor
(que acordou logo a seguir a mim
talvez eu a tenha acordado
ao erguer-me para olhar para o despertador
passava pouco das onze e era sábado)
e ela disse
que não fazia SENTIDO
eu estar AGORA a explicar-lhe isto
e eu dei-lhe razão
e
ela
deitou a mão à minha piça. Depois
fizemos amor até ao meio-dia-e-meia
sem que daí
resultasse
nada de verdadeiramente grande
digamos: pelo menos com metade da grandeza
dos esforços de Leviné em Munique em 1919.

Versão de João Barrento.

Ilha dos Amores #72



Jenny Holzer, Truisms, 1978.

16.8.04

Vai no Batalha #27

Fazem favor? Nunca na minha vida, gostei das multidões que lançam pedras à toa (atenção, isto não tem nada com revoluções em que se lançam pedras contra os poderosos, porque isso tem de ser mesmo à toa, que a malta vê mal, não tem dinheiro para pagar óculos).

Permito-me transcrever a transcrição da transcrição duma parte das famosas cassetes do Independente. Faço comentários entre parênteses rectos (não é piada). Trata-se de uma conversa entre Sara Pina, porta­-voz do PGR, e Octávio Lopes, jornalista do CM. Declaro desde já que conheço Sara Pina, que sou seu amigo, e que, sejam quais forem as faltas que ela cometeu (se foi que as cometeu, no que não creio), também merece não ser queimada na praça pública por dá cá aquela palha. Então, é assim:

"CM- Pode-se escrever com garantia que o Correio da Manhã sabe que ao contrário do que diz o acórdão do tribunal, há mais crianças que acusam o Hugo Marçal de...
SP - Ó Octávio, o Hugo Marçal está preso preventivamente por vários crimes, além do
abuso sexual de crianças.
[Sara Pina só chama a atenção para o facto de Hugo Marçal estar preso (devia ter dito "detido", mas pronto) preventivamente por vários crimes (devia ter dito "acusado de", mas pronto, facilitou, como toda a gente facilita, porra) por vários crimes].
CM - Sim. Quatro crimes de lenocínio e ...
SP - Tá bem, mas são várias crianças...
[Parece aqui que está revelando terríveis segredos, mas veja-se a seguir]
CM - O "Correio da Manhã" sabe que, ao contrário do que está escrito no acórdão do Tribunal Constitucional, tal como Rui Teixeira informou a defesa, é acusado de 72 crimes de abuso sexual e quatro de lenocínio e os 72 crimes de abuso sexual são referentes a mais do que uma criança. Correcto?
[Pois é claro: o juiz Rui Teixeira, era o que faltava, informou a defesa de que HM é acusado de 72 crimes de abuso sexual e quatro de lenocínio e os 72 crimes de abuso sexual são referentes a mais do que uma criança. Bem, não está aqui perfeitamente claro que o "juiz R Teixeira informou que os 72 crimes de abuso sexual são referentes a mais do que uma criança", mas, poxa, também se não informou, quer dizer...]
SP - Sim, é verdade, é.
[Bolas, que poderia ela dizer? Que não era? Mas se os jornalistas sabiam?]
CM - Posso escrever isto? Fonte do MP? Correcto?
[Se me dão licença, quem é esquinado aqui é Octávio Lopes: quer fazer passar uma informação consabida por um grande furo do CM]
SP - Pode o quê?
CM - Fonte do MP, soube o Correio da Manhã.
SP - Não pode pôr fonte nenhuma.
[E tem toda a razão: OL já sabe, toda a gente na profissão sabe, e só está a tentar enroupar a "informação" com um nariz de cera dos jornalistas macabeus]
CM - Fonte próxima do processo e está a andar.
[e "está a andar": esta é de antologia! "está a andar"?, mais fácil do que um supositório; que vergonha. O que se passa a seguir é apenas uma insistência para tentar obter credibilidade para uma não notícia.]
SP - Não pode.
CM - Fonte próxima do processo e...
SP - Não pode. Isso muito menos.
CM - Então, pronto, soube o Correio da Manhã, o Correio da Manhã apurou junto de qualquer coisa(...)
SP - Isso pode pôr.
CM - Tanto que, ao contrário de...
SP - Ponha assim, o Correio da Manhã apurou que é mais do que uma criança, pronto, mas não põe fonte nenhuma, nem judicial, nem do MP e muito menos fonte do processo, senão sou morta na segunda-feira.
CM - Tá bem, não morre nada.
SP - O Correio da Manhã apurou.
CM - O Correio da Manhã apurou que (...)
SP - Não ponha fonte nenhuma senão nunca mais lhe dou uma informação.
CM - Tá bem Sara, obrigadinha.
[Obrigadinha, o carvalho: esse coiso nem sabe português nem tem noção da dignidade]

A finalizar, tenho a declarar que isto não tem alegadamente nada a ver com a "alegada" ignomínia de Adelino Salvado, que, sem alegadamente lhe encomendarem o sermão, alegadamente expende opiniões sobre Ferro Rodrigues, ainda por cima insinuando alegadamente factos alegadamente falsos. Não se esqueça que Sara Pina era paga para falar com jornalistas e tinha que reportadamente (reportedly) aturar as suas pressões. Seria conveniente que a "classe", num enorme sobressalto de direitura, confessasse que todos os dias tenta extorquir alguma informação dos assessores de imprensa disto e daquilo e que SP talvez (só peço um talvez) não tivesse extravasado as suas competências.

