30.12.04

Ilha dos Amores # 116



Gilliam Wearing. Help, 1992-93.

Señor Tallon #92


(Imagem retirada de Elsinore)

Festival Internacional de Poesia de Medellín, Festival Internacional de Poesia de Bogotá, Festival Mundial de Poesia Venezuela 2004, Festival Internacional de Poesia do Rio de Janeiro, Festival Internacional de Poesia da Cidade de México, Festival de Poesia de Morelia, Festival Latino-americano de Poesia de Rosario, Festival Internacional de Poesia de Havana, Festival de Poesia Caribenha, Festival Internacional de Poesia de El Salvador, Festival Internacional de Poesia da Costa Rica, Festival de Poesia da Montaña de Jarabacoa, Festival de Montreal, Festival de Poesia SEERJ, Festival de Poesia de Los Ángeles, Festival de Poesia da Catalunha, Festival de Poesia de Granada, Festival Internacional de Poesia de Barcelona, Poetry International Festival Rotterdam, Festival de Poesia de WAAP (Windham Area Poetry Project, WAAP), Internacional de Poesia del Mundo Latino, Festival de Poesía Digital E-Poetry, Encontros de Poesia de Coimbra.
Revistas de poesia, fanzines de poesia, blogues de poesia, jornais com poesia, sessões de poesia, leituras de poesia, performances poéticas.
Consumidores de livros de poesia: muito poucos.

A poesia está a morrer? A poesia está a renascer?

Post Scriptum # 442

AUTOBÚS
Culo contra culo/ el único espejo es el culo/ erupto contra la vida/ el hombre es un asno de circo
(Leopoldo María Panero)

Post It #240

Haverá ainda espaço para alguma originalidade entre os balanços e listas dos melhores não-sei-o-quê-do-ano que se reproduzem por todo o lado? A resposta é um hilariante e redondo sim. O Times acaba de atribuir prémios para as declarações e gaffes mais divertidas de escritores e críticos literários, publicadas durante 2004.

Crucial philosophical problem of the year

"I have trouble keeping silent within me a protest that comes of finding oneself naked, one's sex exposed, stark naked before a cat that looks at you without moving, just to see . . . It is as if I were ashamed, naked in front of this cat, but also ashamed for being ashamed. A reflected shame, the mirror of a shame ashamed of itself, a shame that is at the same time specular, unjustifiable, and unable to be admitted to . . . Before the cat that looks at me naked, would I be ashamed like an animal that no longer has the sense of nudity? Or on the contrary, like a man who retains the sense of his nudity? Who am I therefore? Who is it that I am (following)? Whom should this be asked of if not of the other? And perhaps of the cat itself?"

(Jacques Derrida, extract from a "10-hour address", in "Animal Philosophy: Ethics and Identity")

29.12.04

Umbigo #122

Post Scriptum # 441

RESTAURANTE
(Gottfried Benn)

O sujeito lá do fundo pede mais uma cerveja,
para mim ainda bem, assim não preciso censurar-me
por também sorver uma nessa altura.
Pensa-se logo que se está contaminado,
eu li mesmo numa revista americana
que cada cigarro encurta a vida em trinta e seis minutos,
eu cá não acredito, possivelmente a indústria de coca-cola
ou uma fábrica de pastilha elástica estava por detrás do artigo.

Uma vida normal, uma morte normal
também não é nada. Também uma vida normal
leva a uma morte doente. Sobretudo a morte
não tem nada a ver com a saúde e a doença,
serve-se delas para os seus próprios fins.

O que é que você acha: a morte nada tem a ver com a doença?
Quero dizer: muitos adoecem sem morrer,
portanto aqui há qualquer coisa diferente,
um fragmento de dúvida,
um factor de incerteza,
a morte não está tão claramente delimitada,
também não tem foice,
observa, espreita do canto, refreia-se mesmo
e é musical numa outra melodia.

Tradução de Vasco Graça Moura.

Post Scriptum # 440




Susan Sontag. A polémica intelectual e activista norte-americana morreu, na manhã de ontem, aos 71 anos, num hospital de Nova Iorque.


Uma tarde de Novembro de 1977, no Hotel Londra [em Veneza] (...) recebi um telefonema de Susan Sontag, que estava no Gritti. "Joseph", disse-me ela, "o que é que faz hoje à noite?" "Nada", disse eu. "Porquê?" "Bem. é que encontrei hoje na piazza a Olga Rudge. Você conhece-a?" "Não. É a mulher do Pound, não é?" "É", disse Susan, "e convidou-me para ir lá a casa hoje à noite. Assusta-me um bocado a ideia de ir sozinha. Importa-se de vir comigo, se não tem outros planos?" Eu não os tinha, e disse-lhe que sim, com certeza, tendo percebido muito bem - bem de mais, até - a sua apreensão. A minha, pensei, talvez ainda fosse maior. (...)
A morada indicada ficava no sestiere Salute. (...) Tocámos à campainha, e a primeira coisa que vi, depois de a mulherzinha de olhos como pequenas contas tomar forma na soleira, foi o busto do poeta, obra de Gaudier-Brzeska, poisado no chão da sala. A ofensiva do tédio foi repentina mas irresistível.
Serviram-nos um chá, mas ainda mal tínhamos sorvido o primeiro gole, já a anfitriã - uma senhora grisalha, diminuta, bem-posta, já com muitos anos em cima - ergueu o dedo afilado, que se encaixou numa espiral mental, e brotou-lhe dos lábios franzidos uma ária cuja partitura é do domínio público pelo menos desde 1945. Que Ezra não era fascista; que receavam que os americanos (estranha declaração, na boca de uma americana) o mandassem para a cadeira eléctrica; que ele não sabia nada do que se passava; que não havia alemães em Rapallo; que ele só se deslocava de Rapallo a Roma duas vezes por mês, para o programa de rádio; que os americanos, uma vez mais, estavam enganados quando pensaram que Ezra pretendia... A dada altura deixei de registar o que ela estava a dizer e limitei-me a acenar com a cabeça (...).
O que me despertou do meu alheamento foi o som da voz da Susan, indicando que o disco chegara ao fim. Havia no seu timbre uma sonoridade estranha, e pus-me à escuta. Susan dizia: "Mas a Olga não pensa com certeza que os americanos se zangaram com Ezra por causa dos programas de rádio. Porque, se fossem só os programas, o Ezra seria apenas mais uma Rosa de Tóquio". Pois bem, foi das melhores réplicas que alguma vez me foi dado ouvir. Olhei para Olga. Devo dizer que ela encaixou como uma valente. Ou, melhor ainda, como uma profissional. Ou não terá percebido bem o que Susan disse - mas duvido. "Então o que foi?", perguntou. "Foi o anti-semitismo de Ezra", respondeu Susan, e eu vi a agulha de corindo que era o dedo da velha senhora encaixar de novo na espira. Esta face do disco rezava: "As pessoas t~em que entender que o Ezra não era anti-semita; afinal de contas, chamava-se Ezra; tinha vários amigos judeus, incluindo um almirante veneziano...". A melodia era igualmente conhecida e igualmente longa - cerca de três quartos de hora; mas desta vez era tempo de partirmos. Agradecemos o serão à velha senhora e despedimo-nos.

Joseph Brodsky, Marca de Água.

28.12.04

Post Scriptum # 439



Gottfried Benn
(Alemanha, 1886-1956)

AMEAÇA

Mas sabe-o:
Vivo dias de fera. Sou uma hora de água.
À tarde isto adormece-me as pálpebras como floresta e céu.
O meu amor sabe só poucas palavras:
Tão bem se está junto ao teu sangue.

Tradução de Vasco Graça Moura.

Cimbalino Curto #129

And Now for Something Completely Indifferent.

Depois de [Rui Rio] ter dito que o documento [Orçamento da Câmara do Porto] não trazia "novidade nenhuma", o autarca deu ontem a volta ao discurso, considerando que, afinal, "o orçamento tem uma novidade fantástica", que é a sua "coerência absoluta com o do ano anterior".

O orçamento foi aprovado com os votos favoráveis do PSD e CDS-PP e as abstenções dos deputados da CDU.

Umbigo #120

Diálogo entre duas antologias numa livraria.

ANOS 90 E AGORA: Devias cair da prateleira, sua pretensiosa.
ANOS 80 E DEPOIS: E se fosses levar no epânodo, sua cara de parábola?
ANOS 90 E AGORA: Coitada! Não passa de uma gorda. 700 páginas de banha.
ANOS 80 E DEPOIS: Merecias que te desse uma valente sinestesia, sua epanalepse mal feita.
ANOS 90 E AGORA: E coragem para isso? Voz de metonímia rachada...
ANOS 80 E DEPOIS: Estás a chamar-me cobarde, sua prosopopeia bexigosa?
ANOS 90 E AGORA: Não, que ideia! Era apenas um eufemismo, querida. O que eu realmente quis dizer é que não passas de antonomásia com o anacoluto aos saltos.
ANOS 80 E DEPOIS: Antífrase de meia tigela!
ANOS 90 E AGORA: Litote sem valor perifrástico!
ANOS 80 E DEPOIS: Vai reciclar papel!
ANOS 90 E AGORA: Vai tu!

Ilha dos Amores # 115



Central Park - New York, USA, 1998.
Gérard Castello-Lopes.

27.12.04

Post Scriptum # 438

Ainda o Natal. Um poema de Carlos Drummond de Andrade, enviado pelo Tiago Barbosa Ribeiro.



PAPAI NOEL ÀS AVESSAS

Papai Noel entrou pela porta dos fundos
(no Brasil as chaminés não são praticáveis),
entrou cauteloso que nem marido depois da farra.
Tateando na escuridão torceu o comutador
e a eletricidade bateu nas coisas resignadas,
coisas que continuavam coisas no mistério do Natal.
Papai Noel explorou a cozinha com olhos espertos,
achou um queijo e comeu.

Depois tirou do bolso um cigarro que não quis acender.
Teve medo talvez de pegar fogo nas barbas postiças
(no Brasil os Papai-Noéis são todos de cara raspada)
e avançou pelo corredor branco de luar.
Aquele quarto é o das crianças
Papai entrou compenetrado.

Os meninos dormiam sonhando outros natais muito mais lindos
mas os sapatos deles estavam cheinhos de brinquedos
soldados mulheres elefantes navios
e um presidente de república de celulóide.

Papai Noel agachou-se e recolheu aquilo tudo
no interminável lenço vermelho de alcobaça.
Fez a trouxa e deu o nó, mas apertou tanto
que lá dentro mulheres elefantes soldados presidente brigavam por causa do aperto.

Os pequenos continuavam dormindo.
Longe um galo comunicou o nascimento de Cristo.
Papai Noel voltou de manso para a cozinha,
apagou a luz, saiu pela porta dos fundos.

Na horta, o luar de Natal abençoava os legumes.


De "Alguma Poesia", 1930.

Mensagem da Gerência.

Toda Raba.

Cimbalino Curto #128

O Centro de Operações Psicológicas da NATO, sediado na cidade do Porto, está de parabéns.

Post It #239

Esta é a única Verdade.

Post Scriptum # 437

Durante a época dos exames, Hemnalini abandonara os trabalhos de costura. Alguns dias depois, recomeçou as lições dos trabalhos de agulha. Ramesh achava esta ocupação absolutamente inútil, porque, se os dois gostavam de discutir literatura, entendendo-se à maravilha neste assunto, quando o miserável trabalho se impunha, sentia-se ele relegado para segundo plano. Um dia perguntou:
- Que fantasia lhe dá para coser todo esse tempo? Deixe isso àquelas que não têm outra coisa para fazer.
Como única resposta, Hemnalini sorriu e enfiou a agulha.
(...)
Ao entrar, uma manhã, no escritório, Ramesh encontrou sobre a mesa uma pasta forrada de cetim, toda bordada de flores. Num canto tinha a letra R, no outro uma flor de loto trabalhada em fio de oiro. Ramesh não teve dificuldade em adivinhar quem tinha feito uma coisa tão bela; o seu coração bateu mais apressado. Todo o seu desprezo pelas agulhas desvaneceu-se num instante.

