19.7.05

Anita na DGCI: online e off the record

A Anita é uma pequena editora em part-time, registada como empresária em nome individual sem contabilidade organizada. Quer dizer que a partir do corrente ano fiscal, a Anita tem de enviar todas as suas declarações de contribuinte pela Internet.
Começou pelo IVA do primeiro trimestre de 2005. A Anita tem formação superior, está até a acabar o doutoramento. A Anita demorou três horas a quitar o computador, importou o Java, alterou os settings de segurança, fez resets, escreveu mails à DGCI, recebeu mails da DGCI. A Anita lá conseguiu aceder ao formulário do IVA. Ficou contente por o seu avô, agricultor que aprendeu a ler sozinho e a escrever quadras populares, partilhando com ela a mesma situação de contribuinte, não ter de perder o tempo que a Anita perdeu. O avô da Anita nunca viu uma Internet, não tem computador, e portanto mandou à neta os dados, as senhas confidenciais, e a Anita preencheu também o formulário do avô. Preencheu ainda o formulário da sogra, professora do ensino secundário, que partilha com o avô da Anita a situação de nunca ter visto uma Internet.
Então a Anita recebeu em casa uma nota da DGCI a dizer que era obrigatório entregar, também pela Internet, o formulário modelo 10 relativo às retenções na fonte dos rendimentos pagos a terceiros. A Anita tinha pago 150 euros ao Filipe, englobado no quadro fiscal dos miseráveis artistas, sem obrigação de retenção na fonte. Mas a Anita era obrigada a reportar que lhe tinha pago, embora não retido. A Anita foi à Internet. Não percebeu como entregar a declaração. Fez uma busca. Apareceram-lhe umas coisas, que depois veio a saber já antigas, com formulários para preencher em ASCII e enviar.
A Anita telefonou para a DGCI. A DGCI ficou indignada porque a Anita, com curso superior e formação avançada, não tinha descoberto que devia ir ao quadro nº cinco da lista à extrema direita da página net, onde dizia "contribuintes" para procurar o modelo 10. A Anita lá foi. A Declaração demorou 50 min a carregar. Quando apareceu, a Anita não soube como enquadrar o caso especial do Filipe.
A Anita decidiu deslocar-se às Finanças. Havia lá muita gente com avisos do modelo 10 na mão. A Anita esperou duas horas para ser atendida. O Sr. das Finanças olhou para o triste recibo verde do Filipe a declarar o pagamento da Anita, e deduziu que tinha sido a Anita a prestar um serviço ao Filipe. A Anita teve de explicar ao Sr. das Finanças como funcionava um recibo verde, demorou ainda mais algum tempo a esclarecer a triste situação que ali a levava, e pediu por favor para entregar a declaração em papel. O Sr. das Finanças disse que não podia ser, e pedia desculpa mas não tinha rede para ir à Net ver com a Anita como fazer. Enfim, lá lhe deu uma dica, apontando para o modelo em papel: se isto aparecer na Net, experimente escrever aqui B1.
Brilhante. A Anita voltou para casa, foi à Net, demorou mais 50 min a carregar a declaração, pôs lá o B1, e a coisa até que ia, não fosse depois o quadro CO1 não jogar com o quadro CO2, e o C05 estar incompleto. Mais meia hora e a Anita lá conseguiu amanhar a coisa. A Anita submeteu a declaração. O sistema Net levou 40min a responder: a declaração não foi submetida com sucesso porque expirou o tempo de utilização.
A Anita da próxima vez vai dizer ao Filipe que não vale a pena gastar os seus recibos. Paga-lhe umas minis e continuam amigos como dantes. Vai ainda dizer ao avô que tenha paciência mas arranje lá um esquema qualquer com o pastor e não a chateie.
Mas ainda bem que a Internet existe para facilitar a vida e dispensar os funcionários públicos.

Margarida Vale de Gato

18.7.05

Documentários portugueses na 2:



Finalmente o canal 2 da RTP resolveu abrir as suas gavetas e mostrar a recente produção documental portuguesa. Até sexta-feira serão exibidos, por volta da 1h00, cinco documentários. O primeiro é "Rabo de Peixe" (hoje), um filme de Joaquim Pinto e Nuno Leonel. Rabo de Peixe (Ilha de S. Miguel, nos Açores), uma das localidades mais pobres de Portugal, é o cenário para uma história de resistência e sobrevivência. O filme acompanha a vida do pescador Pedro durante um ano inteiro.
Amanhã passa "Rebelados - No Fim dos Tempos", de Jorge Murteira. Filmado na Ilha e Santiago, Cabo Verde, o filme acompanha o quotidiano e as expectativas de três rebelados que esperam pelo fim do mundo, anunciado pelos mais velhos para o fim do milénio. Também passado em África, desta feita em Moçambique, é "Kuxa Kanema", um filme admirável de Margarida Cardoso sobre o nascimento do cinema naquele país (quarta-feira).
De regresso a Cabo Verde, "Mais Alma", de Catarina Mourão, acompanha o processo de criação dos espectáculos de teatro de artistas caboverdianos. A cineasta olha para os bastidores do teatro, mas foca, principlamente, a vontade que os artistas têm de procurar e exprimir uma nova identidade.
Sexta-feira, regressa-se ao tema do cinema com "Onde Jaz o Teu Sorriso?", de Pedro Costa. O cineasta português acompanhou a montagem de "Sicília", de Danièle Huillet e Jean-Marie Straub. O filme, que recebeu com toda a justiça rasgados elogios dos "Cahiers du Cinema", é um documento impressionante sobre o processo criativo.