Quanto ao Sr. PGR, esse bigode ambulante, esse sim, devia demitir-se: não por ser culpado, não senhor, mas porque, se toda a gente acha que deve haver inquérito (salvo ele), uma norma elementar da justiça, perdão, do direito, obrigaria a que se afastasse, para

NÃO SER JUIZ EM CAUSA PRÓPRIA.

Isto é, quem assume posições de relevo na sociedade, deve aceitar os ónus do cargo. Não é assim? Se não querem, vão para poetas, e aceitem a hipótese de morrerem tuberculosos.

Que raio de merda de sociedade em que vivemos!

Umbigo #62

Em pleno Agosto, apanhar moscas com um teclado de computador é talvez a actividade mais séria e nobre que um blogger pode levar a cabo.

Umbigo #61



APENAS ÁGUA

Vivemos marcados pela utopia? Talvez... Rodeados de desejos incontornáveis de maior beleza e sagração interior? Hum, hum, é bem possível...
Mas o que é facto é que as duras realidades adjacentes como que nos tiram o desembaraço. Ou nem é bem desembaraço, mas assim como que a agilidade de nos movimentarmos no perímetro da necessidade.
Se estou hoje, diabos me levem - com licença de Prokhor Petrovich - muito metafísico, atribuam a culpa às fériazinhas que vou degustar num dado rincão de que nem vos falo para não vos despertar a negra inveja nos leais e fortes corações. E como sou sujeito esperançoso levo sempre, utopicamente, uma carrada de livros. A desculpa é de que me abasteço fartamente para poder escolher. Pois... Conversa fiada! O que eu cá no fundinho queria mesmo era adregar de lê-los todos, petiscando lasquinha daqui, dedilhando naco de ali. Em suma: pura utopia, que os discursos literários não se deglutem como um bife remolhado ou uma posta de espadarte bem fritinha...
Trocando por miúdos: querem ver a maluqueira? Igual a outras doideiras de leitor em que sempre me meto nas férias? É relancearem a lista da livralhada que me irá acompanhar: "A conversa de Bolzano" de Sandor Márai; "A bolsa e a vida" de Jacques le Goff; "La grande aventure du pacifique" de Georges Blond, "La reina del sur" de Arturo Pérez-Reverte; "A batalha de Dunquerque" de Richard Collier; "O primeiro americano" de C. W. Ceram; dois do Maigret/Simenon; "Los trés inpostores" de Arthur Machen; "Poesia completa" de Manuel Bandeira; "O médico", do Prof. Maurice de Fleury; "Les trois Dumas" de André Maurois e a poesia do Alain Granbois da Segheres recolhida pelo Jacques Brault... E para uma modesta semana!
Dois números atrasados da LER, cinco da "Saber" - revista literária dos Açores (dirigida pelo Vamberto Freitas), três do "El cultural" do El Mundo... vão como contrapeso... Nem se notam!
Chamem-me camelo, chamem-me burro, chamem-me "barriga de almece" (doce insulto alentejano). Sou isso tudo, decerto. Mas... quem - num impulso de compaixão, de compreensão, de carinho funcional e de coleguia - não me entenderá logo a seguir?
Porque o que me move é apenasmente, raios, a mais pura utopia: de que os dias passem a ter quarenta e oito, sessenta e sete, oitenta e quatro horas!
E tão moldáveis como a água.


Nicolau Saião

Post Scriptum #325

Livros de Czeslaw Milosz disponíveis no mercado português:



A Tomada do Poder.
Alguns Gostam de Poesia.

Post Scriptum #324



"O Mestre" é especificamente sobre um encontro com o meu herói, Czeslaw Milosz. Muita gente julga que é sobre Yeats, porque se situa numa torre. (...) Mas eu pensava em Milosz, um homem perante quem eu sentia na altura grande timidez, um grande poeta, alguém com uma majestade oitocentista nos seus conseguimentos em prosa, em ensaios, em poesia. Como pessoa, tem uma espécie de autoridade serena, e eu só queria escrever um poema de admiração, descrever algo da sua maravilhosa compreensão e auto-domínio.

Seamus Heaney, em entrevista a Rui Carvalho Homem, publicada em Luz Eléctrica.


O MESTRE

Ele vivia em si próprio
como um corvo numa torre sem telhado.

Para me aproximar eu tinha de escalar
longas e agrestes muralhas desertas
e não estremecer, nem erguer o olhar
à procura de um olhar vigilante
no canto onde ele tivesse o seu retiro.

Deliberadamente ele abria
o seu livro do segredo
uma página de cada vez
e nada era arcana, só as velhas regras
que todos tínhamos inscrito nas lousas.
Cada carácter estampado no pergaminho, seguro
no seu volume e medida.
A cada máxima dado o seu espaço.

Diz a verdade. Não tenhas medo.
Noções duradouras, obstinadas,
como martelos e cunhas de pedreiros
comprovados pelos rigores do seu uso.
Quais cumeeiras onde se repouse
no refrigério de uma nascente.

Como me senti frágil ao descer
as escadas sem protecção, contra a muralha,
escutando o propósito e a empresa
lá em cima, num golpe de asa.

Seamus Heaney.
Tradução de Rui Carvalho Homem.

Post Scriptum #323


Czeslaw Milosz (1911-2004)

ARS POETICA

Sempre aspirei por uma forma mais ampla,
que não fosse nem poesia nem prosa em demasia
e permitisse a compreensão, sem expor ninguém,
nem autor nem leitor, a grandes tormentos.