Rabindranath Tagore, O Naufrágio.
Tradução de Telo de Mascarenhas (Colecção Prémios Nobel/ DN)

23.12.04

Mensagem da Gerência.



DEPOIS, ABRINDO OS SEUS TESOUROS, OFERECERAM-LHE PRESENTES: QUARTZO, FELDSPATO E MICA.


A gerência deste blogue deseja a todos os seus sócios e amigos umas boas festas (independentemente da natureza das festas).

Post It #238

Para os apreciadores de Philip Roth. Aqui, há uma excelente entrevista com o autor, a pretexto do seu novo livro "The Plot Against America".

Why did you choose "Philip Roth" as your protagonist?

Philip Roth: I told myself this when I started this book - make one change. Just change the 1940 election and then follow out the consequences of it. Therefore, I used my family and me. Now, had I invented a family, I would have wound up inventing a family very much like ours. I also thought if I used our real names and said, "Look, I was there," at a certain point the reader might forget that this was an invention. A false memoir is what it is.

22.12.04

Post Scriptum # 438

Resumo da peça "Sappho", de Franz Grillparzer, de acordo com a "História da Literatura Alemã", de Helen Watanabe-O'Kelly, com ligeiríssimas alterações.

A peça tem início no momento em que Safo regressa a casa, depois de conquistar a coroa de louros pela sua poesia, em Olímpia. A sua felicidade é amplificada pelo amor que nutre por Fáon, um jovem que trouxe consigo de Olímpia. No entanto, o seu plano para substituir pelas alegrias domésticas de esposa a sua carreira como poeta afunda-se perante a incapacidade de Fáon em amar uma mulher que ele admira e exalta. Quando Safo se apercebe de que ele se apaixonou pela sua serva, uma rapariga mais simples e mais convencionalmente feminina, ela reconhece que fracassou no seu dever para com os deuses, ao subordinar a sua vocação poética à sua felicidade pessoal, e, numa dramática conclusão, atira-se de um penhasco para o mar.

Post Scriptum # 437

Xenófanes
(Grécia, c. 570 a.C. - 525 a.C.)

ELOGIO DA SABEDORIA

Mas se alguém alcançar a vitória com a velocidade
dos pés, ou do pentatlo, - onde fica o santuário de Zeus
junto das águas de Pisa, em Olímpia - ou na luta,
ou porque sabe a arte dolorosa do pugilato,
ou ainda num concurso terrível, chamado o pancrácio,
será mais ilustre à vista dos seus concidadãos,
terá o lugar de honra mais aparatoso nos jogos
e alimentação a expensas públicas
da sua cidade, e uma dádiva, que será para ele um tesouro.
E, se ganhar com cavalos, tudo isto ele obterá,
sem ser digno como eu. Pois melhor do que a força
de homens e corcéis é a nossa sabedoria.
É isso um modo de pensar leviano, e não é justo
preferir a força à notável sabedoria.
Pois nem que viesse entre o povo um valente pugilista,
ou um homem hábil no pentatlo ou na luta,
ou na corrida, que tem ainda a preferência,
e tantos actos de força demonstrasse no combate,
nem por isso a cidade estaria em melhor ordem.
Pequeno prazer seria para a urbe
que alguém vencesse nas provas das margens do Pisa.
Pois não é isso que enche os cofres da cidade.

Tradução de Maria Helena da Rocha Pereira.

Cimbalino Curto #127



"O Natal de 2004 irá certamente ser relembrado como aquele em que os portuenses se reencontraram com a Baixa do Porto.
Quem por lá tenha passado nestes dias de compras natalícias, mergulhou certamente num mar de gente: famílias nas ruas, nas lojas, nos cafés, nos restaurantes, crianças à solta sob as iluminações e jovens passeando e saboreando as típicas castanhas assadas. (...)
Penso que o principal indutor deste movimento de atracção pela tradição que a Baixa representa é a vontade perene dos portuenses em regressar à sua história. (...) Vontade que sempre esteve latente; mas sobravam os desconfortos e faltavam os meios. [Confortos e meios] que aí estão agora, para transformar o centro do Porto numa imensa mancha humana. Assim, não é de estranhar que, como outrora, os cafés estejam cheios de gente. (...) Que haja de novo convívio, vivência."

Paulo Morais, Vice-presidente da Câmara do Porto.

Este texto teve o alto patrocínio dos óculos graduados "Porto Imaginário".

Post It #237



Feliz Natal, o caraças!

21.12.04

Ilha dos Amores # 114

A Cristina Fernandes, que obviamente dispensa apresentações, tem um "novo" blogue. Chama-se Last Tapes. Creio que não vale a pena acrescentar mais nada.

Post It #236

Quem disse que a Rússia deixou de ser uma superpotência?

"The Pushkin State Fine Arts Museum recently hosted the presentation ceremony of the Debut independent literature award. (...) According to the Noviye Izvestia newspaper, 43.000 works were submitted to the contest."

Mais aqui.

Cimbalino Curto #126



Rui Rio e o PSD do Porto não param de nos surpreender. O Público de domingo noticiava que o novo slogan do partido, que será usado durante a campanha autárquica, é "Novo Ritmo para a Cidade". Dadas as circunstâncias, é o slogan mais bizarro que os homens do marketing do PSD podiam ter escolhido. Depois de quatro anos de Porto em coma profundo, apostar na palavra "ritmo" revela um sentido de oportunidade realmente extraordinário. Citando Pacheco Pereira, "Estranho mundo o deles. Onde será?"

Post Scriptum # 436

Contos de Luís Graça no Granito.

Concluimos hoje a apresentação dos novos contos de Luís Graça, com a publicação da terceira e última parte do excelente "´Tá Tudo na Maior?", pertencente ao seu livro "15 Desatinónimos para Fernando Pessoa", a publicar em breve.

'TÁ TUDO NA MAIOR?
(Terceira Parte)


Mais um delírio. Mais outro grande momento para a história da música. Até as ameaças de nuvem se balançaram no swing compassado da voz Leal. E Bernie Soares voltou para o volante do microfone.
- Há muitos intelectuais que não gostam do Roberto Leal. "E dão a sua opinião. Mas uma opinião é uma grosseria, mesmo quando não é sincera. Toda a sinceridade é uma intolerância. Não há liberais sinceros. De resto, não há liberais.
Ah! é um erro doloroso e crasso aquela distinção que os revolucionários estabelecem entre burgueses e povo, ou fidalgos e povo, ou governantes e governados. A distinção é entre adaptados e inadaptados: o mais é literatura, e má literatura. O mendigo, se é adaptado, pode amanhã ser rei, porém perdeu com isso a virtude de ser mendigo. Passou a fronteira e perdeu a nacionalidade."

As horas passaram. As horas voaram.Tema após tema. Delírio após delírio. Lisboa a suar de prazer. Lisboa voraz de música. Lisboa a destilar ânsias de melodia. Os "Village Persons" a sair do palco. Zeus a assobiar pelo meio das barbas, a pedir bis, lá das galinheiras. Neptuno a bater com os pés lá do fundo dos oceanos. Então e os encores? Encore, rien? Atão eles na voltam ao palco?
Voltou só um a anunciar a surpresa. Ricky Reis:
- Thank you, Lisboa. Especialmente para vocês, já em pleno prolongamento, a última surpresa. Para as meninas já tivemos um louro. E agora anunciamos um chocolatinho, bem moreno, para os meninos. É uma jovem promessa de Newark, toca piano e fala inglês: Alícia Chaves.
Por amor de Deus! Ai o nosso coração. Alícia Chaves cantou e encantou em "If I ain't got you", dedicado ao líder da banda e seu conselheiro musical, Bernie Soares.
- Esta miúda vai longe... e desnivela-se em conglomerados de sombra, recortados de um lado a branco, com diferenças azuladas de madrepérola fria (página 385).
Final do concerto. Todo a malta a penantes para casa. Músicos e entourage para os bastidores. E o Bernie com tiques de estrela do rock, a lançar olhares libidinosos às miúdas que lhe apareciam pela frente.
Mesa farta, tipo casamento. Bernie mandou-se às entradas: melão de Almeirim com morcela. E verde à pressão.
- "Conheço, translata, a sensação de ter comido de mais. Conheço-a com a sensação, não com o estômago. Há dias em que em mim se comeu de mais. Estou pesado de corpo e lorpa de gestos; tenho vontade de não me tirar dali de maneira nenhuma."
E vá de sentar a Alícia ao colo, sem respeito nenhum:
- Ai não te chamas mesmo Alícia Chaves? Chaves é nome artístico, porque a tua família é de Chaves e emigrou para os States... tem piada, só agora é que sei disto... e já te ando a dar conselhos há uns tempos...
"As tuas mãos são rolas presas. Os teus lábios são rolas mudas (que aos meus olhos vêm arrulhar). Todos os teus gestos são aves. És andorinha no abaixares-te, condor no olhares-me, águia nos teus êxtases de orgulhosa indiferente. Tu és toda alada." (página 292).
Bernie sentia um prazer imenso em ter Alícia ao seu colo. "Todo o prazer é um vício, porque buscar o prazer é o que todos fazem na vida, e o único vício negro é fazer o que toda a gente faz."
E a madrugada correu suave. Croquetes, paio, lombo enguitado (petisco alentejano, não conhecem?), batatas fritas de pacote, lagosta à Terminator, aletria, mousse de chocolate caseira, lasagna clássica e vegetariana. Coisas da música.
Depois, Fernando Pessoa entrou no convívio, a esfregar as mãos. O festival tinha corrido bem.
- Amanhã, já sabem. Todos prontinhos às 14 horas, temos um gig em Loures, no Pavilhão Paz e Amizade.

Von Grazen, 28/7/2004, 03h11m

Doping: Coors (Borrowed Heaven), The diary of Alicia Keys, gelados da Hagen-Dasz.


(Luís Graça)

20.12.04

Cimbalino Curto #125 temperado com Umbigo #118

Da imensa lista de putativos candidatos do PS à Câmara do Porto, que inclui algumas personagens quase anedóticas, parece-me óbvio que Elisa Ferreira é a que oferece mais garantias de qualidade. De qualquer maneira, creio que uma candidatura de Manuela de Melo corresponderia ao melhor dos cenários, mesmo para os eleitores que não se revêem no PS.

Post It #235

acho uma pena o cigarro fazer mal à saúde.
ao cinema acho que faz muito bem. alguém consegue visualizar humprey bogart ou james dean sem um cigarro? o que seria de belmondo sem o displicente cigarro em un bout de souffle? ou dos filmes de wong kar wai sem a fantasmática dança da nicotina volatizada?

(Ale, nas Torneiras de Freud )

Post Scriptum # 434

Contos de Luís Graça no Granito.

Prosseguimos hoje a apresentação dos novos contos de Luís Graça, com a publicação da segunda parte de "´Tá Tudo na Maior?", pertencente ao seu livro "15 desatinónimos para Fernando Pessoa", a publicar em breve.