Luísa Marinho

Adeus, amigo! Sabes tão bem a falta que me fazes

Homenagem fúnebre a Luís Carlos Fins Afonso Ferreira Crespo, ao som ao 40ª Sinfonia de Mozart (Molto Allegro), da Pequena Serenata em Sol Maior, KV 525 (Allegro); e de Ballads (do saxofonista de jazz Ike Quebec)

"Obrigado pela visita", disseste, com o teu sorriso sereno a bailar-te na boca. Não percebi onde se consegue ir buscar tanta coragem. Uma visita é coisa tão pouca perante quem sabe estar a olhar a morte de frente.
Falámos de viagens, amigos comuns, passeámos pelos espaços que escolheste, naquele teatro fraterno de iludir uma morte que tu desconfiavas poder apunhalar-te a qualquer momento.
E eu, para te "recuperar" para o mundo dos vivos e te dar força, levei-te nesse dia "Amanhã à mesma hora, diário de uma stripper", de Leonor Sousa. Já não tive tempo de te dar "O Beijo" (José Vilhena), que esteve a apanhar sol em minha casa durante dois dias, para prevenir as infecções que os objectos podem transportar perante quem está tão fragilizado fisicamente.
"Obrigado pela visita", disseste. E nunca mais ouvi palavra da tua boca. Visitei-te sem medos de nenhuma espécie da primeira vez, seis dias após o teu internamento, apenas com a preocupação de te dar ainda um abraço no hospital.
Estavas no teu primeiro dia de quimioterapia. Não pude deixar de perguntar: "Mas qual é o problema em concreto?". O problema era uma leucemia aguda. Galopante. Como não podia deixar de ser. Passaste pela vida a galopar como um corcel fogoso, um tufão, um ciclone de afectos. Com a curiosidade natural de ir ao encontro do Outro, viajando pelo mundo como quem apanha o autocarro para ir a Belém. Da Suécia à Albânia, passando pela Macedónia, da Polónia à Roménia. Onde não estiveste, Luís Carlos?
Telefonaste-me a pedir conselhos sobre Skopje, onde eu tinha estado ao serviço de O JOGO a cobrir um encontro da selecção nacional de basquetebol. Lembro-me disso tão bem como das confissões sobre a tua segunda experiência amorosa.
"Obrigado pela visita", disseste. E eu deixei-te a falar com a Margarida. Ela entrou no quarto e tu estendeste a perna, como um gatinho angorá com medo da chuva, mas com vergonha de o mostrar. De modo a que a Margarida pudesse fazer-te uma festa no pé direito. Já estavas a despedir-te, Luís Carlos? Se estavas a despedir-te, os teus olhos mostravam uma coragem maior do que o mundo.
E tinhas ainda coragem para chegar à cama ao lado e perguntar com voz animadora: "Então, camarada?". E camarada era uma palavra que te ficava bem. Porque camaradagem é fraternidade.
As nossas relações nunca foram normais, Luís Carlos. Nunca discutimos, desde 1979 até ao dia 15 de Julho de 2005. Isto não é normal, Luís Carlos. Que bonito seria o mundo se isto fosse normal, Luís Carlos. Já reparaste numa coisa? Se retirarmos o "Carlos Fins" do meio de "Luís Carlos Fins Afonso Ferreira Crespo" e lermos os primeiros dois nomes que sobram... tens o mesmo nome que eu: Luís Afonso.
"Obrigado pela visita", disseste. E foram as últimas palavras que ouvi da tua boca. Eu é que agradeço a visita que me fizeste durante estes anos todos. E tão poucos foram.
Dizem que a vida começa aos 40. Sendo assim, Luís Carlos, nem chegaste a ter idade para entrar na escola.
Pediste-me para avisar o Alberto da tua hospitalização. E eu avisei. No outro dia, o Alberto visitou-te logo ao almoço. E desfez-se em pequenas peças ao falar comigo ao telefone. Uma semana mais tarde, foi a vez do Gabriel se quebrar em mil pedaços de "puzzles" de cristal, telefonando-me de Gotemburgo. E eu, no meio de um jantar de blogues, dei todas as notícias ao Gabriel, com serenidade. Sabes, Luís Carlos, eu já tinha enviado um "mail" ao Gabriel, a preparar a tua passadeira vermelha que desemboca num bar de valquírias.
Mas o Gabriel deve ter passado uma semana sem perceber o que lia. O Gabriel não queria compreender. O Gabriel conhecia o Luís Carlos que se atirava loucamente pela encostas nevadas da Suécia, a bordo de um trenó. E que tinha logo um acidente à primeira tentativa, porque uma placa de gelo por baixo da neve o impedira de travar como devia.
- Ó Gabriel, vai ali um casal a fazer sexo, na parte de trás do eléctrico.
E o Gabriel, habituado a certos costumes liberais da Suécia, nem queria acreditar, enquanto o Luís Carlos, num dos seus primeiros contactos com Gotemburgo, se começava a compenetrar de que estava a assistir a uma cena normal para a Suécia.
Faz amanhã oito dias, Luís Carlos. Eram 23 horas, mais minuto menos minuto, Luís Carlos. Eu estava num jantar de blogues. E quando o telemóvel tocou era o Gabriel. E eu, a pensar que estava sereno, dei todas as notícias com calma e elevação.

- Desculpa, Luís - disse o Gabriel.
- Desculpa, Luís - disse o Gabriel.
- Desculpa, Luís - disse o Gabriel.

Desculpa, Luís, disse o Gabriel.

- Não consigo ouvir mais. Vou ligar à minha mãe.

E o Gabriel desligou. E quando o Gabriel desligou, as lágrimas que eu tinha chorado pelo Javier Bardem em "Mar Adentro" vieram outra vez esquiar-me pelo rosto abaixo. Mas vinham em grandes grupos de excursionistas muito velozes, a cair nos lábios com o sabor do sal.
E a Matahary, que estava a meu lado, e que eu só tinha conhecido pessoalmente há poucas horas, ficou assim...assim...assim muito triste a olhar para mim. Sem saber o que dizer ou que fazer.
E eu sorri um sorriso bonito, pedi desculpa e fui até à casa de banho. Sabes, Luís Carlos, eu não tinha vergonha de chorar por ti. Nestes dias todos, eu tive orgulho em chorar por ti. Mas eu precisava mesmo de ir à casa de banho.
E depois deslizei parede abaixo, fiquei com os joelhos à altura da cara, abracei as pernas e aquele exército de lágrimas (parecia um exército do Akira Kurosawa em "Ran") veio dar-me beijinhos no rosto, como quem diz:

- Deixa lá, Luís, é assim a vida.

Assim, como?
Sim, assim, como?
Luís Carlos, tu dançavas a valsa com a vida como num "Romeu e Julieta" de Shakespeare. E transformavas os golos de Eusébio num tango religioso de expressão máxima.

- Eu lembro-me. Eu era pequeno, eu até chorei. O Eusébio nunca falhava aqueles livres. E daquela vez partiu para a bola e chutou por cima da trave. Eu lembro-me, eu era pequeno, eu até chorei.

Sim, Luís Carlos, tu em pequeno choravas pelo Benfica. Mas sabias que o desporto era uma coisa para conviver, apesar de seres um tanque de guerra a jogar futebol. Eu sei, um dia chutaste-me no pé, quando ele ocupou o sítio onde estava a bola. Fiquei por ali aos saltinhos no jardim da Casa da Moeda, como numa dança da chuva. E tu a coçares a cabeça, a escolher o melhor ângulo para me pedir desculpa.