Em sua essência, a poesia é algo horrível:
nasce de nós uma coisa que não sabíamos que está dentro de nós,
e piscamos os olhos como se atrás de nós tivesse saltado um tigre,
e tivesse parado na luz, batendo a cauda sobre os quadris.

É por isso que se afirma, com razão, que a poesia é ditada por um espírito,
embora haja exagero em afirmar que se trata de um anjo.
É difícil de entender a soberba dos poetas,
por que se envergonham, quando a fraqueza deles acaba descoberta.

Que homem inteligente gostaria de ser o país dos demónios,
que nele se multiplicam como em sua própria casa, falam inúmeras línguas,
e como se não lhes bastasse roubar-lhe a boca e as mãos,
ainda tentam alterar-lhe o destino a seu bel-prazer?

Porque hoje se respeita tudo o que é adoentado,
alguém poderá pensar que estou brincando apenas,
ou que encontrei uma outra maneira
de elogiar a Arte através da ironia.

Houve um tempo em que somente livros sábios eram lidos,
que ajudam a suportar a dor e a desgraça.
Mas isso não é o mesmo que examinar milhares
de obras oriundas directamente das clínicas psiquiátricas.

Mas o mundo é diferente daquilo que nos parece,
e nós próprios somos diferentes dos nossos delírios.
Por isso as pessoas conservam a sua silente cortesia,
para obter o respeito de parentes e vizinhos.

A vantagem da poesia consiste no facto de lembrar-nos
da dificuldade de manter a identidade,
pois a nossa casa está aberta, não há chave na porta,
e hóspedes invisíveis entram e saem.

Concordo, o que estou contando aqui não é poesia.
Poesias devem ser escritas poucas vezes e de má vontade,
sob uma pressão insuportável e apenas na esperança
de que os bons espíritos, e não os maus, tenham em nós o seu instrumento.

Tradução de Aleksandar Jovanovic.


Czeslaw Milosz morreu no sábado. Tinha 93 anos.


Acredito firmemente na passividade do poeta que recebe um poema como dádiva das forças desconhecidas e nunca pode esquecer que essa obra não surgiu por mérito próprio. Ao mesmo tempo, o seu intelecto e a sua vontade têm que ser constantemente sensíveis à realidade circundante. Durante o meu século, presenciei situações de horror, por isso não pude refugiar-me na "poesia pura" como aconselhavam alguns herdeiros do simbolismo francês. (...) Acho que a saúde da poesia está na sua tendência de apanhar o máximo da realidade. Se tivesse que escolher entre a arte subjectiva e a objectiva, optaria sempre pela segunda...

Czeslaw Milosz, citado na introdução do volume Alguns Gostam de Poesia.

13.8.04

Post It #184

Afinal, Larkin também tinha um baú. Não exactamente como o famoso baú da Rua Coelho da Rocha. Mas, mesmo assim, esta descoberta promete.

Post Scriptum #322

Porque hoje o dia é dos gregos (e, portanto, também do Manuel Resende). Um poema de Andréas Kálvos (1792-1869), numa tradução de José Paulo Paes.

A LEGIÃO SAGRADA

Quase todos em trevas;
sobre poucos - estrela -
brilha a imortalidade;
o céu fez o homem livre
para escolher.

Post Scriptum #321



O CORAÇÃO DA LUZ

Sandra Mercedes Espósito... O nome se calhar não vos diz nada. É natural. Nem a mim me dizia até há dois dias, altura em que me enviaram o novo número da "Agulha", a revista interactiva brasileira em que o Floriano Martins (sim, o poeta de "Alma em Chamas"), o Cláudio Willer (pois, o presidente da Un. Bras. de Escritores) e o Soares Feitosa (claro, o do "Jornal de Poesia") são timoneiros para gosto de todos nós. Para gosto e para proveito, que a revista interactiva a que me reporto dá-nos sempre motivos de júbilo interior e exterior, por cima e pelos lados, ao sol e à sombra - como nas grandes adesões dum coração que brilhe.
Mas o nome a que me reporto corresponde a uma fotógrafa argentina que não se fica pela questão dos retratos - que por si só já seriam matéria de muito amar. No número 40 da revista, acabadinho de sair - vão ler com desvelo, não se arrependerão - apresenta-se com um textão sobre Mikhail Bulgakov que nos faz ficar felizes por três quinze dias. É sobre o cómico na obra do grande autor de, entre outras obras de referência, "Margarita e o Mestre" e "Coração de cão".
Mediante um discurso fluido, inteligente e muito informado, a autora mostra-nos como se organizava a ironia, o humor e o cómico por extenso nos livros daquele homem que dizia necessitar da prosa romanesca e da prosa teatral como um pianista precisa das duas mãos. O grande Bulgakov, cujas paredes da escadaria da casa onde residiu - na Sadovaya e que lhe serviu para encenar o apartamento encantado onde Margarita, rainha por uma noite, preside ao grande baile da Primavera - eram nos tempos do totalitarismo cobertas por inscrições e por pedidos e gritos de alma: "Woland, incendeia a minha universidade!", "Azazelo, livra-me dum chefe fascista!", "Margarita, ajuda-me a descobrir a minha amada!", "Fagot, leva-me a Paris!".
O alvitre aqui fica. E ainda por cima o Quartzo agora tem ligações com a "Agulha". É só clicarem - e entrarem num mundo onde palpita o coração da luz.
E adeus por mais uns dias, que vou para a segunda parte de umas fériazitas alentejanas...