'TÁ TUDO NA MAIOR?
(Segunda Parte)


Bernie queria prosseguir. Bernie queria andar para a frente e não conseguia. Faltava-lhe espaço afectivo. Faltava-lhe uma aberta entre os fãs. Bernie levantou os braços e tentou continuar:
- Muito obrigado! We love you! Thank you, Lisbon. Portugal é grande!
A multidão apanhou o lamiré e mudou de palavra de ordem:
- Portugal! Portugal! Portugal!
Milhares de bandeiras que tinham sobrado do Euro-2004 emanciparam-se das mãos dos fãs e começaram a bailar na atmosfera, autênticos bailarinos russos em pontas.
- Obrigado, Portugal! Obrigado, Lisboa! Mas deixem-me dizer...
A multidão não deixava. Se não fosse o controlo apertado da segurança, quase se poderia dizer que uma considerável parte da multidão estava "pedrada". Mas faz algum sentido falar disto num festival musical?
Finalmente, o senhor Soares lá conseguiu passar a sua mensagem:
- "Uma só coisa me maravilha mais do que a estupidez com que a maioria dos homens vive a sua vida: é a inteligência que há nessa estupidez. A monotonia das vidas vulgares é, aparentemente, pavorosa. Estou almoçando neste restaurante vulgar, e olho, para além do balcão, para a figura do cozinheiro e, aqui ao pé de mim, para o criado já velho que me serve, como há trinta anos, creio, serve nesta casa. Que vidas são as destes homens? Está há 40 anos em Lisboa e nunca foi sequer à Rotunda, nem a um teatro!"
Dois fãs que seguiam os "Village Persons" para todo o lado entraram em diálogo:
- O gajo já fez este discurso em Copenhaga, há dois meses!
- Pois foi. Trocou só as cidades e a profissão do velho. Em Copenhaga era um carpinteiro.
- Mas onde é que o gajo vai buscar estas coisas?
- Então não sabes?
- Não...
- Livro do Desassossego, página 183, Assírio e Alvim.
- Ah! pois é...

Bernie Soares anunciou a canção seguinte do alinhamento que os "Village Persons" cumpriam com a devoção de uma seita secreta:
- E agora um tema de Álvaro Fields, composto já há bastante tempo, quando éramos jovens. Mas ainda nos sentimos bastante jovens. Uma composição de Álvaro Fields: "Freddie".
E o grupo lá atacou a balada:
"Freddie, eu chamava-te Baby, porque tu eras louro, branco e eu amava-te/Quantas imperatrizes por reinar e princesas destronadas tu foste para mim/Mary, mal tu sabes quantos casais honestos, quantas famílias felizes/viveram em ti os meus olhos e o meu braço cingindo e a minha consciência incerta/Mary, eu sou infeliz/Freddie, eu sou infeliz".
Acenderam-se isqueiros, iniciaram-se em ofuscantes cintilações nocturnas aqueles coisinhos verde-alface e aqueles coisinhos rosa que são vendidos a pataco. Os braços da multidão ao jeito das vozes, de um lado para o outro, de um outro para o lado, como uma espiga ao vento nos verdes trigais em flor.
E depois Bernie Soares cedeu um bocadichinho de protagonismo ao Ricky Reis e ele veio anunciar a presença-surpresa de um convidado muito especial:
- E agora temos uma surpresa para vocês. É um homem de um sucesso enorme, respeitado em todo o mundo. Estava muito sossegadinho na tenda VIP, lá bem ao fundo, naquelas colinas distantes, a tentar passar despercebido. Mas nós fomos lá buscá-lo. Perdemos um bom bocado a convencê-lo, mas é com grande prazer que posso anunciar que o convidámos a vir cantar um tema do Álvaro Fields. Meus amigos e minhas amigas, é um sumo privilégio poder anunciar a presença neste estaminé de um grande senhor do mundo da canção, de um grande senhor da canção e de um grande senhor do mundo: Roberto Leal!
Roberto Leal entrou em cena no seu trote habitual de Alter, imaculadamente branco, com uma discreta publicidade institucional à Olá nas costas do casaco.
- Boa-noite, Lisboa! Olá, brasileiros deste país! Hello, everybody! My name is Leal, Roberto Leal. Shaken, not coiso-e-tal.
E o raio do homem agarrou logo a audiência. Passou o microfone por cima da cabeça, passou o microfone por baixo das pernas, passou o microfone por trás das costas. Pouca gente sabe, mas Roberto Leal fez um estágio no Chapiteau, na Costa do Castelo, quando era jovem.
- Lisboa, estás preparada? Então, aqui vai. De Álvaro Fields, "Meu coração postigo".
"Meu coração clube, sala, plateia, capacho, guichet, portaló/Ponte, cancela, excursão, marcha, viagem, leilão, feira, arraial/Meu coração postigo/Meu coração encomenda/Meu coração carta, bagagem, satisfação, entrega/Meu coração a margem, o limite, a súmula, o índice/Eh-lá,eh-lá,eh-lá, bazar o meu coração".
Mais um delírio. Mais outro grande momento para a história da música. Até as ameaças de nuvem se balançaram no swing compassado da voz Leal. E Bernie Soares voltou para o volante do microfone.
(Continua)

(Luís Graça)

18.12.04

Cimbalino Curto #125

Afinal, cometemos a maior das injustiças ao insistir na ideia de que Rui Rio era alérgico a tudo quanto cheirasse a cultura. As suas declarações a propósito da atribuição do Prémio Pessoa ao romancista portuense Mário Cláudio, são uma espécie de manifesto em defesa do papel da cultura para a projecção da cidade. Permitam-me que abra umas pomposas aspas para as sábias palavras do senhor presidente da Câmara: "Esta distinção vem reconhecer uma personalidade e uma vasta obra em prol da cultura, em que o Porto se revê e se orgulha. (...) A obra de Mário Cláudio, que tem no Porto a principal fonte de inspiração, projecta a sua 'cidade querida' para a ribalta dos que cultivam os valores culturais na mais nobre da sua expressão."

17.12.04

Cimbalino Curto #124



As relações entre Rui Rio e Pinto da Costa estão de novo animadas. Durante a terceira sessão do ciclo de debates "Olhares Cruzados sobre o Porto", organizadas pelo Público, Rui Rio voltou a atacar o presidente do F. C. do Porto, comparando o percurso de Pinto da Costa ao de Bernard Tapie ou Jesus Gil y Gil. O líder portista, por sua vez, ripostou mostrando-se, segundo o Público, "disponível para 'enfrentar' Rui Rio nas próximas eleições autarquicas."
Aparentemente, Rio e Pinto da Costa juraram um ao outro ódio eterno. Mas a verdade é que o F. C. do Porto é uma espécie de seguro de vida para Rui Rio, e os quase quatro anos de desolação que a cidade viveu sob o mandato de Rio permitiram a Pinto da Costa brilhar como nunca tinha conseguido antes.
Façamos um exercício. Vamos supor que durante estes quatro anos o F. C. do Porto não tinha ganho nada. Nem Taça UEFA, nem Liga dos Campeões, nem Taça Inter-Continental, nem sequer o pequeno campeonato português. Vamos supor que, durante estes quatro anos, o "povo do Porto" não tinha tido nada para festejar. Provavelmente, e à falta de outros motivos de interesse, o "povo do Porto" repararia que existe uma instituição chamada "Câmara do Porto", que é responsável pela gestão da cidade. Provavelmente, o "povo do Porto" repararia que a cidade está sem rumo, não tem nada para oferecer, é um deserto de ideias, de projectos. Totalmente surda à palavra e insensível ao espírito. Estou em crer que o "povo" repararia que o "seu" Porto deixou de existir. Está morto. Que a verdadeira cidade afinal não é a azul e branco mas a preto e branco.
Outro exercício: vamos supor que Rui Rio e a sua equipa de contabilistas tinham desenvolvido um excelente trabalho. Vamos supor que, em quatro anos, Rui Rio tinha conseguido devolver ao Porto o seu orgulho, capitalizado os proveitos da Capital Europeia da Cultura, lançado novos projectos, animado a cidade. Vamos supor que Rui Rio, à falta de melhor expressão, tinha posto de novo os portuenses a sonhar. Vamos supor que Pinto da Costa era obrigado a partilhar o protagonismo com um autarca popular e apreciado por todos os "povos" do Porto. O que seria do "carismático líder portista" se tivesse que conviver com a sombra de um Rio competente?

Post Scriptum # 431

Contos de Luís Graça no Granito.

Iniciamos hoje a apresentação do terceiro conto de Luís Graça, "´Tá Tudo na Maior?", pertencente ao seu livro "15 desatinónimos para Fernando Pessoa", a publicar em breve.

'TÁ TUDO NA MAIOR?
(Primeira Parte)


- 'Tá tudo na maior?
- Iééééééééé!
- Não 'tou a ouvir nada!
- IÉÉÉÉÉÉÉ!
- Assim, sim. Boa noite, Lisboa.

Rock in Rio em Lisboa. Mais uma edição a caminho do sucesso. O promotor Fernando Pessoa acertara na "mouche" outra vez. Para além de coordenador do festival, era ainda o "manager" da banda do momento, os "Village Persons": Bernie Soares, Álvaro Fields, Ricky Reis e Al Caeiro.
- E agora, a banda que todos esperavam, no palco principal da Bela Vista, para encerrar da melhor forma a edição deste ano: os "Village Persons"!
Mal Fernando Pessoa acabou de anunciar a banda, um enorme "bruá" subiu aos céus, fazendo-se ouvir até à Alameda Afonso Henriques. Cerca de 120 mil pessoas (a antiga lotação do Estádio da Luz) em delírio ovacionaram a banda que o país inteiro consagrou.
Os holofotes varreram o palco e incidiram sobre o quarteto de luso-americanos, que optou por entrar em cena ao som de um dos grandes "hits" do grupo: "In the poetry".
"Na poesia, é onde gostas de criar, na poesia, versos feitos para amar... we want you... we want you... we want you as a new recruit... larilolé... larilas... olé!... e quem não salta não é poeta... e quem não salta... não é poeta!".
Apesar da veterania da banda, o facto é que o concerto de encerramento do Rock in Rio funcionava como uma gigantesca ponte de união entre três gerações. Ao seu lado, a catarse musical de Paul McCartney ou Peter Gabriel não passara de uma brincadeira de crianças.
Al Caeiro, com as suas raízes campestres, estava vestido de chefe índio, como habitualmente, em homenagem à Associação de Amizade Cernancelhe - Connecticut; Bernie Soares, para não variar, dava nas vistas com os seus cabedais negros à "motard"; Ricky Reis era o marujo de serviço, com um estetoscópio ao pescoço; por fim, Álvaro Fields marcava presença como o polícia da estrada.

- Olá, Lisboa! É uma alegria enorme estar aqui no Rock in Rio - gritou Bernie Soares, o líder da banda, no final do primeiro tema de um concerto que tinha a duração prevista de três horas.
- E agora, com muito amor e carinho e um abraço especial para todos os emigrantes que estão a passar férias em Lisboa e andam lá fora a lutar pela vida... vamos tocar "A meio do outeiro", uma composição do Al Caeiro.
Num fabuloso espectáculo de luz, cor e alegria, "A meio do outeiro" arrebatou a multidão, inteiramente conquistada pelas brilhantes coreografias da banda, que misturavam sabiamente o "disco", o "soul", o "funk" e o folclore português, com um ligeiro toque de madressilva e Madredeus.
"Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro/Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava./ Ele é o humano que é natural/Ele é o divino que sorri e que brinca./E por isso é que eu sei com toda a certeza/Que ele é o Menino Jesus verdadeiro".
De rostos colados, todos à volta do microfone de Bernie Soares (o "lead singer"), Al Caeiro, Ricky Reis e Álvaro Fields conferiam um enorme "feeling" ao refrão: "Menino Jesus, Menino Jesus, Menino Jesuuuus verdadeeeeiroooo".
Mais atrás, uma loira, uma ruiva, uma morena e uma chavala de cabeleira afro tratavam dos coros: "A meio do outeiro, a meio do outeiro, a meio do outeiro... só tu... só tu... Menino Jesus... verdadeiro... verdadeiro... a meio do outeiro".
Centenas de T-shirts brancas com letras negras eram agitadas pelos fãs: "A meio do outeiro, Albert Caeiro". Ou então T-shirts negras com letras brancas: "Ricky Reis: Doctor, Doctor, give me the news, bad case of loving you".
As miúdas do coro estavam frenéticas no seu metro e 80, mais as botas negras de tacões altos, para combinar com os vestidos prateados brilhantes, colados ao corpo, com um decote sugestivo. Uma perfeita simetria de carnes, odores e movimentos.
No meio da multidão, estudantes universitários carregavam barris de cerveja às costas, com uma bandeirinha a sobressair do conjunto, estilo carrinho de choque da defunta Feira Popular. Os fãs, ávidos, consumiam cerveja às toneladas, mantendo, apesar disso, um comportamento irrepreeensível.