Rezei por ti de madrugada, na praia de Carcavelos, nesse sábado. Rezei por ti no Estoril, no sábado seguinte, no 60º aniversário de um grande amigo. E não percebi nada, Luís Carlos. Não percebi como é que uma felicidade merecida do meu amigo não se podia conjugar com mais um pedacinho de presunto ou queijo, para petiscar com a tua felicidade. Prepararam uma homenagem ao aniversariante, "construindo-lhe" um DVD-ROM de 20 minutos que atravessava toda a sua vida.
E enquanto eu via Moçambique e um tempo que não era o nosso (mas aquele mundo existiu mesmo?) começou a tocar o "She" do Elvis Costello e as lágrimas do "Mar Adentro" apareceram outra vez à traição. E o filho do aniversariante bateu-me nas costas, olhou-me com ternura, percebeu tudo e disse:

- É humano.

Claro que era humano. Tratava-se das minhas lágrimas para ti, do Estoril para a tua cama do Hospital do Desterro, exílio de coragem onde entraste de peito feito às balas, como se corresses a direito para a morte, como no "Galipolli", do Peter Weir. Não sei se estou a dobrar a letra L no sítio certo, Luís Carlos, mas agora estou a falar contigo, não vou pesquisar na Net, no IMDB. É um site onde se vai para obter dados sobre filmes. Não sabias, Luís Carlos? Ah! sim, tu é mais tinto.
É óbvio que agora não vou à Internet, Luís Carlos. Nem estou para a Taça Davis, em ténis. Sabes, Luís Carlos, estamos a perder com a Argélia por 2-0. Mas isso não tem importância nenhuma, pois não? O que continuo sem perceber é a razão de não teres podido estar comigo na bancada, a dizer uma coisa que eu imagino assim, num diálogo que apenas não aconteceu porque não tinha de acontecer:

- Porra, que estes portugueses não jogam nada. E o sol está forte como o caraças. Vou mas é buscar uma cerveja.
- Mas não estás a gostar do jogo, Luís Carlos?
- Estou a gostar de estar contigo. Mas agora vou buscar uma cerveja. Já venho, espera aí. Também queres uma?

Bem, Luís Carlos, vou passar do sol do Jamor para a penumbra da Igreja de S. João de Deus. Eu sei, às 16 horas, combinei com a Margarida. Mas não estranhes que não te vá cumprimentar e olhar para ti. Quero ficar com o sorriso que tenho dentro do coração. Esse outro Luís Carlos que já és... pertence a outro filme. Enganou-se no casting. Enganaram-no no casting e eu continuo sem compreender. Quero ficar com aquele filme de longa-metragem (e tão curto, tão curto que até dói no Alaska) em que entramos os dois.
Morri por ti um bocadinho todos os dias, Luís Carlos, quando te visitei. Para ver se ao morrer um bocadinho todos os dias te conseguia pescar um bocadinho de vida para além da morte.
Onde foste buscar tanta coragem, Luís Carlos?
Sabes, Luís Carlos, acho que me passaste um bocadinho da tua coragem. Sabes que me ia virando a um malcriadão de uma loja, a mandar-me calar? A fazer cabedal para mim. E se ele era grande, Luís Carlos. Mas eu não tinha medo nenhum. O que me podia fazer ele, Luís Carlos? Tu estavas a lutar na tua cama e eu sei que se a pancadaria começasse ele não tinha hipótese.
Porque era tanta a minha raiva de te ver a emigrar.
Lutaste que nem um leão, Luís Carlos.

- Fisicamente não estou preocupado contigo. Nesse capítulo tu és forte. Moralmente é que já não digo nada.

E foi assim que me despedi de ti na primeira e penúltima visita que te fiz no Hospital dos Capuchos. E uma empregada riu-se, à porta da saída. Porque também há risos nos locais recheados de morte em cemitérios de ilusões.
Foste jantar, Luís Carlos. E três dias depois já fiquei a ver-te jantar um peixinho. Com calma, serenamente, intercalando com a conversa, enquanto a Margarida não chegava. Ou já tinha chegado? Sei que o trânsito estava terrível e ela chegou muito stressada. Chegou ela, saí eu. Era a minha deixa nesse teatro de fingirmos que ainda estavas a tempo de sair dessa peça de teatro em que tinhas o papel do falecido.
Mas deixa-me que te diga, Luís Carlos: não vais faltar com essa facilidade toda ao nosso almoço do dia 31 de Dezembro, no "Hexágono Mais". Deves ser é parvo. Em primeiro lugar, porque já era tradição
(estás a ouvir, Luís Carlos? Está a tocar o saxofone do Ike, em "Nancy - With the laughing face").
em primeiro lugar, porque já era tradição. E depois porque tu insistias sempre em pagar e me passavas para a mão um molhinho dos livros que eu escrevia, para autografar para os amigos.

- Este é para a família Neves.

Sabes, Luís Carlos, eras o meu único amigo e leitor que pedia autógrafos para as famílias. E aquilo caía-me tão bem.

Por isso, Luís Carlos, já sabes. A 31 de Dezembro de cada ano, conto contigo no Galeto entre as 13 horas e as 13 e 30 horas. Apontando para chegar ao "Hexágono Mais" lá para as 14 horas. É perto, mas gostamos de andar devagar.
E se tu não puderes ir por um motivo qualquer, podem ir a Margarida e a tua mãe, mais as pessoas que elas quiserem levar. E uma coisa é certa: vamos beber uma garrafa de tinto alentejano, para brindar à tua presença.
E na mesa vai haver sempre um prato para ti. E prometo que em cima dele todos os anos vai estar um poema novo ou um texto novo em que tu entres, tu fales, tu digas qualquer coisa.
E mesmo que eu não possa estar fisicamente, por um motivo qualquer de trabalho ou de força maior, a Maragarida, a tua mãe e as outras pessoas que elas quiserem levar, vão encontrar dentro de um envelopinho o meu texto anual para ti.
E nessa altura, vamos pedir ao senhor Ramos ou ao senhor António para abrirem uma excepção à política de não beber em serviço. E eles vão desejar-te um Bom Ano, Luís Carlos.
Se houver um Inferno irlandês, Luís Carlos, reserva-me um lugar em frente ao ecrã gigante, à hora do Benfica?Sporting. E pede duas Guiness das grandes. Se o Benfica marcar primeiro, tu dás um salto e uma gargalhada daquelas, assim à duende da floresta, com vozeirão dos trovões e riso puro como uma criança acabada de descer do escorrega. E eu encolho os ombros, porque isto de ser do Sporting é assim mesmo.
E se o Sporting marcar primeiro, tu levantas-te, dás um pontapé na mesa, dizes meia-dúzia de palavrões, bebes o resto da cerveja de um trago e proclamas:

- Tenho de ir buscar mais uma cerveja. Uma coisa é sofrer golos, outra é sofrer desta maneira parva. Alguma vez isto acontecia no tempo do Eusébio?