Nicolau Saião

Post Scriptum #320



John Berger
(Inglaterra, n. 1926)

UMA VEZ NO TEMPO DE UMA VIDA

Tudo começou numa pequena colina um pouco acima e a norte do sítio onde eu puxava o feno. No alto da colina havia três pereiras abandonadas, duas carregadas de folhas e a outra mostrando os troncos já acinzentados, sem uma única folha, morta. Por trás, o céu azul com grandes nuvens brancas.
Este pequeno lugar do campo - a nunca antes prestara atenção - captou o meu olhar e agradou-me. Agradou-me como aqueles rostos com que nos cruzamos na rua, rostos desconhecidos, sem nada de especial que os destaque mas que nos agradam por revelarem a vida no acto de ser vivida.
Pouco tempo depois, tive a sensação de que estava a ser observado. Durante um breve instante, julguei que estava alguém no alto da colina ou que algum rapaz tinha subido a uma das árvores. A pereira morta lá estava, ladeada pelas outras, cheias de vida. E ninguém ali havia.
Quando um homem aparece de surpresa a um animal, ou vice-versa, o campo de visão que entre eles se cria exclui tudo o resto à sua volta. Foi algo desse género o que se passou, com a diferença de que, entre o homem e o animal, há habitualmente uma relação de igualdade, ao passo que naquele caso eu sentia que a desigualdade era patente. Eu estava menos presente do que o pequeno lugar do campo que me observava.
(...)

Tradução de Helder Moura Pereira.

12.8.04

Post It #183

Hoje, no Guardian:

Ezra Pound, the "poets' poet" who has been ostracised for 60 years because of his virulent anti-semitism and support for fascism, was honoured with an official blue plaque yesterday.
The plaque, from English Heritage, is a first chink of light in the cloud of infamy and disgrace which hangs over Pound's memory, although he was the godfather of literary modernism and midwife to some of the 20th century's greatest works - notably TS Eliot's poem The Waste Land.

Post Scriptum #319



A revista Ficções está de regresso com um número extra dedicado à Guerra. Com contos de Alexandre Herculano, Rudyard Kipling, William Carlos Williams, Andrei Platónov, Graham Greene, José Martins Garcia, Giuseppe Pontiggia e Villiers de l'Isle Adam, numa tradução do nosso Manuel Resende. Absolutamente a não perder. Numa livraria perto de si.

Post It #182

Sobre Larkin. Se o leitor encontrar por aí melhor lição sobre a poesia do velho bibliotecário inglês, devolvemos-lhe o dinheiro.

Umbigo #58

De volta ao escritório, retomo, com meticulosa aplicação, o elevado e nobilíssimo ofício de cavar a minha sepultura (como dizia Lowry na tradução do Herberto). Enquanto os colegas do departamento acenam-me por trás das fotocopiadoras, e riem.

Post Scriptum #317



Charles Simic
(Sérvia/E.U.A., n. 1938)

DOIS TEXTOS

Tudo é previsível. Tudo foi já previsto. O que foi destinado não pode evitar-se. Nem sequer esta batata fervida. Este garfo. Este naco de pão escuro. Até este pensamento...
A minha avó que varre a calçada sabe. Diz que não há deus, só um olho aqui e ali que vê claramente. Os vizinhos estão demasiado ocupados vendo a TV para queimá-la por bruxa.


O homem morto baixa do cadafalso. Segura a ensanguentada cabeça debaixo do braço.
As macieiras estão em flor. Ele segue o seu caminho até à taberna da vila e ninguém despega o olho. Ali, senta-se a uma das mesas e pede duas cervejas, uma para ele e outra para a cabeça. A minha mãe esfrega as mãos no avental e serve-o.
Há tanto silêncio no mundo. Até se pode ouvir o velho rio, que na sua confusão às vezes se esquece e corre para a fonte.

Versões de António Cabrita.

11.8.04

Vai no Batalha #26

Vou explicar um dos motivos por que ultimamente ando mal disposto, e sem vontade de coisas de espírito.

O campo petrolifero de Ghawar, na Arábia Saudita, é o maior do mundo - produz 4,5 milhões de barris por dia, ou seja, 5,5% da produção mundial de petróleo. Dizem alguns especialistas que entrou na rampa descendente da produção e que os sauditas começaram a injectar-lhe água para fazer sair o crude. É a última artimanha para espremer o poço. Depois, nicles.

Preço alto do petróleo? Por causa do Iraque? Dos problemas da Yukos? De fenómenos circunstanciais? Acho que não!

São os chineses e os americanos (não só, claro, mas para mim são os principais clientes, um pelo volume que já consome, o outro pelo ritmo com que aumenta o seu consumo) a beber um petróleo que vai começar a rarear. Imaginem as consequências. Ou vão dar uma volta aqui.

10.8.04

Post Perlimpimpim #4

Eh, eh, não me riso ter com posso.

Escrevi um post aqui há uns tempos e guardei-o no congelador para posterior reflexão.

Revisto, lancei-o ao mundo. Só que o palerma do programa pô-lo no sítio onde devia ter saído KUANDO O ESCREVI.

No interesse da verdade, comunico ao mundo esta informação, não vá o mundo perder as minhas elucubrações.

Obrigadinho e desculpem qualquer falta.