A noite estrelada convidava à fraternidade e à troca de intimidades. Os olhares dos fãs cruzavam-se insistentemente pelo meio dos decibéis, à espera de um heliporto do afecto onde acostar. À espera de um colo maternal feito doca.
- Obrigado, Lisboa! We love you! Vocês são uma audiência do mais great que há! Sinceramente trully! Palavra de honour! É uma grande honra para nós estar a actuar aqui. Viemos directos dos States só p'ra vocês!
Palmas. Aplausos. Histerismos vários.Aquelas coisas habituais nos concertos, não é? É preciso dar um certo desconto.
- Mas não foi sacrifice nenhum. Foi um verdadeiro pleasure! A gente voou de Newark, disse adeus à estátua da Liberty e pensou que vinha dar alegria aos nossos queridos portugueses. Nós somos 45 por cento americanos, 45 portugueses e 10 por cento não respondem/não sabem. Mas acima de tudo a nossa ária é a língua portuguesa!
Mais um tema. Mais uma voltinha. Mais uma viagem. É entrar, meus senhores, é entrar!
- Obrigado, Lisboa! Aqui a cantar para vocês, neste maravilhoso palco, as lágrimas escorrem-me pelo rosto. E eu gosto de ter as lágrimas a escorrer pelo rosto. Obrigado, Lisboa! Mas infelizmente, pelo mundo fora, há muitas crianças a chorar de fome. Crianças que não choram de alegria, como eu, neste momento, aqui convosco. Por isso gostava de vos dizer duas ou três coisas nesta noite de amor...
A multidão não deixou Bernie Soares prosseguir. Bastou uma fã de mamas a abanar ao vento proferir a palavra mágica: "Bernie! Bernie! Bernie!". Logo os milhares de fãs se puseram a repetir o alakazam do fanatismo musical: "Bernie! Bernie!Bernie!".
Bernie queria prosseguir. Bernie queria andar para a frente e não conseguia. Faltava-lhe espaço afectivo. Faltava-lhe uma aberta entre os fãs. Bernie levantou os braços e tentou continuar:
(Continua)

(Luís Graça)

16.12.04

Mensagem da Gerência.

O Nicolau Saião, nosso colaborador de longa data, inicia hoje a sua participação na qualidade de colaborador permanente. Quem nos lê habitualmente sabe o que pode esperar do Nicolau. Os que não nos lêem, não sabem o que perdem.

Cimbalino Curto #123



Num post recente, o Filinto Melo lembrava que desde que o contabilista entrou ao serviço, o Porto acinzentou-se. Estou de acordo. Mas também não estou. De um certo ponto de vista, o Porto até está mais divertido. Explico-me: antes da chegada do contabilista o absurdo existia apenas nos romances e em alguns poemas com alguma idade. Agora, o absurdo é a própria realidade. O absurdo transformou-se na principal cultura da cidade. Surgiram importantes plantações de absurdo um pouco por toda a parte e principalmente nas chamadas "instituições" do Porto. Querem uma prova? Dou duas: as declarações de Paulo Morais e Laura Rodrigues, a propósito da abertura eternamente adiada do Cinema Batalha, espaço que pertence à câmara e que foi cedido à Associação de Comerciantes do Porto. Estão ambas no Jornal de Notícias de dia 14.

"Já há largos meses que as obras estão prontas. Não sei o que aconteceu. Eu próprio me interroguei por que é que o (cinema) Batalha ainda não está aberto. Penso que está pronto desde Janeiro."
(Paulo Morais, Vice-Presidente da Câmara do Porto)

"(A abertura do cinema Batalha) tem de ser em 2005. Caso contrário, nós abandonamos o projecto."
(Laura Rodrigues, Presidente da Associação de Comerciantes do Porto)

Creio que agora já ninguém duvida que a poesia está de novo na rua.

Post Scriptum # 430



Safo
(Grécia/ Ilha de Lesbos, Séc. VI a.C.)

O que de mais belo há
sobre a terra negra
dizem alguns que é
um esquadrão de cavalaria; outros,
de infantaria; outros ainda,
uma esquadra de navios.
Para mim é aquilo
a que cada um está
preso pelo coração.
Fazer com que isto seja
de todos entendido
é o que há de mais fácil. Na verdade,
Helena, que em beleza
a todos muito suplantava, abandonou
o mais excelente dos homens, para Tróia
navegou e, esquecida
da filha e dos pais queridos, deixou...
............................................: Isso
me traz agora à lembrança Anactória,
que está ausente. Anactória cujo
gracioso andar e brilho
irradiante do rosto
mais desejaria ver que os carros
de guerra dos lídios e os soldados
com suas armaduras.
....................................................

Tradução de Albano Martins.

Para os interessados, vale a pena confrontar a leitura deste fragmento de Safo com o célebre "Politics" de Yeats.

15.12.04

Post It #234



"Sleeping Beauty hasn't always been a docile object, says Lyn Gardner. She's had to face a cannibal queen, a rapist king - and even a Nazi prince."

As mil e uma vidas da Bela Adormecida. Excelente lição de História, aqui.

Post Scriptum # 429

Contos de Luís Graça no Granito.

O INSONDÁVEL CASO DO MISTERIOSO PONTO GL
(Terceira e Última Parte)


Fernando sentou-se, pediu um tartex e um conhaque, só para entreter. Um criado de cabelos grisalhos e pinta de bissexual veio limpar a mesa das migalhas, com uma escovinha toda amaricada. O som da escova na toalha manchada de "Porta da Travessa tinto 1640, 2ª edição" produziu um efeito calmante no lisboeta, que pediu um charuto e se recostou no amplo cadeirão de cabedal. Pouco depois chegou Florbela, com um saco de plástico preto e doirado.
- Então, essas compras?
- Sabe, Fernando, este país está cada vez mais pindérico. Para além de fechar às 19 horas, a sex-shop tem uma capacidade de rotação de produtos verdadeiramente escassa. Lá tive de comprar um capuz do ano passado, uma coisa completamente ultrapassada. Já ninguém fustiga em Paris com um capuz assim. Mas nós somos o esgoto da Europa e Vila Viçosa deve ser a capital do "dumping" dos produtos S&M.
- Tenha calma, Florbela. Também não há-de ser assim tão mau.
- É, sim senhor. Já viu a carta, Fernando? Aconselho particularmente as "Enguias ao supremo enleio". É um prato de homenagem ao meu poema, que termina assim: "E quando a derradeira, enfim, vier,/Nesse corpo vibrante de mulher/Será o meu que hás-de encontrar ainda...".
Fernando estava mais virado para o tornedó de carapaus com molho à espanhola, acompanhado por feijão verde e castanhas assadas, uma especialidade do Chef Sílvio, recém-chegado de um estágio de "nouvelle cuisine" na Tasconha. Florbela pediu a Hamlet de Ovas de Intrujão. Com uma salada de alface e tomate, temperada com agriões.
O repasto estava a decorrer da melhor forma, ao som ambiente de Mozart, que se esgueirava pela sala ampla com a subtileza de um esquilo dos jardins de Gotemburgo. Na mesa ao lado, um sujeitinho não parava de rabiscar, em fúria, apontamentos para algo que o afligia. Escrevia e riscava, riscava e escrevia.
Às tantas, Fernando António, prestável, ofereceu-se:
- Peço desculpa de me intrometer, mas a minha pátria é a língua portuguesa. Posso ajudá-lo?
- Obrigadíssimo. Estou a tentar escrever a minha prosa de hoje para a crónica "O barbante na horizontal". Não me sai nada. Nem um filme, nem uma peça de teatro, nem um comentário político. Vila Viçosa secou-me...
- Não diga isso. Uma terra que inspira a Florbela não pode secar ninguém literariamente. Olhe, ainda hoje à tarde senti uma verdadeira aproximação ao Ponto L...
- Ó meu amigo, que felicidade! Quanto eu não daria para aflorar de raspão o Ponto L...

Fernando António estranhou que o fulano soubesse o que era o Ponto L. Mas a verdade é que estava perfeitamente ciente dessa realidade literária. Apresentaram-se.
- Fernando António, escritor.
- Eddie Rabbit, professor subsidiário.
- Então o que o traz a Vila Viçosa?
- Estou a preparar uma tese, precisamente sobre o Ponto L. E talvez sobre o Ponto GL.
- O Ponto GL?!? - estampou-se de estupores o rosto de Florbela.
- Sim, o Ponto GL é o nirvana. A definição é esta: "Atinge-se o ponto GL quando a qualidade literária é tão elevada que produz uma ejaculação". Ou seja, é a mistura do Ponto G com o Ponto L. Não há orgasmo mais perfeito.
- Nem a surfar um "pipeline" no Hawai? - perguntou Fernando.
- Nem isso. Nunca atingi o Ponto L, mas tenho amigos que o conseguiram, embora nunca atingissem o GL. Donde, o mais correcto é conformarmo-nos com o nosso destino. Donde, o melhor é continuar a ler Benjamin, Derrida e outros que tais. Dá sempre jeito para uma boa mesa redonda, um colóquio. Donde, cá vamos andando.
O diálogo prosseguiu animado pela noite fora. Fernando António, Florbela Espanca e Eddie Rabbit partilhavam a paixão pela literatura. Ora, se juntarmos a esse gosto uma mesa farta e aprimorada, que mais se pode pedir? Eddie Rabbit acabou por escrever a sua crónica à sobremesa ("O cinema de animação existe?") e saiu com os dois amigos para a noite de Vila Viçosa, agitada por uma movida sempre renovada.
No restaurante "O pargo enchernado", finalmente vazio, um quadro vetusto ganhou uma animação particular. O Marquês de Bricolage podia finalmente mexer-se. Fez uns exercícios de desentorpecimento, baixou-se para um afago ao canídeo e desabafou:
- Porra, estava a ver que estes chatos nunca mais se iam embora. Como está o meu Mondeguinho? Uma festinha no Mondeguinho, uma festinha no Mondeguinho...
Na parede em frente, num quadro de Sisley, um homem num barco gritou para o Marquês de Bricolage:
- Ó Marquês! Todas as noites é a mesma coisa. Desvie lá a arma! Sempre que faz festas ao cão a arma fica apontada para o meu quadro. Não lhe chegou ter acertado na aguarela da Catarina Eufémia na Noite de Natal?
Quem sabe alguma coisa sobre os fantasmas de Vila Viçosa que ponha o dedo no ar. Está bem, Grafenberg, está bem... vejo que o senhor sabe.

Von Grazen, 20/7/2204, 00h45m.

(Luís Graça)

Primeira parte deste conto | Segunda parte deste conto

Post Scriptum # 428


Alceu e Safo, detalhe de um vaso ateniense,
cerca de 480 a.C.


Alceu
(Grécia/ Ilha de Lesbos, c. 620 a.C-c.580 a.C.)

Bebamos. Porque havemos
de esperar pelas lucernas? O dia
tem a extensão de um dedo. Traz
as taças grandes, meu amor, as coloridas
taças. O filho
de Sémele e de Zeus aos homens
o vinho deu para esquecimento
de seus males. Enche-as
até transbordarem - uma
parte de vinho para duas
de água. E que uma taça
empurre a outra.

Tradução de Albano Martins.

14.12.04

O Povo é Sereno #192



Cartoon de David Rees.
(Versão ampliada)

Post Scriptum # 427

QUE NEM GINJAS

Vai haver eleições? Ah pois vai! E já se sabe o dia, a hora e o minuto do mês - a consulta nas urnas vai mesmo suceder para grande gosto de uns e certo desespero de outros.
À guisa de reflexão filosófica, inteiramente manejável e muito maneirinha, talvez faça sentido dar a lume o poema de António Luís Moita, inédito ainda por cima, que nos dirige umas perguntas mesmo à mouche do alvo do meio do coração que qualquer ser votante possui no honrado peito democrático. É o

MONÓLOGO DO ELEITOR

Acabaram-se as Direitas?
Dissiparam-se no Centro?
Serão as Direitas feitas
de esquerdino movimento?