Sabes, Luís Carlos, ainda pensei em pedir ao Eusébio para te fazer uma visita, se conseguisses voltar para este lado. Já não tive tempo. Mas sei que a culpa não foi tua. Lutaste como um leão. Até ao fim, de espada na mão, como um viking.
Natural. Eras um vagabundo da vida, sempre à procura de outras paragens.
Adeus, amigo. Até sempre! Sabes tão bem a falta que me fazes.

(Passam 11 minutos da meia-noite, mas vamos fingir que ainda consegui acabar de escrever no dia 15, está bem?)

PS - Espero que gostes dos poemas que eu escrevi para ti. Afinal, foste tu que mos deste. São mais teus que meus. Ó Luís Carlos, não sei como não explodi quando a tua mãe me agarrou nos braços com meiguice e me disse, à porta do hospital: "Ai, o nosso Luís, ai, o nosso Luís...".

Ai, Luís... eu não sabia que tinha tantas lágrimas guardadas em teu nome no meu coração...


POEMA PARA O ÚLTIMO VOO

Nunca soube
se era azul
o azul dos teus olhos

E sendo azul
se era o azul do céu
ou era o mar

Sempre soube
o oceano inteiro
nos teus olhos

Em lágrimas de sal
e risos de marfim
recheados de pérolas

Nunca soube
se era azul
o azul dos teus olhos

Sempre soube
o teu voo de águia
sobre as águas

O teu corpo como carpa
a saltitar feliz
no meio da corrente

Nunca soube a razão
do teu adeus
a rebentar nas ondas

Olhos nos olhos
eu e tu sabemos
as palavras em falta

Como gotas a escorrer
de mágoas numa caverna
que nos corta a alma

Nunca soube
se era azul
o azul dos teus olhos

O oceano inteiro
do teu voo de gaivota
a beijar a brisa

Nunca soube
se era azul
o azul dos teus olhos

E sempre soube
o teu lugar de pássaro
é no céu

15/7/2005


A VISITA DO PÁSSARO MALVADO

Um dia
uma sombra
um pássaro
uma ave

Disfarçada de abutre
pendurada do céu
de cabeça para baixo
levou-te para longe

E ficou a noite
a chorar baixinho
triste como breu
só, como um farol

Mas a tua luz
que brilhava ao longe
quando tinhas na mão
o vento da tarde

Acendeu um facho
vestiu-se de lutos
sorriu de mansinho
e depois...silêncios

15/7/2005

Luís Graça

Só um momento, se faz favor

Sou forçado a reconhecer a minha ignorância. Preciso parar para pensar no assunto.
Até já.

15.7.05

Russos 1

Dínamo de Moscovo, o clube que agora se tornou um eldorado para os mercenários da bola, incluindo portugueses. Como tudo na Rússia, desconfio que por trás da criação deste monstro artificial se encontra qualquer grande manobra esconsa. Talvez venhamos a conhecê-la um dia.
Nos anos 80, ainda na Rússia soviética e quando Moscovo era ainda o centro do «outro» mundo, reunia-se uma maltosa multinacional, em casa de um ou de outro, para ver a bola na televisão, o pretexto para as belas jantaradas moscovitas: éramos portugueses, russos, franceses, etc., dependia. Os russos podiam conviver com estrangeiros, ao contrário do que se diz, mas só a necessidade deste «podiam» já indicia qualquer coisa: não era natural que convivessem, ainda restava do passado uma memória muito pesada (de ambos os lados) que impedia a universalidade e a naturalidade do convívio. Na altura, o Dínamo de Moscovo era um clubezinho simpático, ligado a uma grande fábrica, a que as massas operárias da zona e não só também tinham acesso para a prática de todos os desportos (mas não tinha a popularidade nem a grandeza do Spartak), e nós gostávamos dele. Nessa noite, no decurso de um jantar bem regado, baptizámo-lo, muito familiarmente mas também muito internacionalmente, o «clube dos três acentos»: os portugueses diziam Dínamo, os russos Dinâmo, os franceses Dinamô. Mais tarde ouvi um puto vietnamita chamar-lhe, muito sincopadamente, qualquer coisa como Tính mâ.

Filipe Guerra

Ainda a propósito

"A Jihad, que significa «perseverar no caminho de Deus», é um dos conceitos mais mal interpretados do Islamismo. Ela abrange todas as actividades que visam defender o Islamismo ou aprofundar a sua causa. Neste sentido, as guerras através das quais os muçulmanos tentaram trazer novas terras para o domínio do Islamismo ficaram conhecidas como guerras Jihad e eram entendidas e justificadas pelos muçulmanos de uma forma semelhante ao entendimento que os cristãos tinham das Cruzadas. Na actualidade, qualquer guerra que seja vista como uma defesa do país, da comunidade ou da terra em que se vive é considerada uma Jihad. Esta acepção é muito semelhante àquilo a que na sociedade ocidental se chama 'guerra justa'. De modo semelhante, é frequente os extremistas políticos que acreditam na justeza da causa que defendem referirem-se às suas guerras terroristas ou de guerrilhas como Jihad, mesmo quando a maioria da sociedade em que se inserem considera os seus actos completamente injustificados.
Para a maioria dos muçulmanos, uma guerra Jihad é quase o mesmo que qualquer guerra justa para o cristão comum do Ocidente. A teoria da Jihad permite que o soldado mate o inimigo justificadamente; se assim não fosse, estaria a cometer um assassínio, que é um pecado muito grave no Islamismo. Da mesma maneira, quem morre pela causa justa da Jihad tem uma morte de mártir e são-lhe perdoados todos os pecados.
Os eruditos islâmicos referem uma Jihad exterior, que tanto pode ser uma Jihad da Espada (como a «guerra justa» acima referida) ou uma Jihad da Pena - elaborar defesas escritas do Islamismo, envolver-se na actividade missionária ou simplesmente aprofundar a sua própria educação e aprendizagem. Existe, no entanto, também uma Jihad interior - a batalha que todos os indivíduos travam contra os seus próprios instintos mais baixos. Devido à sua inerente dificuldade, esta é frequentemente chamada a Grande Jihad."