9.8.04

Post Perlimpimpim #3

Um post que postei aqui aqui há dias provocou uma reacção imediata do João Luís Barreto Guimarães (o qual é poeta e médico), que me deixou a pensar durante muito tempo. Creio que a esmagadora maioria do planeta se está nas tintas para o que penso, o que só lhe fica bem. Mas, atendendo a que haverá duas ou três pessoas curiosas de saber se tenho algum fundamento (atenção, não escrevo "razão") no que digo, aí vai aço. Os desinteressados podem desligar. Obrigado.

Disse eu que uma consulta num consultório médico na Bélgica custa pouco mais do que um terço do mesmo acto clínico em Portugal. E concluí daí que a sociedade belga é mais igualitária do que a portuguesa. Depois de muito reflectir, mantenho o que disse.

Atenção, eu não disse que os médicos belgas ganham mais do que os portugueses. Ai não disse? Pois não disse.

É que, primeiro, aposto com quem quiser em como o preço ou aluguer de um consultório na Bélgica é bastante inferior ao de um consultório em Portugal. Isso tem a ver com o mercado imobiliário na Bélgica. É muito regulamentado (mas muitíssimo: não há centros comerciais a dar com um pau, os hipermercados são a conta-gotas, não se podem criar zonas de escritórios sem habitações, as rendas são condicionadas, isto é, indexadas à inflação, não se pode destruir quintais para alargar os prédios, etc.), de maneira que funciona melhor (mais concorrencial, menos especulativo) do que o português. Bruxelas, que é uma cidade cara, no contexto belga, é mais barata do que Lisboa e tem uma malha urbana muito mais uniforme do que qualquer cidade portuguesa, isto é, uma maior mistura de funcionalidades: há consultórios médicos, assim como há padarias e mercearias por todo o lado.

Segundo, como salientei, são raríssimos os médicos que têm secretária, porque as pessoas, a começar pelos próprios médicos, admitem que os médicos são gente como os outros, não são anjos que dejectam ambrósia e mel.

Terceiro, sempre tenho que reconhecer alguma falácia no que escrevi, mesmo que me custe (poxa, custou mesmo, mas menos que uma injecção). E a falácia é esta: o sistema belga é diferente do português. E eu limitei-me a comparar um aspecto: o preço das consultas. Na sua esmagadora maioria, os médicos são convencionados e, nos seus consultórios, trabalham para as caixas de previdência locais (a socialista, a cristã-democrata, a liberal e a independente são as principais). Já ouvi dizer que há médicos que não cumprem os preços convencionados das consultas (parece que podem, se o paciente for ou estiver distraído), mas a mim nunca me calhou (e sou distraído).

Ora, é evidente que, num país onde os salários são superiores, onde as empresas, também, têm uma medicina no trabalho mais a sério (e podem permitir aos seus trabalhadores que façam a revisão anual no médico assistente de sua escolha), etc., etc., o número de consultas médio de cada pessoa é certamente superior ao português e de carácter mais preventivo (não curativo). Atenção: isto é dedução minha, não um dado estatístico confirmado, mas creio que é fundamentado.

Nunca fui mais ao médico do que na Bélgica. Se é certo que estou mais velho, não é menos certo que nunca me lembraria de ir tantas vezes se o sistema não fosse tão impositivo. Ora o meu médico já me conhece os achaques e manhas de cor e salteado (e eu também já o conheço de ginjeira, só que não posso revelar pormenores, devido à deontologia profissional). Muitas consultas são pouco mais do que um pró-forma, para ver como vai a coisa. Um luxo.

Estou a lembrar-me de um pormenor que é paralelo a isto: se uma pessoa não fizer uma limpeza dos dentes anual não tem direito a pagamentos de dentaduras e coisas assim.

Não quero defender que o sistema é melhor ou pior do que o português, mas nas condições gerais da sociedade actual é mais igualitário, e nessa parte é que continuo a achar que tenho razão. Por outro lado, preciso de declarar que isto que digo, o digo um pouco a contragosto. E porquê, estimados ouvintes ou, melhor, lentes?

Porque o sistema de saúde belga é um exemplo perfeito do vício do compromisso que caracteriza essa sociedade: compromisso entre a medicina privada e o sistema público de saúde. O mesmo espírito de compromisso que faz com que as eleições pouco mudem no andamento da sociedade. Ganhem os socialistas, os liberais ou os cristãos-democratas, o governo é sempre uma coligação variegada socialistas-democratas-cristãos, ou socialistas-liberais, ou liberais-democratas-cristãos, ou até arco-íris (socialistas-liberais-verdes, etc.), etc. No entendimento, porém, de que certos equilíbrios fundamentais nunca são postos em causa.

Creio que uma das razões que permite manter hoje esta sociedade de pé é, hoje em dia, absolutamente excepcional: a Bélgica (que já não tem o Congo) é sede da Otan e da UE e por isso beneficia dos rendimentos que daí lhe advêm. Creio também que este tipo de compromisso não poderá manter-se muito tempo, face à tempestade neo-liberal que por aí vai.