Sendo as Esquerdas sujeitas
ao mesmo vaivém do vento
vão, com as nuvens, direitas
à parte esquerda do Centro?

E o Centro? O que é o Centro?
Em que centro se situa?
No centro do Centro-Centro
de um satélite da lua?

É um Centro direitista
para a Esquerda cor-de-rosa?
Ou a tendência Sinistra
da Dextra silenciosa?

Que Centro é esse? Um sinal
de não comprometimento?
Ou, ao contrário, um invento:
manobra do Capital?

Será o Centro a Direita?
Fascismo com meiga fala?
Medo? Angústia? Um olho à espreita
com raiva de não ser bala?

E a Esquerda? O que é a Esquerda?
Dissiparam-se no Centro?
Serão as Direitas feitas
de esquerdino movimento?
retrocesso à burguesia?

E a esquerda Extrema-Esquerda
- a que tudo desagrega -
o que será quando vemos
que a Direita se lhe pega?

Será mesmo Extrema-Esquerda
a pedir terra queimada?
Ou um braço que a Direita
manipula encapuçada?

Será cravo de pureza
ou goivo de gula grada?
Lirismo? Farsa? Utopia?
Concreta antropofagia?
Fim do dia ou alvorada?

Ou nem sequer há Direitas
nem Esquerdas nem mesmo Centro
sendo isto ideias estreitas
em que, aprendiz, me concentro?

Serei eu, nascido outrora
quando só Direita havia,
que ga-ga gaguejo a História
da de-de democracia?

(Nicolau Saião)

Señor Tallon #90



Este é um daqueles casos em que a literatura ultrapassa a própria realidade. Daniel Clune, um dos principais responsáveis da organização bookcrossing a nível mundial, está desaparecido desde os primeiros dias de Novembro. A família e a organização já anunciaram várias recompensas para quem fornecer pistas sobre o seu paradeiro. Um dos comunicados oficiais que circula na internet diz o seguinte: "The key to finding him is out there somewhere, but has not yet been found."

Post Scriptum # 426

Contos de Luís Graça no Granito.

Prosseguimos hoje a publicação do conto "O Insondável Caso do Misterioso Ponto GL", de Luís Graça, pertencente ao seu livro "15 desatinónimos para Fernando Pessoa", a publicar em breve.


O INSONDÁVEL CASO DO MISTERIOSO PONTO GL
(Segunda Parte)


Era óbvio que Grafenberg também sabia o que era o mastoideu. Mas não foi disso que falou a seguir. Referiu de imediato que a "Borboleta em suspensão" também podia ser designada por Aka Somf (senta-te na minha cara). Meia-hora depois, com um ar grave, rematou: "O factor prazer durante a cópula é directamente proporcional ao conforto da posição que ambos adoptarem".
E isto independentemente de se ser de Esquerda ou de Direita.
- O senhor Fernando é um homem culto, já vi. Mas sabe, por exemplo, o que é o nó Y?
Já eram letras a mais para uma só tarde. Fernando António encolheu os ombros e Florbela Espanca solidarizou-se com o poeta, na sua ignorância.
- Y só conheço o suplemento do "Público", às sextas-feiras - afirmou Fernando.
- Nó, só conheço os de marinheiro e o górdio - disse Florbela.
- Para o movimento de nó Y, o homem alarga a lábia, servindo-se de dois dedos de uma mão e, com a segunda mão posicionada mais acima, coloca o dedo médio, ou os dois juntos, de modo a massajar o clítoris com movimentos laterais, para cima e para baixo, ou com movimentos circulares.
"Chapeau"!
Grafenberg não tinha apenas lábia. Ele sabia mesmo do que falava.
- Permitam-me que lhes aconselhe a leitura de Puchkine.
- Eu já leio os contos de Puchkine. Muitíssimo bons - confessou Fernando.
- Ah! o cavalheiro conhece os contos. Mas eu não me refiro aos contos. Refiro-me ao seu diário secreto. Conhece? Não? Está a ver como são as coisas?
Ora bolas! O Grafenberg começava a tornar-se um bocado chato, com a sua omnisciência. Está certo que já se tinha aprendido umas coisas, mas se o homem quase não passava a bola, era sabido que a tarde ameaçava tornar-se longa como o caraças. O melhor era mandar vir mais uma meia-dúzia de bagaços, pelo sim pelo não.
"E ser cornudo é horroroso e insuportável. Ninguém se aproveitou tanto da falta de conhecimento dos maridos como eu, e como eu gostava de ver os seus cornos a crescer, invisíveis para todos, excepto para mim!".
Pois. A páginas 25 do livro editado pela Difel.

O homem citava as páginas como quem bebe um copo de água. Ou um bagacito, no meu caso. Foi a Florbela quem salvou a situação, desviando a conversa para os tempos retroactivos dos romanos e levando o jogo para o livro escrito por John Clarke, primo do antigo campeão de Fórmula Um, Jim Clark. "Le Sexe à Rome", editions de La Martinière, gravura sugestiva na capa, com uma romana montada num romano. Uma pintura erótica da Rua Mercúrio, em Pompeia, no século I.
Alguns investigadores defendem que a mulher se chamava Maria José e o homem João Francisco, mas é altamente improvável.
- Sabe, amigo Grafenberg, muito do que nos disse já os romanos sabiam, séculos atrás.
- Não duvido, cara senhora. Mas é preciso sistematizar as coisas.
- O amigo Grafenberg sabia que a páginas 67 de "Le sexe à Rome" o último subtítulo diz "Tableaux de sex shows dans l'auberge de la rue Mercure?" - invectivou Florbela.
- Desconhecia totalmente, minha amiga. Por quem é!
- E sabia que isto só foi retirado das cinzas em 1823?
- Não fazia a mínima ideia.
Ora toma! Boa, Florbela! Só para o homem não ter a mania que sabe tudo. Já estava capaz de o mandar meter o dedo no rabo. Não o faço por mera prudência. O gajo punha-se logo a citar as técnicas de meter o dedo no rabo e eu é que ficava de cara à banda. Vou contra-atacar, agora que a Florbela já o encostou às cordas e o canto neutro está ocupado por vendedores de bijuteria.
- Amigo Grafenberg: já que estamos em maré de confidências, sabe o que é o ponto L?
O homem ficou branco. Suores frios começaram a escorrer-lhe pelas costas abaixo. Tantos anos de taradice sexual, tantas horas enfiado nas bibliotecas a masturbar-se com as gravuras antigas, tanto esforço posto em causa de um momento para o outro. Primeiro, o tal livro dos romanos que ele desconhecia por completo. Depois, um ponto L perfeitamente omisso no seu repertório de conhecimentos. Ó Céus cruéis!
Fernando António avançou, decidido.
- O Ponto L é o Orgasmo Literário, amigo Grafenberg!
Completamente derrotado, Grafenberg escusou-se com uma conferências das 9 da noite em Leipzig, com um helicóptero à sua espera, com um javali ao lume. Uma coisa assim. Foi-se. E tudo o vento levou.

Fernando António e Florbela Espanca suspiraram.
- Olha, Fernando, vai o meu último soneto, antes do jantar?
- Vamos nisso, Florbela.
- Chama-se "Horas rubras". É assim: "Horas profundas, lentas e caladas/Feitas de beijos sensuais e ardentes,/De noites de volúpia, noites quentes/Onde há risos de virgens desmaiadas...
Oiço as olaias rindo desgrenhadas.../Tombam astros em fogo, astros dementes,/E do luar os beijos languescentes/São pedaços de prata plas estradas...
Os meus lábios são brancos como lagos.../Os meus braços são leves como afagos./Vestiu-os o luar de sedas puras...
Sou chama e neve branca e misteriosa.../E sou, talvez na noite voluptuosa,/Ó meu Poeta, o beijo que procuras!"
- Belo poema.
- Obrigada. Fi-lo há dias, no intervalo da orgia na mansão.
- Ah! daí a referência aos risos de virgens desmaiadas...
- Pois é, primeiro riem-se, depois desmaiam, quando percebem o que lhes vai acontecer. A propósito, vamos pagar a conta, que ainda tenho de ir comprar um capuz novo, antes da sex-shop fechar. Tenho usado um de cabedal preto que é uma verdadeira estufa. Uma pessoa até perde o prazer de estar a chicotear o vereador da Cultura...
Fernando António, cavalheiro, pagou a conta. Florbela saiu primeiro, em passo de corrida, dificultado pelos tacões-agulha dos seus elegantes sapatos à sado-masoquista. A sex-shop estava quase a fechar. Combinaram encontrar-se uma hora mais tarde.
O restaurante "O pargo enchernado" (especializado em "Pargo à la cherne","Caldeirada de lulas enraivecidas" e "Cataplana à la bacana com banana") era um "must" de Vila Viçosa e já tinha sido combinado que Fernando António e Florbela Espanca fariam as honras da casa no primeiro dia da estada do poeta no magnificente rincão telúrico de Portugal.
Fernando escolheu uma mesa discreta, ao pé da lareira, encimada por alguns versos de Florbela:
"Gosto de ti apaixonadamente,/De ti que és a vitória, a salvação,/De ti que me trouxeste pela mão/Até ao brilho desta chama quente". Ao lado, um brasão de Vila Viçosa e um quadro do Marquês de Bricolage, com uma caçadeira na mão e um perdigueiro aos seus pés.

Fernando sentou-se, pediu um tartex e um conhaque, só para entreter. Um criado de cabelos grisalhos e pinta de bissexual veio limpar a mesa das migalhas, com uma escovinha toda amaricada.
(Continua)

(Luís Graça)

Post It #233

Rubrica "As boas histórias não têm fim".

Mais um exemplo.

13.12.04

Post Scriptum # 425



DEZEMBRO

Neva
e mesmo assim os desaparados
continuam
a transportar cartazes em sanduíche -

um proclamando
o fim do mundo
o outro
os preços de um barbeiro local.

Charles Simic.
Tradução de José Alberto Oliveira.

Post Scriptum # 424

Contos de Luís Graça no Granito.

O INSONDÁVEL CASO DO MISTERIOSO PONTO GL
(Primeira parte)



Bela terra, Vila Viçosa. Fernando António combinara encontrar-se na localidade com a sua amiga Florbela Espanca, presidente de um movimento de libertação da mulher.
De forma secreta, Florbela também era a líder de um movimento sado-masoquista, que "noite sim-noite não" se reunia numa mansão para ler Sade, Bataille, Walser e praticar sexo violento.
O dia amanhecera com manias de brisa e histerismos de nuvens indecisas. Ora tapavam o sol, ora o descobriam sem o mínimo pudor. Poderia dizer-se com alguma propriedade que estava um céu de pintor. Não faltavam motivos iconográficos. O director de fotografia Robbie Muller também apreciaria sobremaneira os efeitos especiais da troposfera.
Fernando António estava imerso na leitura, bebia bagacinhos e de vez em quando levantava os olhos para o céu e ajeitava o chapéu, onde pousavam, de cinco em cinco minutos, libélulas particularmente adeptas de Florbela, que deitavam o canto do olho aos sonetos que Fernando António lia avida e fleumaticamente.
"Tanto clarão nas trevas refulgiu,/E tanto beijo a boca me queimava!/E era o sol que os longes deslumbrava/Igual a tanto sol que me fugiu!".
A páginas tantas, Fernando António cansou-se da inconstância das libélulas, no seu pousar e levantar assustadiço. Comeu uma, por mera dissuasão, pois o poeta ainda não tinha fome. Eram apenas 11 horas, 23 minutos e 55 segundos. Fernando António nunca tinha fome antes do meio-dia, 7 minutos e 18 segundos.
Florbela chegou pouco depois, com uma perla de transpiração a escorrer-lhe pela face esquerda. Sentou-se num desvario, levantou o braço e pediu um Martini, com uma casquinha de limão.
- Meu querido Fernando, então, o que me diz de Vila Viçosa?
- Bela terra, Florbela, bela terra.
- Eu sabia que o meu amigo havia de gostar. Por isso o convidei. Ó Fernando, tem uma coisa colada ao lábio, a sair-lhe da boca.
Fernando António levou a mão ao lábio e retirou cuidadosamente uma asa de libélula que tinha ficado presa.
- Não é nada. Obrigado, Florbela.