Jamal J. Elias, Islamismo.

O inferno

Augustin Pyrame de Candolle refere que uma rosa é ainda mais perfumada quando ao lado cresce uma cebola. Quem poderá dizer que isto é um mero capricho da natureza sem importância nenhuma?

Castelo de Vide



Descobri, sem esperar, a casa onde viveu Ventura Porfírio. Depois de deambular pelo labirinto da vila, como sempre, desde a infância. (Tocam-me estes recantos frescos e sombrios...)
De súbito, por detrás de Santo Amaro, uma ruela abandonada, rodeada por muros que a chuva, o sol e as ervas foram corroendo. Assomo por um buraco duma velha porta e contemplo a torre da igreja (carcomida no meio de um quintal), onde um sino virado aos canteiros e às figueiras parece querer tocar a qualquer momento, despertando séculos e séculos de silêncio.
Que ruína contemplo nesta terra se não a ruína da própria humanidade que, ao passar dos dias, se foi enterrando entre pedras e pedaços de telha partida, entre musgos e mato, entre ervas que o tempo sufocou?
Subi a calçada, íngreme mas fresca. Destaca-se uma casa. Simples, mas lançando para o meu corpo uma emanação estranha. Não soube, na altura, reconhecer o seu proprietário. Houve, contudo, uma suspeita: pareceu-me encontrar ali algo do espírito de Ventura Porfírio. Ao mesmo tempo: tranquilidade e drama, harmonia e angústia, serenidade e melancolia. Nunca o conheci pessoalmente, mas tenho recebido estas linhas da sua pintura.
Cheguei a casa e procurei de imediato a fotografia daquela habitação, num livro que sobre ele foi publicado. Não me enganara.

Ruy Ventura

14.7.05

Sinais de vida

"Pode entrar-se no Verão de faca em punho, assentando os joelhos e os braços sobre uma melancia. Como a mulher que na praça me perguntou 'Quer provar a melancia?'. Eu quis. A mulher espetou a faca na polpa alagada da melancia, desenhou uma linha curta, apenas da altura do gume; depois outra, e depois outra, oblíquas e em direcção a um centro comum, recortando uma pirâmide que a cada golpe se cobria de sumo quase espumoso, translúcido. Com a faca longa e reluzente estendeu-me o pedaço de melancia, que peguei com os dedos e comi. O mistério: da polpa ligeiramente áspera, granulosa como cristais de açúcar, faz-se água."

Há mais Verão aqui.

Wishful Thinking

Harder over time to believe
human beings will be pretty
much the same everywhere.

Margarida Vale de Gato

O primeiro sinal de retoma


aguasfurtadas, Revista de Literatura, Música e Artes Visuais.
Número 7 já disponível nas boas livrarias. E nas outras também.

13.7.05

Pound. Canto XXII

E diz o juiz: Esse véu é muito longo.
E a garota tira o véu
Que ela havia prendido em seu chapéu com um alfinete,
"Não é um véu", diz ela, "isto é um xale."
E diz o juiz:
Você não sabe que não lhe são permitidos todos esses botões?
E diz ela: Não são botões, são perebas.
O senhor não percebe que não há casas de botões?
E diz o juiz: Bem, de qualquer modo não lhe é permitido o arminho.
"Arminho?" fala a moça. "Nada de arminho,
É lattittzo."
E diz o juiz: E o que é exactamente lattittzo?
E diz a garota:
"É um animal."


Signori, sigam vocês e façam cumprir.

Tradução de José Lino Grünewald.

Crise

Se a sondagem divulgada hoje pelo Público estiver certa, a crise vai durar pelo menos mais quatro anos.

Simples

Quando acordei, esta manhã, a mesa do céu já estava posta. Comi nuvens ao pequeno-almoço.

Voltar atrás.

A matança dos inocentes

Vivemos em tempos de guerra: uma guerra sem convenções, sem honra, sem objectivos aceitáveis ou, sequer, compreensíveis - e muito menos justificáveis (ao contrário do que tem feito gente da nossa praça, com ingenuidade, desonestidade ou hipocrisia...). Afirmar que nada pode justificar o terrorismo contra cidadãos inocentes deveria ser um lugar comum. Mas, lamentavelmente, tal atitude ainda não se generalizou, mesmo em Portugal...
Esta guerra com que todos estamos a lidar tem causas profundas. Não me refiro à pobreza dos povos (promovida pelos seus líderes políticos ou religiosos que, depois, os manipulam, atirando todas as culpas para "o Ocidente"), pois quem está a liderar a matança dos inocentes vive na Europa ou na América com todo o conforto ou, vivendo no Oriente, não passa fome nem necessidades. Nem menciono a diplomacia (hábil ou desastrosa) das grandes potências. Estou a pensar numa grande miopia na leitura dos sinais que a História nos oferece (como, por exemplo, o facto do Islamismo ser uma religião que, desde o início, fez a sua expansão à custa da guerra). Recordo ainda, ao escrever este parágrafo, um pseudo-pacifismo cobarde que, ao longo dos séculos, tem sido causa de tantas desgraças na sociedade e no mundo, não esquecendo Lou Andréas-Salomé, que considerava o "pacifismo" uma frieza perante o sofrimento humano, e Marcel Proust que, numa das suas obras, afirmou: "o pacifismo multiplica às vezes as guerras e a indulgência a criminalidade". Meditemos todos nestas últimas afirmações...
Ao escrever estes parágrafos sobre a guerra terrorista que vivemos neste momento, não pude deixar de recordar dois poemas, de autores espanhóis, que reflectem de forma eloquente a dureza do confronto do ser humano com a violência gratuita. Aqui ficam as suas traduções - como homenagem aos mortos que a loucura tem levado da nossa existência física.

