24.5.05

Estamos tratados #6 ou 7 já não sei bem

Desculpem lá a insistência. Mas é que não me sai da cabeça.

Eu quero, cá no fundo, ser justo e compreender tudo. Menos quando me dão com um pau na cabeça de cima para baixo.

Mas faço um esforço. Compreendo perfeitamente porque é que o Tratado Constitucional que vai ser sujeito a referendo tem aqueles contornos que não me agradam. Por uma razão muito simples: a construção europeia começou pela economia. Um dos "pais da Europa", não sei se foi Monet ou Schuman disse não sei quando que "se fosse agora começava pela cultura". É claro que é fácil dizer isto a posteriori, quando já não se têm responsabilidades, mas se ele quisesse começar pela cultura ninguém lhe ligava.

E é isto: a UE resulta da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço, da Comunidade Europeia da Energia Atómica e da Comunidade Económica Europeia. A primeira Comunidade (do Carvão e do Aço) era necessária porque, no passado, os cartéis do Carvão e do Aço tinham provocado várias guerras. A segunda, porque a ingénua crença nos progressos da técnica pensava que o futuro estava na energia atómica. A terceira, porque, enfim, vivemos numa sociedade capitalista.

A CEE garantiu, nos termos exactos duma sociedade capitalista, a autonomia alimentar europeia, graças a uma Política Agrícola Comum produtivista, tão produtivista que criou os famosos excedentes agrícolas (montanhas de cereais, manteiga e leite em pó excedentários, de que toda a gente se ria, mas que não têm graça nenhuma) e também, por outro lado, a poluição das águas subterrâneas (vulgo, lençóis freáticos), o esgotamento dos solos, cada vez mais dependentes da droga dos químicos, a concentração da produção nas mãos de contabilistas e a expulsão dos camponeses dos campos. Repare-se que isto era natural porque, não o esqueçamos, os europeus tiveram fome, autêntica fome, durante a guerra, a mãe de todas as perversões.

A CEE, nos termos exactos duma sociedade capitalista, garantiu também, durante uns tempos, um mercado supranacional para as empresas europeias, o que permitiu uma restruturação e um redimensionamento dessas mesmas empresas e, durante alguns anos, uma expansão segura, articulada com uma política de cooperação para o desenvolvimento com as antigas colónias.

Só que hoje em dia, as velhas barreiras proteccionistas que o capitalismo industrial "sensato" e cauteloso sempre utilizou para se expandir, nas nações de origem e nos quintais coloniais, caíram pela própria lógica do mesmo capitalismo. A China, nomeadamente, alicerçada num pretenso comunismo que não é mais do que a ditadura dum partido, está a realizar, perversa e paradoxalmente, o sonho de qualquer capitalista: transformar toda a sociedade numa empresa, onde não impera o princípio democrático, mas o princípio hierárquico. Porque, de facto, é essa a grande mentira da nossa sociedade. Já Marx dizia, não o Marx que nos querem impingir, mas o Marx luminoso que escreveu, e cito, que lutava por uma sociedade em que "o livre desenvolvimento de cada um é o fundamento do livre desenvolvimento de todos", já Marx dizia que, como no inferno de Dante, na empresa está escrito à entrada: «Vós que aqui entrais, perdei toda a esperança».

Portanto, o Tratado Constitucional sobre que temos de nos pronunciar, é um resumo deste passado. Ele consagra em constituição dezenas de anos de políticas económicas e sociais que nos levaram à situação em que estamos. Compreendo perfeitamente que, na lógica da CEE, o Tratado Constitucional da UE não podia ser senão um triunfo da economia (capitalista, claro).

Só que esperaríamos mais do género humano, sobretudo dessa espécie mais perto de nós que é capaz das piores patifarias e dos actos mais sublimes: esperaríamos que esse género e essa espécie pudesse fazer história. E porque não, porque não romper com o passado e fazer uma verdadeira constituição europeia?

Acontece que não me apetece fazer poesia enquanto esta tristeza cinzenta existir.