A conversa começou aos ésses, tomou rumos intelectuais, peregrinou por questões turísticas, andou ao sabor do vento e dos acasos. Pelas 13 horas, 19 minutos e 13 segundos, o marcador assinalava: Fernando António, 11 (bagaços) - Florbela Espanca, 6 (martinis). Certo que Fernando partira com avanço, mas a menina Florbela não era peca a dar-lhe com solenidade nos martinitos.
- Ó Fernando, acha que era boa ideia pedirmos qualquer coisa para petiscar, assim tipo almoço?
- A Florbela é que sabe. Por mim, não há nada como um bagacinho e um soneto dos seus. De resto, já comi um insecto, que nem me soube nada mal.
Vieram queijinhos frescos. Veio broa. Veio manteiguinha.Veio um jarrinho de tinto, para misturar com Seven Up, à camionista de longo curso, antes do "balão". Depois, como prato principal, cabrito assado à padeiro.
Tanto Florbela como Fernando não deram confiança às sobremesas, saltando logo para café e digestivos. No caso, cálices de Cointreau. Podia-se dizer que os dois amigos estavam bem. Estômagos aconchegados, a alma tranquila de ardências.
- Conte-me lá, Florbela, e o seu clube feminino?
- Sabe, Fernando, os tempos vão maus para a libertação das mulheres. O que me vale são as sessões de literatura nocturna. E mais umas coisinhas.
- Que coisinhas?
Florbela inclinou-se para a frente, agarrou com ternura na cabeça do poeta e segredou-lhe ao ouvido todo o pitéu sado-masoquista na mansão da Marquesa de Osga.
- A sério?!?
- Ó Fernando, eu ia lá brincar com uma coisa destas! Às vezes, basta tocarem-me num certo sítio e eu expludo logo. Sabe o que é o ponto G, não sabe?
Fernando António não sabia. Mas a vida tem curiosas coincidências. Um sujeito que discretamente lia o "Diário de Notícias" na mesa do lado, levantou-se num rompante, tirou o chapéu num gesto assaz nobiliárquico e apresentou-se:

- Se me permitem, creio que está no ponto de me apresentar. O meu nome é Ernst Grafenberg e sou o inventor do Ponto G. Sabem, o Ponto G "é uma área de tecido, semelhante a um botão, na parede exterior da vagina, que incha durante a excitação sexual. Quando o Ponto G é estimulado e suavemente pressionado, a mulher experimenta um orgasmo rápido e intenso. Alguns pesquisadores acreditam que o Ponto G pode ser o equivalente feminino à próstata, já que está situado perto do colo da bexiga. Procurar o Ponto G durante os preliminares é um modo excelente de ambos ficarem excitados sexualmente. A sua parceira deve deitar-se de costas enquanto você se coloca de lado, junto dela".
Primeiro, Fernando António e Florbela Espanca ficaram sem reacção. Poderia dar-se o caso de estarem em presença de um embusteiro, com particular tendência para memorizar extractos do livro "Sexo e Prazer", edições Asa. Fernando resolveu testar o homem:
- Então diga lá quantos centímetros de dedo indicador lubrificado se devem inserir na vagina...
- Bem, cinco a sete centímetros e meio - disse o alegado Grafenberg, enquanto levantava o seu indicador direito de forma professoral e os olhos lhe brilhavam.
Estes últimos pormenores convenceram Fernando António, que convidou o cavalheiro a sentar-se. Uma hora passada, pode-se dizer que os sintomas de intimidade se intensificaram. Grafenberg tinha o dom da oratória e era profundamente conhecedor da temática sexual. Além disso, possuía ainda o raro e apreciado mérito de misturar a linguagem científica com anedotas alentejanas sobre sexo.
- A senhora dona Florbela tem cara de ser dada a práticas sexuais, digamos, desviantes. E digo desviantes sem nenhum propósito de julgamento moral. Deixe-me que lhe aconselhe a posição de "Borboleta em suspensão".
Banzados. Ah! pois! Uma pessoa pode perceber muito de poesia, até pode ser dada às artes do sexo, mas não está à espera que lhe apareça um Ernst Grafenberg a aconselhar posições que tais.
Banzados. Foi assim que ficaram Fernando e Florbela.
Grafenberg estava embalado. Citou, de memória, o livro "O grande O", de Lou Paget, a páginas 115: "A posição de 'Borboleta em Suspensão' permite que a mulher controle a sensação de que precisa e quer. Neste desenho, em particular, ela apoia o peito contra a cabeceira da cama, enquanto o homem tem a cabeça apoiada na almofada. Desta forma, ele pode ajustar a pressão sobre o seu rosto e pescoço sem ficar com a sensação de que está a ser esborrachado".

Era óbvio que Grafenberg também sabia o que era o mastoideu. Mas não foi disso que falou a seguir.
(Continua)

(Luís Graça)

Post Scriptum # 423



NO MELHOR PANO

Com pedido de publicação, recebemos da Direcção Geral de Investigação o seguinte comunicado:

"Na sequência de acções efectivadas no âmbito do caso "Dicionário Prateado", dois membros duma brigada deram com um indivíduo a deambular num dos mais românticos jardins da cidade. Como a sua conduta se revelava suspeita, ao ser interpelado referiu com algum acinte que "andava a ver as vistas" e, numa clara tentativa de aliciar os agentes, disse ainda "Não vêem que bonito está o luar?...", o que o levou a ser detido de imediato. Instado sobre a sua profissão respondeu que era burilador de frases mas de momento se encontrava desempregado. Na revista subsequente verificou-se que estava munido, sem licença, de duas cedilhas e de um verbo reflexivo. Numa pequena bolsa de cabedal tinha ainda dezasseis vírgulas, alegando serem para consumo próprio. No entanto, pressionado com perguntas acabou por confessar que as subtraíra a um autor local de momento residente em Espanha (parece que nas ilhas).
Já na esquadra foi-lhe apreendida uma boa quantidade de mas, além de diversos quês de que não soube indicar a proveniência. O detido tinha ainda na sua posse duas ideias gerais e três postulados éticos. No seguimento do interrogatório tentou dizer que eram sim pertença de dois indivíduos estrangeiros (talvez seus cúmplices) de nome Vítor Hugo e Albert Camus, acabando contudo por confessar que os fabricara ele mesmo.
Presente ao Senhor Juiz de Instrução, o excelentíssimo magistrado determinou as medidas de segurança mais gravosas, indicando ainda que o detido estava impedido de utilizar pontos de exclamação e ditongos, sendo também alertado para a inibição de manejar bês, kapas e tiles. Dado que ficara provada a posse de uma gramática, o indivíduo recolheu de imediato ao calabouço por um período de catorze horas de leitura, sendo formalmente alertado para o facto de que não poderá, até determinação em contrário, contactar jotas e pontos circunflexos que não estiverem registados na Conservatória de Autores.
Ao detido foi levantado o competente processo."

(Nicolau Saião)

Cimbalino Curto #122



Tarde de domingo, no café da minha rua. A televisão corre aos gritos por entre as mesas. Os miúdos explodem em cânticos e os velhotes exibem os dentes e os cachecóis azuis e brancos. O tecto quase vem abaixo sob o peso do nosso entusiasmo.
Eu sei: uma cidade não se mede pelo número de golos marcados numa partida de futebol, no outro lado do mundo. E um clube de futebol não é a única medida de uma cidade como o Porto. Mas, nos dias que correm, e numa cidade que já perdeu quase tudo, incluindo o orgulho, o futebol é melhor do que nada.

10.12.04

Post Scriptum # 422



Clement Magloire Saint-Aude
(Haiti, 1912-1971)

A presente tradução, a primeira em língua portuguesa, foi feita a partir dos fragmentos poéticos encontrados na OPUS INTERNATIONAL nº 19/20. O volume inteiro deste autor haitiano teve recentemente a sua republicação em França, com chancela da Gallimard


REFLEXOS

Atado, franzino, o mofo do nada
na minha gravata de cavalo
flácido como o desconhecido e sobre os caminhos.

Lamentações nos escarros dos mortos.

A negligente franquia paga para falar
fora das minhas ancas
como um alazão árabe.
O êxtase o luto a luxúria
na gordura dos repiques dos estertores.

No calafrio das rendas, ó minha bela emoção
- frio de lâmpadas frias.

Doce e gelada a rua da Madalena
hortelã-pimenta de extintos lumes.

Eu saio dos liames do meu sol invulgar.
Serei eu o intérprete dos séculos
a escultura dos ventos dos centauros?

Desço, desenraizado repetido
num cabelo antecedido p'los meus dedos.

E como a suavidade da carícia
para onde vai, ó paz, o meu coração?

No galope dos mudos zeladores
dobro-os congelo-os
- castos de vida
nos faróis recortados.

Amargo é quem nasce para os elogios
e a vós deseja, espíritos
enclausurados e marmóreos



Pois este é o poema do prisioneiro
o tilintar dos sóis rememorados

E as matracas enterradas
no coração do peregrino.

Eis o meu sudário sem coroa
na vaidade deste baile
nos saltos de Antinéa
enluvada por este ideal.

A estrela do mendigo ouve
ouve o respirar vazio
da minha morte
da minha angustiada estupefacta
escrita
este meu lenço rendilhado de cambraia.

Retorcidos nos meus olhos apagados
a caneta e o poema que não atende a causas.

Limitado à desgraça sem repouso
Edith é a minha própria face lívida.

Mas meus olhos sempre os retiro
do enterro dos olhos ressuscitados?


In "Poèmes"

Tradução e nota de Nicolau Saião

O Povo é Sereno #191



Pedro Dias, o actual director da Torre do Tombo, em entrevista ao Jornal de Letras, diz coisas tão extraordinárias como esta: "Quando 80% (oitenta por cento) do orçamento da Torre do Tombo é garantido pelo sector de Música da Fundação Calouste Gulbenkian há qualquer coisa que não bate certo." E mais: "Na Torre do Tombo vivemos uma situação dramática que apenas vai sendo encoberta pelo esforço do pessoal desta casa." Refira-se que o director da Torre do Tombo, local onde se encontra o património arquivístico mais relevante a nível nacional, é nomeado pelo Governo. Ou seja, Pedro Dias foi nomeado pelo Governo do PSD/CDS-PP. Trata-se, como lembra o próprio, "de um cargo de confiança política".
Estas declarações do director dos Arquivos Nacionais fizeram-me lembrar alguns arqueólogos e professores de História meus amigos que diziam, logo após a eleição de Durão Barroso, que, apesar de não se identificarem politicamente com a direita, a aliança PSD/CDS-PP abria boas perspectivas para os profissionais da História, em Portugal. Enfim, a história veio a provar que estávamos todos enganados.

Anúncio

Script para anúncio no Granito.
Título: As Não-Metamorfoses


Um diálogo entre duas vendedoras do Bolhão, em plena manhã de mercado. Som ambiente: burburinho de mercado, gente a regatear preços, sons de caixas de fruta, a música de um rádio de pilhas ao longe.

VENDEDORA DE HORTALIÇA (elevando a voz): ó Laidinha, se estivesses hoje em Lisboa, o que farias?
VENDEDORA DE CARNE: isso nem se pergunta, mulher. É claro que ia ao lançamento do novo livro do Alexandre Andrade, "As Não-Metamorfoses", no Clube Português de Artes e Ideias.

LOCUÇÃO: Não perca o lançamento do novo livro de Alexandre Andrade, hoje, a partir das 18h30, na sede do Clube Português de Artes e Ideias, em Lisboa, no Largo Rafael Bordalo Pinheiro, 29, 2º. Mais uma edição certeira da Errata.