Se ainda não perceberam, explico que nunca fui social-democrata nem partidário de compromissos com Freitas do Amaral, e que já é tarde para mudar. Mas isso não me obriga a ser cego. E reconheço que a associação Soares+Amaral (isto é uma maneira de falar) produziu uma sociedade (mesmo capitalista) mais fácil de viver (e mais humana) do que esta portuguesa, onde, apesar da revolução do 25 de Abril, os engenheiros ainda são "senhores engenheiros" e qualquer licenciado é "senhor doutor", e as filhas do António Ferro são êxitos editoriais. E isto não sendo uma monarquia, como a Bélgica. Ora, poxa, para um republicano socialista e de extr3#@ ixk3rd@, isto sabe mal ao passar na boca.

Mas, como disse o Trotsky, a burguesia tem muito mais experiência. Isto é, a burguesia inteligente, com substrato.

Saúde e Fraternidade (e auto-ironia), caros amigos.

4.8.04

Umbigo #57

Volta depressa, Rui (Manuel) Amaral. Não tenho jeito nenhum para isto!

Post Perlimpimpim #2

Quero dizer, se houver alguém que esteja para me aturar. Sei que há coisas muito aborrecidas que é difícil explicar, e já começa a chatear-me ter que resumir tudo em meia dúzia de bytes ou até bits. O que se passou (isto é, resumir) com um post sobre os médicos.

Na caixa dos comentários insurgiu-se o João Luís Barreto Guimarães, se calhar pensando que eu estava a ter algum ataque de santanismo populista e que queria insinuar que os médicos são uns gatunos diplomados, como diz certa besta, que ainda por cima me acha intimista e chato. Ora essa besta pode ir passear, mais a interpretação que deu ao post.

Nada disso. É toda a sociedade portuguesa que está distorcida por demais, mesmo para um regime capitalista, digamos, entre aspas, porra, "normal". Passo a citar Agostinho Silva, que foi presidente da Confederação Portuguesa de Quadros Técnicos e Científicos Portugueses ao longo dos últimos treze anos, o qual disserta sobre a discrepância entre os baixos salários e os altos salários da seguinte forma:

"Sim. E essa discrepância é muito maior em Portugal do que noutros países, inclusivamente os mais desenvolvidos. O salário mínimo nacional, por exemplo, é um terço ou um quarto do praticado em França, mas o presidente de uma empresa como os Correios recebe mais ou menos o equivalente ao seu congénere português."

Pergunta ingénua: o que é que têm os gestores portugueses, que merecem tanto Lamborghini? Descobriram a pólvora? Não. Ao menos o caminho marítimo para a Índia? Poxa, não. Isso foi o Vasco da Gama.

Tudo isto me faz lembrar Hannah Arendt, que, como muitos outros refugiados da II Guerra, passou por Portugal a caminho dos EUA. Dizia ela, não sei onde, que, salvo o povo e os aristocratas, nunca tinha visto sociedade mais americana. E é mesmo isso, basta ver os/as apresentadores/as do telejornal, ou a Merche Romero...

Continuo? Não. Apetece-me deitar-me ao rio, a ver se flutuo.

O Povo É Sereno #141

Em Louvor dos Palhaços

Não por simbolismo mais ou menos evidente, não por se estar em tempo de clowns, de malabaristas, de hipnotizadores e de homens-das-forças - mas sim por no Verão a memória ser mais nostálgica, intercedendo pelos tempos de grandes alegrias, de viagens interiores, de meandros que se acariciam com a palavra, com a recordação. Um mundo de circo, fremente e encantado.
Charlie Rivel, que vi ao vivo em Madrid numa tarde de surpresas, numa matinée inesquecível, com o seu lentíssimo andar, com as suas pequenas frases entrecortadas, com o seu huuuuuu! de rosto rodando para o céu, esse som surpreendente pontuando as estorinhas comoventes, terríveis e poéticas daquele que foi considerado o melhor palhaço do mundo.
E os Irmãos Campos, portugueses retintos num elenco circense todo composto por húngaros de Linda-a-Pastora, por franceses do Cadaval, por italianos da Madragoa? E Oscarito, o palhaço bailarino com as pernas de arame que todo se desconjuntava quando Simeão, o palhaço-rico, o submetia a rudes diálogos de que aliás saía mal-ferido? E que com o seu serrote-viollino, com a sua trompete destravada, com o seu saxofone bicéfalo nos levava por todos os lugares onde o sonho pode acontecer?
E - mas agora por fora - as distintas partenaires que eram jovens em início de carreira ou madames a finalizá-la, mas inteiramente frequentáveis para olhos adolescentes (um toquezinho de inusitado que ainda lhes conferia mais sedução...)?
Deixem que me lembre destes anos de vinho e rosas...
Pois, um intervalinho antes de outras coisas que tenho ditas, aprazadas, juradas pelas alminhas.
Como que um pacote de amendoins, com vossa licença expedita, antes até de entrarem os trapezistas, os domadores e os outros acrobatas.

Nicolau Saião

Perdão por esta interrupção #1

Horrível, está tudo perdido, é tudo horrível, e parece que não há salvação tão cedo! Desculpem este desabafo, mas é demais! Em Darfur, as milícias islamistas massacram gente daquela espécie humana que vocês sabem como é. E isto faz-me lembrar duas (ou três,ou quatro) pessoas que conheci há muitos anos, em Mannheim (terra do homem), na Alemanha, num curso de alemão: um israelita (isto é, um judeu de Israel), um palestino (isto é, um árabe de Israel) que tinham longas amáveis discussões numa língua comum que para mim era incomum, um egípcio absolutamente estúpido (quando íamos ao MacDonald's encomendava sempre porco, perguntava ao palestino se era porco, este dizia que sim e comia a comida do egípcio) e um sul-africano que me ajudou a traduzir Katherine Mansfield (campo do homem).