"Com o sangue até à cintura, por vezes / com sangue até ao limite da boca, / vou / avançando / lentamente, com o sangue até ao limite dos lábios / por vezes, / vou / avançando sobre este velho chão, sobre / a terra submersa pelo sangue, / vou / avançando lentamente, submergindo os braços / em sangue, / por / vezes engolindo sangue, / vou sobre a Europa / como na proa de um barco desmantelado / que escorre sangue, / vou / olhando, por vezes, / o céu / baixo, / que reflecte / a luz do sangue vermelho derramado, / avanço / com sacrifício, submergindo os braços em espesso / sangue / é / como um esperma vermelho empresado, / meus pés / pisam sangue de homens vivos, / mortos, / de súbito golpeados, subitamente feridos, / meninos / com o pequeno coração perturbado, vou / afundado em sangue / à porta, / por vezes / sobe até aos olhos e não me deixa ver, / não / vejo mais do que sangue, / sempre / sangue, / sobre a Europa não há mais do que / sangue. // Trago uma rosa em sangue entre as mãos / ensanguentadas. Porque nada mais existe / do que sangue, // e uma horrorosa sede / dando gritos no meio do sangue." (Blas de Otero, "Enchente" in "Ángel fieramente humano", 1950)

"Uma revolução. // Depois, uma guerra. // Naqueles dois anos - que eram / a quinta parte de toda a minha vida ? / eu havia experimentado sensações distintas. // Imaginei mais tarde / o que é a luta na qualidade de homem. / Mas para mim, criança, a guerra era apenas: // suspensão das aulas na escola, / Isabelita em cuecas na cave, / cemitérios de automóveis, andares / abandonados, fome indescritível, / sangue descoberto / na terra ou nas pedras da calçada, / um terror que durava / o mesmo que o frágil rumor dos vidros / depois da explosão, / e a quase incompreensível / dor dos adultos, / suas lágrimas, seu medo, / sua ira sufocada, / que, por alguma ponta, / entrava na minha alma / para desvanecer-se logo, rapidamente, / perante um dos muitos / prodígios quotidianos: descobrir / uma bala ainda quente, / o incêndio / de um edifício próximo, / os restos de um saque / - papéis e retratos / no meio da rua... // Tudo passou, / é tudo confuso agora, tudo / menos aquilo que apenas entendia / naquele tempo / e que, anos mais tarde, / ressurgiu dentro de mim, então para sempre: // este medo difuso, / esta ira repentina, / estas imprevisíveis / e verdadeiras vontades de chorar." (Ángel González, "Cidade Zero" in "Tratado de urbanismo", 1967)

Ruy Ventura

12.7.05

Resende sob o signo de Rimbaud

O Manuel Resende criou um blogue próprio. Chama-se Rimbaud Warrior.
O Manuel vai continuar a escrever no Quartzo, Feldspato & Mica.

This country is under construction

Os jornais de hoje dão conta dos resultados altamente negativos obtidos pelos estudantes portugueses nas provas nacionais do 9.º ano. Nestes tempos difíceis, esta é uma notícia que destoa do clima geral de crise. É a pura da verdade: o país continua a ter motivos para sentir orgulho nos seus jovens. Os estudantes provaram que são dignos dos velhos valores nacionais da modéstia e humildade. Não querendo envergonhar os seus colegas europeus, esmagando-os com os seus amplos conhecimentos de matemática e língua materna, os jovens portugueses, num gesto de grande nobreza, fizeram questão de chumbar nos exames. Insuflados por uma indescritível alegria interior, não cederem um milímetro ao apelo mundano da glória. E isso é muito bonito.

Notas de rodapé

(2) Printer and writers in France and Holland defied their German occupiers by publishing resistance newspapers, as well as limited editions of classic books, sometimes as few as a dozen copies. Many who engaged in such "verbotten" activity were arrested and executed.

Talvez

Talvez a resposta esteja em Strindberg. Strindberg não disse exactamente isto. Mas disse qualquer coisa parecida com isto: quando nos pomos a procurar deus acabamos por encontrar o Demónio.

Começar mal o dia

Ouvir o novo programa da manhã da Antena 2 (8h00-11h00), surgido com a grelha de Verão da estação. O programa mais imbecil e insuportável da rádio. A música não merece isto. Todos os dias, dois tipos e os seus convidados conversam sobre qualquer coisa de elevado interesse cultural (acho eu) e riem-se muito. Nos intervalos da conversa e das gargalhadas com valor artístico, fazem o favor de passar alguma música. Uma verdadeira merda. Mas uma merda que rompe as barreiras do convencionalismo, quer dizer, muito bela, muito elevada, muito cultural, claro.

11.7.05

Epigrama

Avisando alguém Inês
para deixar o marido,
que anda entre putas metido,
ela disse dessa vez:

"Bem que eu veja claramente
o mal que faz ao deixar-me,
não irei dele aforrar-me
mas desforrar-me, contente."

Baltasar del Alcázar (Espanha, 1530-1606).
Tradução de José Bento.

A nova guerra dos mundos


A Guerra dos Mundos, na visão de Gorey.

Circo

Rui Rio tem uma missão: "equilibrar as contas da Câmara do Porto." Por isso, Rio é implacável quando se trata de gastar um cêntimo dos cofres públicos: nada de despesas supérfluas. Este fim-de-semana, Rio gastou mais sete milhões de euros nas corridas dos calhambeques. Um investimento fundamental para a cidade. Mas foram rigorosamente sete milhões, note-se, nem mais um cêntimo.

9.7.05

Último aviso à navegação

Para todos os que julgam ou dizem que os ataques terroristas de Londres são sobretudo resultado directo do Corão e do islamismo radical e de atavismos psico-sociais, etc., e que qualquer outra tentativa de os compreender e explicar é justificá-los subliminarmente ou tangencialmente ou por qualquer outra forma incorrer num pecadilho anti-ocidental, ou não sei quê,lanço um último aviso.

Abri os olhos. Aquilo não são irracionais ataques movidos por um ódio visceral à nossa civilização. São actos de guerra frios e calculistas,lógicos e racionais, aprendidos no Afeganistão, às tantas com os conselheiros americanos da guerrilha e contra-guerrilha e da guerra psicológica.

Trata-se do seguinte: com parcos meios, contra um exército superior, causar o maior mal possível. Para isso, atacar a retaguarda, para desmoralizar o adversário. Se possível, matar o maior número possível de civis.

O resto, a justificação de que os mortos não são crentes, e etc., destina-se apenas a sossegar moralmente os combatentes e atemorizar ainda mais os adversários. Não adiantam pois nada, mas mesmo nada, as diatribes contra a barbárie dessa gente que não olha a meios. É precisamente isso que eles querem que se pense. Faz parte da campanha de terror.

De resto, ainda estou para ver qual o resultado dos ataques de Londres. Mas até aqui a táctica tem-lhes corrido bem: nos EUA, que é o que conta, a opinião pública tem vindo a deslizar constantemente para o lado da anti-guerra.

Mas, por favor, só posso voltar a aconselhar a leitura da entrevista de Michael Scheuer à Visão.