Post Scriptum # 422

Contos de Luís Graça no Granito.

Esta é a segunda e última parte do conto "Mazurka Apassionata", de Luís Graça, cuja primeira parte publicámos ontem.


MAZURKA APASSIONATA
(Continuação)

A conversa estava no seu Evereste intelectual quando, ziguezagueando por entre os moinantes teutónicos, se chegou à boca de cena o grande Jorge Sandes, amigo íntimo de Frederik.
Se Álvaro já estava quase convencido das virtudes éticas da mazurka, a chegada de Jorge Sandes acabou por se revelar decisiva, porque o raio do homem era um nadinha persuasivo no que tocava a masturbar os méritos mazurkenses:
- Álvarinho, sabes que eu até tenho umas zangas valentes com o Fred, mas quando ele tem razão sou o primeiro a dar o baço a torcer. A mazurka foi a melhor coisinha que se inventou até agora, no que diz respeito a música. A mazurka é a rainha das danças sociais, quando bem executada. E aqui o Fred toca que é um disparate. A Maria Nicolaevna, filha do Nicolau, criou a Polka Mazur, que é um disparate de qualidade. Estupidamente divina, ainda melhor que uma Carlsberg estupidamente gelada, num fim de tarde na Fonte da Telha.
- Não sei quem é a Maria Nicolaevna. Já há muito tempo que não vou às putas. E a única que conheço com jeito para tocar, aqui nas docas, é a Heidi, que toca clarinete e é só quando está bêbeda.
- Álvarinho, acorda, por favor. A Maria Nicolaevna é a filha do Nicolau I da Rússia e criou a Polka Mazur em 1830!
- Sabia lá eu!
Frederik e Jorge Sandes resolveram deixar a conversa por ali e foram-se embora, deixando Álvaro embrenhado nos seus embebidos bagaçais.Mal saíram, Frida Pizza-Khalos olhou de soslaio para Álvaro dos Prados e dos lábios saiu-lhe um "psst" mais sibilante que uma naja desempregada a caminho de um trilho no meio de ervas altas.
- Herr Dos Prados, o senhor é que sabe da sua vida, mas eu se fosse a si tinha muito cuidado. O Herr Sandes gosta de se vestir de mulher quando está sozinho com o Frederik. Gosto muito de o ver a tocar na bazuka, mas é um sujeito estranho. O meu dever é avisá-lo!
- Ah! que frescura na face de não cumprir um dever! Agradeço todo o seu cuidado, Dona Frida, mas sei as linhas com que me coso. E também sei as outras linhas férreas todas. Tive uma boa instrução, D. Frida. Hoje a miudagem não sabe nada. É o dia todo enfiada no buraco do Osório, aquele "bunker" infecto cheio de mesas de matraquilhos, cavalinhos e dominó. No meu tempo, se queríamos divertir-nos, víamos as moscas ao microscópio, tínhamos caixinhas cheias de calhaus, tipo feldspato, mica, hulha, coisas assim, D. Frida. Então e as suas pinturas?
- Ah! tem estado tudo em meias tintas, Herr Dos Prados. Não é só a inspiração. Sabe, isto de ter uma tasca em zona de putas dá muito trabalho. Quem me dera poder dedicar-me à pintura a tempo inteiro.
- Se um dia fôr a Lisboa, pergunte por mim na Brazileira. Tenho uma amiga minha que a pode ajudar a mostrar os seus trabalhos.
- Ai sim? E ela pinta bem?
- Olá se pinta! Na zona do Rego ninguém pinta melhor do que a Paula. Abusa um bocado dos castanhos e das gajas com cara de enjoadas, mas tem uma pintura que sai muito bem no Natal e na Páscoa.
Álvaro mandou pôr a despesa na conta e saiu.
Para variar, estava um frio do caraças e chovia. "Hamburgo era uma cidade que não se comia nem com mostarda ou molho de tomate!", pensou Fernando António Nogueira Pessoa, um heterónimo que Álvaro tinha criado para os climas mais agrestes.
O Fred e o Sandes já deviam estar aconchegados num salão qualquer a discutir as últimas teorias filosóficas. Que ficassem com as paranóias deles. Álvaro pôs-se a caminhar ao sabor das mamas e das mini-saias, do cheiro convulso das ratas mal lavadas. Não lhe apetecia cobrir. Não lhe apetecia descobrir-se (continuava a chover). Nem se conseguia descobrir.
Havia dias em que acordava na cama com o Ricardo Reis. Havia noites em que não lhe saía da cabeça o Bernardo Soares. O pior era quando lhe invadia a intimidade um novo heterónimo, o Soares dos Reis, uma perniciosa mistura dos dois, que não descansou enquanto não arranjou um "tacho" num museu do Porto.
Álvaro nunca conseguiu vender-se aos simples interesses materiais.
"Não, não quero nada, já disse que não quero nada". Sempre disse isto. E nunca quis nada para si. Nem para si, nem para a Daisy, a sua miúda. A Ofélia recusou-se a fazer-lhe certas coisas e ele pô-la com dono.
"Está bem que o Soares dos Reis é um heterónimo com os seus méritos. Isso ninguém lhe retira. Foi ele que levou para o museu de Vila Velha de Rodin a famosa estátua do "Pensador". Ao fim da primeira semana os putos já a tinham enchido de grafitti, mas a culpa foi da falta de vigilância. Portugal é Portugal, não é? Não dá para deixar originais nas exposições, assim em auto-gestão, sem ninguém a vigiar".
Era um bom homem, Álvaro dos Prados. Com os seus defeitos, como toda a gente. Nem todos podem ter a arte de conjugar uma mazurka de trás para a frente.
Hamburgo tinha aparecido à má-fila na sua vida, enquanto o sócio de Herr Neuss Ferrari, Doktor Wolf Bat, não se decidia a dar andamento ao negócio do castelo. Mas a firma londrina tinha mandado Jonathan Parker com os documentos e o jovem perdeu-se de amores por uma miúda pálida, abriu uma fábrica de canetas e nunca mais se soube dele pelos lados da Roménia.
Coisas que um homem não pode prever.
Álvaro levantou a gola puída do casaco, abanou as abas do chapéu para sacudir a chuva, afiambrou meia-dúzia de passos mais decididos e desligou-se da realidade com a suavidade dos sonhadores.
Ele sabia que a eternidade lhe pagaria o devido tributo.
Com ou sem mazurkas.
Era o que mais faltava.

(Luís Graça)

Agenda



Amanhã, dia 11 de Dezembro, pelas 17h00, há inauguração de cinco novas exposições e um vídeo, no Centro Português de Fotografia (Cadeia da Relação, Porto). A saber: "Colecção Ferreira da Cunha", "A Iludida - Fotonovela de Wanda Marques", "VigoVisións e I Feito Fotográfico", "Colecção Nacional de Fotografia: Novas", a prometedora exposição dedicada a "Alexandre O'Neill" e o vídeo "Retrato de Fernando Lemos", realizado por Olívio Tavares Araújo.

Post Scriptum # 421

É ASSIM QUE SE FAZ A ESTÓRIA

Deve o leitor não se lembrar de um poema quase genial aqui recentemente dado a lume ("Geração Portugal") oriundo de um estro vivaz e inspirado - poema esse pesquisado e encontrado por um estoriador de gabarito, o Prof. José de Pitta Raposo.
Uma lenda maliciosa tem tentado estabelecer que este homem de estudo não existe.
Estamos em condições de infirmar essa arbitrária congeminação. Pitta Raposo é bem real. E, mais que não fosse, os seus livros provam-no à saciedade.
Descendente de uma das mais excelsas famílias lusas, os Azeredos Curitiba, Pitta Raposo deu à estampa diversos tomos de alto valor cerebral. Começando por uma pequena homenagem ao seu sextavô ("Anatólio Raposo, cozinheiro inspirado e patriota") incursionou depois pelo memorialismo com "Memórias de Antão Raposo, meu primo em terceiro grau", o qual lhe valeu elogios do renomado crítico espanhol Juan Capullo Follante. Além de outros mais, cheios de originalidade e tendo sempre como protagonistas personalidades da sua multifacetada família.
O poeta Alfonso Bilharoz de Moncada, grande amigo de Raposo, dedicou-lhe um poema assumidamente laudatório - o que não lhe retira valor descritivo e lírico como se pode comprovar pela sua leitura:


PERFIL

É arteiro como um cigano
elegante e donairoso
- um magnífico fulano
o grande Pitta Raposo!

Melífluo e insinuante
dá de si boa impressão
e embora seja um tunante
é um belo cidadão!

Sabe aguentar a parada
para levar tudo a eito
- entra em qualquer titarada
desde que lhe dê proveito.

Um fidalgote fogoso
mexido até dizer basta
- o grande Pitta Raposo
o que ele gosta da pasta...

Com a mão esquerda arrebanha
com a direita arrebata.
O que faz falta é ter manha,
o que é preciso é ter lata!

É real homem de bem
nada há que lhe não valha:
pois seguro prestígio tem
entre outros da mesma igualha

Mesmo sem obra imponente
que o venha a cobrir de louros
vai deixar um nome ingente
aos lusitanos vindouros

e a Estória registará
o seu nome valoroso
mesmo sendo a escrita má.
- E viva o Pitta Raposo!

(Recolha de Nicolau Saião)

9.12.04

Post Scriptum # 420



DANÇAS DE SALÃO CLÁSSICAS

Avós que torcem os pescoços
De galinhas; freiras velhas
Com nomes como Theresa, Marianne,
Que puxam as orelhas dos alunos;

Os passos intrincados de carteiristas
Trabalhando a multidão de curiosos
No local de um acidente; o andar lento
Do evangelista ensanduichado num cartaz;

A hesitação do cliente madrugador
Espreitando pela grelha da janela
De uma casa de penhores; os baldões de uma criança
Que caminha para a escola de olhos fechados;

E os velhos amantes, de cara encostada,
No piso de dança do Union Hall,
Onde também se realizam sorteios de caridade
Em noites chuvosas de segunda-feira de um Novembro eterno.

Charles Simic.
Tradução de José Alberto Oliveira.

Post Scriptum # 429

Contos de Luís Graça no Granito.

O Quartzo, Feldspato & Mica tem o orgulho de apresentar, num rigoroso exclusivo, três dos mais recentes contos de Luís Graça. Estes textos, ainda inéditos, pertencem ao seu livro "15 desatinónimos para Fernando Pessoa", compilação de contos satíricos baseados no poeta, nos seus heterónimos e na sua obra, e que deverá ser editado em breve. Hoje publicamos a primeira parte do hilariante "Mazurka Apassionata".


MAZURKA APASSIONATA

O fumo dos cigarros amarinhava escandalosamente pelas paredes rascas de uma tasca de má fama com o nome vulgar de "Le Polonais Heureux". Acção: Hamburgo. Zona: docas. Porque sim.
O tempo fosco e irritante convidava ao suicídio por acção directa, mas Álvaro dos Prados estava mais virado para a cerveja alemã. E a verdadeira devassidão etílica e existencial não podia encontrar melhor porto de abrigo do que "Le Polonais Heureux", assim baptizado em homenagem a um franco-polaco tuberculoso que se parecia um bocado de trombas com Óscar Selvagem, vate céltico arrogante e genial.
Frederik "Show-Pain" (dava-lhe para os "blues" e a música é que levava a toda a força com o granel melódico-depressivo) era um "habitué" do "Le Polonais Heureux" e Frida Pizza-Khalos (a dona da tasca) resolvera mudar o nome do estabelecimento de "Adolfo Mau-Feitio" para "Le Polonais Heureux".
Quando Álvaro entrou, o bofes-moles do Frederik estava sentado à pianola a tocar a sua mais recente mazurka: "Allez les Blues", copos 68, alínea c). Fez sinal a Álvaro para que se lhe juntasse. O português abancou sem preconceitos. Com um gesto dos lábios e um trejeito de sobrancelha (só ao alcance dos bêbedos mais dotados) encomendou em morse-mais-ou-menos uma cerveja alemã e um "shot" do bagacinho importado de Campo de Ourique City. Pois evidentemente. O poeta tinha garrafa (trazida da santa terrinha) com poiso certo no "Le Polonais Heureux".
- Então, man?
Frederik não era de grandes cerimónias com as palavras e Álvaro respondeu-lhe na mesma moeda, que não em marcos alemães.
- 'Tá-se bem.
A amizade tem destas coisas. É capaz de juntar um polaco que desistiu de Zelazowa Wola (também... um gajo que nasce num sítio destes o melhor que tem a fazer é emigrar) a um português que não gostava de viajar nem à lei da bala, mas que chegou a Hamburgo de paquete, para tratar de uns assuntos a Herr Neuss Ferrari. Uns terrenos nos Cárpatos, uma trama assim meio para o psicadélico-transilvânico.
Cenas.
- Gostas da minha última mazurka?
- Já te disse várias vezes que isso da bazuka não é música a sério. É bonito, mas falta-lhe o sentimento do fado.