O sul-africano (ai, querido amigo, dizias tu que os negros, os teus negros, os negros da RSA, tinham chegado ao mais baixo dos baixos da escala humana, que nos guetos, palavra nascida da perseguição aos judeus, estavam todos desumanizados, que era a guerra de todos contra todos, que estava tudo perdido, e logo, pouco depois, acabou o apartheid, seja deus, ou Alguém por ele, louvado...) o sul-africano costumava queixar-se ao egípcio dos árabes que tinham islamizado as terras africanas à força. E que é que respondia o palerma do egípcio? Isto, que é fantástico:

"Não, os árabes davam a liberdade de escolha aos pretos."

"Ai sim?" perguntava o sul-africano. "E como era isso?"

"Se os pretos aceitassem o Islão, não eram mortos."

Pois, sim senhor. Continua a evangelização em Darfur, pelos vistos. Mas não é só por isso que estou tão triste. É por isto.

Como é possível alguém conceber um poster deste género, com tal conotação sei lá como lhe chamar para defender os direitos humanos? Será que eles nos venceram? Será que os grandes porcos instalaram os seus vermes nas nossas almas? Que faz aquele ariano a fazer de má consciência?

Post Scriptum #314

Recordando-me agora que fui contratado pelo QF&M para postar traduções e não elucubrações, apresso-me a dar satisfação aos nossos patrocinadores. Segue-se, pois, a tradução de um poema de Nikos Engonópoulos, que já apresentei. Entretanto, eheh!, que tal as duas derrotas frente à Grécia? Já era tempo de Portugal experimentar um pouco de mêtis grega (manha, como a do Ulisses, não confundir com metaxa, que é aguardente).

A VIDA E A MORTE DOS POETAS

Sinope
era o nome
- o oficial -
da chamada «Cidade das Nuvens»
e ainda «Cidade dos Incêndios»
que
fica ali algures
pela
América do Sul

esta cidade
aquática
e mais precisamente de cultura
helenística
iça se aos céus
como um bastão
e é situada seguramente
pelos especialistas
quer exactamente a meio
duma linha recta
traçada entre Maracaíbo
e Valparaíso
no Chile
quer
entre Maracaíbo de novo
e
Elbassã

ali
como as casas são feitas de fogo
os habitantes vivem entre chamas
sempre a arder
e sempre a renascer
das cinzas
exactamente como
a ave
a fénix

ali exactamente
nasceu - como se sabe -
o grande poeta grego da
antiguidade
Alektor

e inclusive durante umas escavações
descobriu se uma vez entre as ruínas
um estranho poema
- daquela época -
escrito em papel vulgar
com rebites
de ferro
e de cobre alternados
e tinta de lágrimas

eis então o poema:
«r u m a i a r o m a r o m ã s
a v e r d o v i d e n t e a v i d a»

dada a presença da palavra
«vidente»
o poema foi atribuído
- originalmente -
ao grande
Isidoro Ducasse
que acontece ser originário
daquelas
paragens

depois - porém - de madura reflexão
foi atribuído definitivamente
- e irrevogavelmente -
a uma mulher a que chamavam
a «Bela Dama»
mais conhecida aliás
pelo seu nome
estrangeiro de
«Bella Donna»

3.8.04

Señor Tallon #66

Acontece que tenho uma Caixa (de Previdência) especial,dado o meu estatuto de pré-reformado da função pública europeia (vulgo "burocracia", ou "eurocracia", PP dixit). Que é assim: vou ao médico, pago, e a Caixa reembolsa-me uma parte até certos limites.

Ora, na Bélgica, uma consulta de generalista custa 25 euros. Em Portugal, custa 70 euros. Como é possível? Vá, calma, já toda a gente(pronto, alguma) devia saber que eu sou um perigoso esquerdista, talvez até meio terrorista. Assim sendo, sou partidário do serviço nacional público de saúde, etc.

Mas, vá, rapaziada e raparigada, não entremos sequer nessa discussão. O caso está aí. Em Portugal, país altamente desenvolvido, uma consulta num médico generalista custa, grosso modo,70 euros, na Bélgica 25 euros. Não me venham dizer que isso se deve ao facto de o sistema de saúde da Bélgica ser mais liberal (de facto, a grande, esmagadora, maioria dos médicos belgas é convencionada e trabalha para as diferentes caixas que são organizadas pelos partidos, perdão, pelas correntes de opinião).

O que eu queria salientar, se me deixassem, é tão só que 70 euros é quase o triplo de 25 euros. Sabendo nós que os salários na Bélgica são muito superiores aos portugueses. Não acham que há aqui qualquer coisa de fabulosamente distorcido? Que a sociedade portuguesa é bestialmente injusta, no concerto europeu? Que as desigualdades sociais em Portugal são gritantes?

Que mereceram as chamadas elites portuguesas para terem destino tão fulgurante numa sociedade tão triste? Será que se premeia o mérito? Não me façam rir, que tenho cieiro.

(Nota, em tempo: na Bélgica, é raríssimo um médico, no consultório, ter secretária: é ele que atende o telefone e recebe o cheque...)

O Povo É Sereno #140

Pronto, estou pràqui virado. Agora meto-me com o Pacheco Pereira. É que, logo agora que eu me preparava para elogiar a sua direitura de espinha (recusa do cargo na Unesco), ele põe-se com as asneiras do costume. Não se faz, ó Pacheco!