Tirado daqui 2

Continuando o post abaixo (e tirando do mesmo sítio), vemos como Rush Limbaugh grande cronista da direita nos EUA, aproveitou para dizer que os críticos americanos da política americana são aliados do Bin Laden (sounds familiar...):

Rush Limbaugh, meanwhile, suggested that everyone should just get over it, implying that "40 people dead" just isn't a big deal:

That's, ah, the mayor of London, Ken Livingstone. Very powerful, excellent. And it was such a great contrast to what we're seeing in our own media this morning with the hand-wringing I was speaking about and the "Oh, woe is us" and "Oh, what did we do to cause this?" and "Oh, does this mean we're going to get hit?" and "Oh ..." It's like I said -- 40 people dead, 150 seriously wounded, 1,000 wounded, out of over 1 million people in that transit tube. It's not a successful terrorist attack, folks.

Limbaugh also accused Sen. Barbara Boxer (D-CA), Democrats, and critics of the prisoner treatment at Abu Ghraib of "aiding and abetting" the terrorists, adding that Osama bin Laden "sounds like John Kerry":

When bin Laden talks about the "evils" of the United States and why it must be attacked -- it sounds like John Kerry in his 2004 presidential campaign. When whoever did this in London explains why they did it -- sounds like any liberal criticizing a successful capitalist country to me. So when you want to talk about, Sen. Boxer, the insurgents are winning the propaganda war, my question is, "Who's helping them? Who's assisting them? Who's going ape and bananas over Abu Ghraib and Gitmo? Who is aiding and abetting them? Who, who is it when they speak in this country -- the terrorists sit back and laugh themselves silly?" It's you, Sen. Boxer, and members of your party.

Tirado daqui

Tirado daqui.

Fox News reacts to London bombings ...

In the hours after the June 7 terrorist attacks on the London mass transit system, three Fox News hosts offered appalling and callous opinions of the tragedy.

Fox & Friends host Brian Kilmeade suggested that the attacks were somehow beneficial:

And he [British Prime Minister Tony Blair] made the statement, clearly shaken, but clearly determined. This is his second address in the last hour. First to the people of London, and now at the G8 summit, where their topic Number 1 -- believe it or not -- was global warming, the second was African aid. And that was the first time since 9-11 when they should know, and they do know now, that terrorism should be Number 1. But it's important for them all to be together. I think that works to our advantage, in the Western world's advantage, for people to experience something like this together, just 500 miles from where the attacks have happened.

Fox News Washington managing editor Brit Hume saw the attacks as a way to make a quick buck in the futures market:

I mean, my first thought when I heard -- just on a personal basis, when I heard there had been this attack and I saw the futures this morning, which were really in the tank, I thought, "Hmmm, time to buy."

And Big Story host John Gibson suggested that the real tragedy of the bombings wasn't that they happened at all, but that they didn't happen in Paris:

The bombings in London: This is why I thought the Brits should let the French have the Olympics -- let somebody else be worried about guys with backpack bombs for a while.

The Fox News callousness wasn't limited to Kilmeade's ability to find the bright side of a deadly terrorist attack, Hume's greed, and Gibson's frustration that the French weren't attacked. Fox News correspondent Simon Marks distinguished between Arabs and "regular" Londoners:

It [Edgeware Road] is an area that has a very large Arab population. Surrounding that station, a large number of Middle Eastern restaurants. So, it's a further indication, if in fact these attacks were carried out by Al Qaeda-affiliated cells that these people are, if necessary, prepared to spill Arab blood in addition to the blood of regular -- of non-Arab people living in London.

We wonder how long it would take for Hume or Gibson or Bill O'Reilly to call for resignations if employees of another news outlet -- say, CBS -- had made these comments.

Um clarão laranja

Todos os verões, temo-nos limitado a esperar pelo Outono. A única novidade é o inteligentíssimo telemóvel da última geração onde apanhamos sempre uma carinha roliça. No entanto, as linhas e as cores cruzam-se perigosamente. Em Londres, na linha amarela, antes de chegar às Picoas, rebenta uma, e logo outra entre a Saint Sulpice e a Maiakovskaia. Na Itália escura, onde «o poder é viscoso como mãos de barbeiro» (Mandelstam), espera-se o pior. Por cá, em vez da carinha roliça no ecrã a dizer pai dá-me dinheiro para os ténis vá lá, o teu telemóvel pode muito bem apanhar um clarão laranja saturado de membros.

Filipe Guerra

8.7.05

Para o Filipe Guerra

Sobre os Tchetchenos, um poema que publiquei em 1998 e escrevi alguns anos antes, não sei quando:

POEMA PARA UM TCHETCHENO

"Não odeio os meus inimigos, mas tem de ser."
Era professor de História e um dia, passeando pelo meio
. dos tanques russos, e os russos não brincam,
Viu uma metralhadora desempregada. Pegou lhe às escondidas.
Esvaziou se lhe o coração. Em casa tinha alguns livros por ler
Sobre a construção de Bizâncio, um guia da Internet,
Um computador roubado em Hamburgo, RFA, e comprado na
. candonga à mafia local,
Estava a escrever um livro, e tinha pouco tempo e mesmo assim
. deu-o à chamada pátria.

"plo buraco na parede do disparo do canhão do tanque russo
entrou te o míssil o medo
e com ele a pátria em casa
tapaste mal o buraco
com um jornal irrisório
irrisório contra o frio
com irrisórias notícias
cartaz de um mundo já morto
. e ela nunca mais saiu de lá de lá de dentro do fundo
. da casa
. e de ti.

Robespierre o puro o puro o casto o perfeito
a partir dos inimigos
foi fabricando inimigos
que depois tev' que abater
e acabou por ir pousar o pescoço no paridor de
. órfãos donde a cabeça lhe rolou para o chão
a História é assim salta nos ao caminho e não convém
estar em sítios que não convém quando ela passa.

porém ela
. não avisa quando vem."

Então isto que a gente faz tanto faz?
Então esta cara mais ou menos imprestável que todos
. mais ou menos temos,
Não nos ilumina o caminho no espelho de noite,
. quando falta a luz
Por causa da porcaria duns tanques russos?
Podemos continuar a não odiar os nossos inimigos?
Podemos cuspir o sujo e abrir um espaço limpo no coração?
Há, por outro lado, ódios bons, de coração
. quente e cabeça fria?
Podemos varrer os mortos para debaixo do tapete, antes
. de chegar a inspecção?
Eis muitas perguntas e que vamos nós responder lhes?

Por onde começar?