Frederik ficou um bocado sentido com a "overdose" de sinceridade de Monsieur dos Prados e embezerrou, depois de sussurrar de forma audível:
- O que percebes tu de música? A tua pátria é a língua portuguesa.
- Fred, a amizade tem destas coisas: é preciso ouvir as verdades de coração aberto.
- Álvarinho, sabes que curto de ti bué, mas a minha cena é mesmo mazurkas. Ando nisto há muito tempo. Em Paris toda a malta adora este "swing".
- Música é Stan Getz, Ike Quebec. Saxofone a sério.
- Álvarinho, o jazz é devassidão. Olha, para já, um é drogado, o outro é preto.
- Tens de perceber uma coisa. Cada um com os seus paraísos artificiais, desde que não chateie os outros. Além do mais, não podes dizer que não gostas de jazz. Até aposto que farias excelentes duetos com Bill Evans e Kenny Barron.
- Essas gajos mazurkam?
- Não mazurkam nada, foda-se, que já me fizeste falar mal! São pianistas do melhor. Cinco estrelas!
O fumo dos cigarros manhosos e o cheiro a sovaco de puta misturou-se de forma subreptícia na atmosfera delirantemente subversiva do bar. Álvaro dos Prados desconhecia que desconhecia toda a essência de uma boa mazurkada.
Com jeitinho, à medida que os "shots" de bagaço iam amaciando o bucho do lusitano, Frederik ia convertendo o amigo à causa das mazurkas. Na pior das hipóteses, deixava-o na dúvida.
- É como te digo, Álvarinho, quem nunca mazurkou não pode atirar a primeira pedra.
Valha a verdade que Frederik tinha o dom da palavra. Percorreu o passado com inaudita titilância e, em pezinhos de mocassin, foi convencendo Álvaro da relevância histórico-musical da sua causa.
- Isto já vem do século XVI. Agora é uma dança polaca, mas está intimamente ligada com o oberek, a polska e o kujawiak.
- Do Kujawiak lembro-me bem. Foi mais um bom avançado que o Sporting queimou.
A conversa estava no seu Evereste intelectual quando
(continua...)

(Luís Graça)

Agenda



Em Lisboa.
Amanhã, dia 10 de Dezembro. Lançamento de "As Não-Metamorfoses", o novo livro do Alexandre Andrade, na sede do Clube Português de Artes e Ideias (Largo Rafael Bordalo Pinheiro, 29, 2º), às 18h30. A apresentação do livro estará a cargo de Alexandra Lucas Coelho e José Mário Silva. Recordo que "As Não-Metamorfoses" é mais uma belíssima edição da Errata.

No Porto.
Hoje. António Pedro Ribeiro, pré-candidato à Presidência da República, apresenta a sua habitual "Performance poética", acompanhado por André Guerra (guitarra), no Pinguim Café, a partir das 23h30.

O Povo é Sereno #190

E ESTA, HEIN?

Estou sempre a admirar-me - pelas coisas que vejo, que vou sabendo e que chegam até mim. Sou pois feliz - duma felicidade interactiva, quiçá digitalizada, peculiar até mais não.
Agora foi uma nota de imprensa que me foi enviada por uma pessoa muito querida. E que revela as pequenas aventuras dum senhor de Margaride. Sem comentários, passo a dar-vo-la com veloz devoção.
Vai uma fatia de pão de ló? *

* Para quem não saiba (mas será possível?): é em Margaride que se fabrica esta iguaria nortenha, que é também e legítimamente uma iguaria nacional.

(Nicolau Saião)

"NOTA DE IMPRENSA

Durante longos tempos, e ultimamente com maior frequência e com denominações diferentes, Felgueiras tem sido confrontada com panfletos mais ou menos anónimos, por parte de gente que, utilizando velhas tácticas de desfaçatez e mau carácter, pretende denegrir o bom nome de pessoas e instituições.
Esta actuação, de atirar a pedra e esconder a mão, deve merecer a condenação por parte de todos.
O último destes episódios prende-se com a distribuição de uma carta enviada também à comunicação social, de suposta autoria da Presidente, Dra. Fátima Felgueiras, que, entretanto, publicamente, através das televisões, desmentiu tal facto.
Perante este quadro, clarificada a falsidade da autoria, e com base no relatório da Polícia Municipal, a Câmara Municipal decide tornar público o seguinte:

No pretérito dia 28 de Novembro, pelas 23h20, dois agentes da Polícia Municipal, em serviço de vigilância dos edifícios públicos, no caso vertente, dos Paços do Concelho, surpreendeu o sr. José António Lemos Araújo, Secretário da Junta de Freguesia de Margaride, a introduzir um papel por debaixo da porta principal.
Estranhando tal procedimento, os agentes dirigiram-se ao mesmo, interpelando-o sobre o que estava a suceder. Verificaram que se tratava da tal carta intitulada "Mensagem de Natal da Dra. Fátima Felgueiras ao povo de Felgueiras", e que o próprio declarou ser o autor da mesma e que já a tinha distribuído, momentos antes, em casas particulares, estabelecimentos comerciais e noutros edifícios municipais.
Mais declarou que, não sendo autor de outros panfletos anónimos, é co-autor do 'site' (Internet) designado por 'Zé do Bustelo'.
Perante a gravidade de tais actos, a Câmara Municipal, continuando atenta e vigilante, e reservando-se outras medidas que achar convenientes, não pode, desde já, deixar de lamentar tal situação e dela dar conhecimento público, salvaguardando, assim, a honra e a dignidade das pessoas e instituições que representa."

(Nota oficial emitida pela Câmara Municipal de Felgueiras)

7.12.04

Señor Tallon #89

6.12.04

Post It #232

As boas histórias não têm fim. Outro exemplo:

Discovery of secret stairs brings Brontë to life.
The secret staircase which inspired one of fiction's great characters has been uncovered, hidden behind oak panels and just as it was portrayed by Charlotte Brontë.

Post Scriptum # 428

E outro dia, no cais,/ Estava um sujeito gordo de Rhode Island, a dizer:/ "Poxa! Andei por toda a Itália/ E nunca fui roubado!"/ "Mas este lugar está cheio de safados."/ E disse Yusuf: É? E os ricos/ Em tua terra, como conseguem seu dinheiro;/ Eles não roubam os pobres?/ E o sujeito gordo calou a boca e foi embora.

Ezra Pound, Excerto do Canto XXII.
Tradução de José Lino Grünewald.

Señor Tallon #88

Sim, continua tudo em aberto. Não, a peripécia de Hamlet ainda não chegou ao fim.

Post Scriptum # 427



Céline Arnauld
(França, 1893-1952)

Este poema da directora da revista "Projecteur" e mulher do poeta Paul Dermée foi extraído de "L'Aventure Dada".


OS MEUS TRÊS PECADOS DADA

Sobe, sobe a colina
oh roda esmagada roda
quebrada pupila amarga
amargo abrunho dos bosques
oh tu que sobes assobiando
e que és um cobertor velho
o hino das crianças amadas.
Os olhos dos papagaios são bolinhas enganadoras.
Vós não sois deuses, mantilhas
ou escuros guarda-chuvas, nem mecanismos de toque
de alvorada.
Vós sois o anfitrião dum Amphion sem lira
uma vela sem poesia
uma majestade sem reflexos de música
o nascimento semanal dum girassol
- o girassol da minha prece -
e os meus olhos de roda quebrada
que envio ao grande mágico Merlin.
Para me castigar irei imolar-me numa adega.

Este é o pecado do fogacho quase extinto.

Ah sorte malina!
Beber uísque numa flor-de-lis
discussão espiritual da minha traição a sós
com a sua imagem
e depois dormir, dormir até que uma esmola
dos olhos tombada deslizasse nas minhas veias
Mas o que dei ao papagaio
não, para vós não é -
Amizade não se escreve em estenografia.

E é sempre essa roda, esse suplício
quebrado que me atormenta.
Para consertá-lo tomo
Merlin como testemunha
a escada como ícone
o vidro como microscópio
o copo como microscópio
e as minhas belas pupilas
como a linguagem mais formosa.

E depois, já que tudo acabou
iremos deitar abaixo
o edifício construído
sobre uma prisão e um suplício
na adega das discussões espirituais

do seu calvário de uísque.


In "Cannibale°, nº 2.

Tradução e nota de Nicolau Saião.

O Povo é Sereno #189



O REGOZIJO DE SANTANA

Pedro Santana Lopes deve estar nas sete quintas... Afirmarão que se tem mostrado macambúzio sempre que fala na dissolução da Assembleia da República e nas eleições antecipadas. Dirão que é com tristeza que larga São Bento, agora que estaria a preparar um queijo-de-ouro para servir aos portugueses.
Eu não acredito. Longe de mim chamar-lhe hipócrita - embora sejam conhecidos os seus dotes histriónicos que, aliás, lhe têm granjeado forte apoio junto de gente do teatro de revista (excepto Odete Santos, por motivos que se conhecem). Conto, na minha avaliação, com a sua fama de "animal político" que prefere a acção na praça pública (a que alguns chamam "demagogia"), aceitando sempre com relutância a discrição necessária ao trabalho sério em prol do bem comum.
Agora sim... Não precisa envergar a fatiota de "homem de estado". Poderá voltar a colocar sobre a secretária a fotografia do lenço, retirando da moldura a da visita ao Santo Padre, com que tentara distrair os fiéis portugueses. Voltará a pôr no rosto o semblante "bem disposto" com que convenceu boa parte das senhoras de meia-idade da Figueira e de Lisboa.
E tanto que Santana gosta de ser vítima... Recorda-me sempre certo aluno que tive no início da minha carreira docente que, ao fazer das suas, arranjava sempre maneira de lançar as culpas sobre quem agredira, pensando ser essa a melhor maneira de evitar a competente sanção disciplinar (o que, aliás, nunca conseguia, pois todos conheciam o seu currículo de corrécio encartado...).
Conta agora Dias Loureiro que Santana, antes de tomar posse como chefe de governo e fazendo jus ao sentido de observação de Barroso (que, certo dia, o comparou a Zandinga), previu que a coisa não iria durar muito... O antigo ministro de Cavaco conhece, com quantos paus se faz a canoa do seu líder. Sabe que Santana não gosta de aquecer os lugares que ocupa, seguindo a prática dos frequentadores do Bairro Alto, que gostam de deambular de bar em tasca, parando em cada balcão apenas o suficiente para dar dois goles na bebida.
Mas talvez o regozijo de Santana Lopes não seja total. Prepara-se para catar o voto daqueles que suspiraram de alívio ao conhecerem a decisão de Sampaio (que só pecou por tardia). A sua satisfação não é porém total. Satisfeito estaria se o PSD o impedisse de ir a votos. Aí, vítima completa, bebé pontapeado na incubadora, cozinharia a melhor maneira de se candidatar à Presidência da República, cargo cujo conforto o afastaria da chatice que é governar sem ter jeito para tanto.

(Ruy Ventura)