Diz ele no Público de 29 de Julho deste ano:

"Por ignorância e falta de experiência, pensava, quando fui para o Parlamento Europeu, que as afirmações dos tablóides ingleses sobre a burocracia de Bruxelas eram exageradas. Os ingleses atribuíam-lhe um vezo autoritário e ultra-regulador, uma fobia ao escrutínio democrático, uma predisposição para gastar muito dinheiro com inutilidades, incluindo a do seu próprio conforto, e bastante corrupção. Agora, cinco anos depois, tendo-a visto funcionar de perto, nalguns casos de muito perto, estou muito mais inclinado em considerar que, descontados os exageros tablóides, têm no essencial razão."

É caso para perguntar: então a ignorância mudou tanto assim em cinco anos? Antigamente, achava que os tablóides exageravam (mas lá no fundo, descontando os exageros...), agora está "muito mais inclinado" (não se incline muito, que pode cair) a achar que, embora exagerem, têm razão. Cinco anos para mudar duma adversativa para uma concessiva e de oração principal, é obra.

Pior do que tudo, não explica. E, quando tenta explicar, mete os pés pelas mãos:

"Muitos dos aspectos desta burocracia têm vindo a ser moldados ao modelo inglês do "civil servant", modelo acentuado nos últimos anos pelas reformas do Comissário Kinnock, que prejudica tendencialmente mesmo os candidatos das grandes escolas ao modelo francês, como os "enarques"."

Claro, pata na poça: a "burocracia" europeia foi moldada segundo os modelos francês e alemão, pela simples razão que sua majestade britânica mais os britânicos todos não faziam parte da CEE quando esta apareceu. O serviço público europeu construiu-se pois a partir de concursos públicos com provas claramente favoráveis ao espírito "cartesiano" francês ou "racionalista" alemão. Isto para a grande maioria dos funcionários. Agora sim está a mudar, com a entrada dos britânicos em 1972 (magra falange, mas muito organizada), e, sobretudo, com a dos países nórdicos e de leste. Mas a velha geração dos eurocratas ainda não passou à reforma.

Claro que PP diz que o "modelo inglês" do "civil servant" (como eu gosto destas expressões anglossaxónicas e eminentemente democráticas: "servant"), "tem vindo a moldar" e "prejudica tendencialmente", o que não quer dizer nada, por poder dizer tudo (se "tem vindo a moldar", ainda não moldou, se é "tendencial", não se realizou, está algures entre menos e mais infinito...). Cinco anos para chegar a este nevoeiro? Valha-nos D. Sebastião.

Manuel Resende, ex-"eurocrata"

O Povo É Sereno #139

José Sócrates aproveitou mais uma aberta, do Público, para explicar à gente como sair da crise, na perspectiva do congresso do seu partido. Não resisto a responder, não sem antes explicar que:

1) Ninguém me encomendou o sermão, quero eu dizer, estou a meter foice em seara alheia;
2) Não sou do PS (Nem do Partido Socialista, nem do Partido do Sócrates).

Perdoem-me, pois, a pesporrência, por favor. Mas poxa! Chateia tanta acumulação de modernices no texto de Sócrates: agenda, sociedade inclusiva, tecnologia (no sentido de informática e correlativos), conhecimento, modernidade.

Um fio vermelho dá coerência ao texto: "estamos a atrasar-nos" (não convergimos com a média europeia) e só saímos disto "crescendo", e muito, isto é, crescendo e aumentando a produtividade. Para isso, há que melhorar a educação, perdão, a formação da força de trabalho.

Para quem se reivindica da tradição social-democrata, é irónico que o moderno seja deitar fora precisamente o núcleo duro da tradição social-democrata (a redistribuição dos rendimentos) e recorrer subliminarmente ao antiquíssimo ditado dos seus adversários: só se pode distribuir a riqueza que se produzir (o que é mentira, claro), portanto, o caminho do progresso social é produzir mais, sempre mais. Ou, para utilizar outro ditado mais modernaço da direita: na maré-alta, todos os barcos sobem.

Mas o que é mais trágico é que no mundo actual, isto é, desde há trinta anos (grande evolução...), a sociedade capitalista, que é aquela em que vivemos, se especializou num truque: aumento da produtividade pela compressão de custos salariais (directos e indirectos), e não para expansão dos bens materiais e serviços sociais ao dispor da grande massa dos menos favorecidos.

Não é que não haja telemóveis, porque os há, isto é, passou a havê-los. Continuamos a assistir a um progresso (ia pôr aspas, mas tirei) técnico, só que a repartição social do chamado progresso é cada vez mais desfavorável aos desfavorecidos. E de que vale ter um telemóvel, com os correspondentes custos, numa sociedade onde se tornou impossível viver sem telemóvel? É como o trânsito nas cidades: quando era uma minoria, era agradável, quando se "democratizou" passou a ser um inferno. Ou os cursos superiores: quando eram para uma minoria eram um privilégio, agora dão para arrumar carros.

Caros amigos: tal como as coisas estão, quanto maior a produtividade, menos vale o trabalho, mais precário ele é, essa é que é essa. E será assim enquanto o neo-liberalismo estiver aos comandos. E enquanto não invertermos este curso. É por isso que as soluções à Sócrates (e outras, mais à direita) só contribuem para agravar os problemas.

Trinta anos de evolução? Já chega, como dizia a corista ao bispo.