Quando saí de casa, esta manhã, parecia meia-noite. O sol estava encoberto por uma espessa camada de fumo negro. Sobre a Boavista impendia a tirania dos incêndios. Das serras de Gondomar e Valongo veio um vento quente cheio de cinzas tristonhas, anoitecendo tudo à sua volta. No quiosque, dois tipos trocavam opiniões sobre as explosões em Londres e a chuva de cinzas no Porto, reforçando os seus arrojos especulativos com significativas nuvens de tabaco. Eu não aguentei mais e acendi também um cigarro, pensando como é maravilhosa a civilização.

Fascismo e Al Qaeda 2

A Al Qaeda também não é fascista pelo seguinte.

O fascismo, sobretudo na sua forma mais virulenta, o nazismo, foi a resposta das massas pequeno-burguesas em errância a uma crise catastrófica em sociedades industrializadas democráticas desenvolvidas. Concentrando os ódios em inimigos fáceis (os judeus, pretensos representantes da plutocracia, bem como os ciganos, etc., sendo que estas duas categorias também representavam os estrangeiros; os sindicalistas, socialistas e comunistas, apresentados como aliados daqueles), o nazismo teve como primeira tarefa destruir os partidos e organizações de esquerda.

Só triunfou (digo só, mas é talvez um pouco abusivo, pois ninguém sabe o que teria acontecido se?), devido à política criminosa da Internacional Comunista, política chamada de classe contra classe, que assimilava os social-democratas ao imperialismo e se recusava a fazer alianças com estes contra o inimigo comum: quando Hitler subiu ao poder tinha menos votos do que os social-democratas e comunistas juntos.

A via para lutar contra eles era pois uma aliança entre organizações de massa dentro dos países em questão.

A Al Qaeda e outros radicalismos islâmicos é a resposta de uma civilização decadente que já foi brilhante à contínua humilhação que lhe é imposta pelas potências ocidentais e mais recentemente pelos EUA, principal ou única superpotência. Repare-se que durante dezenas de anos foram eliminados nos países islâmicos os movimentos laicos com a complacência ou até por iniciativa das potências ocidentais (sendo que o caso mais notório foi o Mossadegh e o partido comunista do Irão, bem como o partido comunista da Indonésia).

O radicalismo islâmico não é qualquer coisa inscrita nos genes dos árabes, ou dos turcos, ou dos persas ou dos indonésios, mas o reflexo monstruoso (peso as palavras) de sociedades que se sentem (e são) fracas, perante o poderio do ocidente, sobretudo nos países petrolíferos, sociedades ainda por cima abafadas na sua generalidade por ditaduras, onde a expressão da chamada sociedade civil foi emasculada.

O radicalismo islâmico de massas é, além disso, um fenómeno recente, surgido após o falhanço de movimentos mais laicos ou pluriconfessionais (FNL argelino, nasserismo, Baas, Mossadegh, Al Fatah, etc.)

A via para lutar contra o radicalismo islâmico é pois uma mudança de política dos governos ocidentais.

Fascismo e Al Qaeda

Em vários comentários disse que a Al Qaeda não é fascista, coisa que não foi bem recebida pelas massas. Não me admira. Quando, por várias vezes, tenho tido discussões destas a propósito de outros fenómenos, as pessoas costumam achar que sou um picuinhas, um esquisito.

Mas não. Neste caso, uma das coisas que distingue a Al Qaeda do fascismo é que a Al Qaeda não é um movimento de massas, contrariamente ao fascismo. Dessa forma, é o instrumento ideal para lutar contra um inimigo militarmente muito mais poderoso.

Bastam pequenas células espalhadas no território em luta para lançar a confusão no campo adversário.

E, mais, bastam pequenas células espalhadas por qualquer canto do mundo para lançar o pânico e o terror no adversário e abalar a moral das tropas no terreno e da retaguarda. Não se pode atacar no sítio em que o adversário tem mais força?

Ataca-se noutro sítio qualquer, sobretudo contra alvos fáceis e indefesos,para causar o maior estrago possível.

Com meia dúzia de combatentes, cria-se uma auréola de heroísmo nos jovens islamistas de todo o mundo que servirá de base para novos recrutamentos.

Aí está porque a política errada de Bush no Iraque e no Médio Oriente não nos tornou mais seguros, mas menos seguros. Aí está porque atacam em Londres. Aí está porque tentar ser rigoroso na análise só nos faz bem.

Michael Scheuer à Visão

«A actual administração não tem qualquer ideia do inimigo que representam Bin Laden, a Al Qaeda e os seus aliados. A política americana para fazer frente ao extremismo islâmico foi elaborada e aplicada por ideólogos neo-conservadores, aliados de Israel e das suas políticas, que enganam o povo americano, dizendo que Bin Laden e os seus acólitos odeiam e atacam a América exclusivamente pelo que somos - as nossas liberdades e cultura - e não pelo que fazemos. Este argumento ou é tremendamente desinformado ou é uma mentira deliberada e mortífera. O movimento que Bin Laden dirige e personifica odeia e ataca a América por causa da sua política externa, em especial devido à presença das forças armadas americanas no mundo islâmico. Se a América altera ou não estas políticas, depende, como sempre, do povo americano e dos seu processo democrático.»

Mas vale a pena ler toda a entrevista.

O suicídio de Masada

Naqueles tempos os romanos ocupavam Israel.

Entre os judeus, os sicários eram os mais ardentes lutadores contra a ocupação romana e iam ao ponto de matar os seus próprios compatriotas que suspeitavam de colaboração. Injustamente, porque muitos destes últimos também os acompanharam na luta contra os romanos.

Mas os sicários não eram os piores.

Seja como for, um sicário de qualidade estava acolhido em Masada, quando o general Flavius Silva marchou contra ela.

Eleazar reuniu toda a gente de Masada e disse: «Não vamos deixar que os romanos nos apanhem vivos,pois seríamos sujeitos à servidão. Matemos as nossas mulheres e filhos, queimemos as riquezas, e matemo-nos uns aos outros. Mas deixemos os víveres para que os romanos vejam que não foi por fome que nos matámos.»

Quando viu que alguns fraquejavam, retomou o seu discurso, explicando que a alma era imortal.

Ao fim deste discurso, estavam todos entusiasmados. Cada homem matou a sua mulher e os seus filhos. Depois, designaram dez homens para matarem os outros. E, no fim, um desses dez matou os outros. E a si próprio deu a morte, depois de queimar todas as riquezas.

O número de mortos elevava-se a novecentos e sessenta, contando com as mulheres e as crianças. Este desastre aconteceu no dia 15 do mês de Xanthicos.

(Muito) adaptado de Flavius Josephus, "Guerra dos Judeus".

Falta saber se houve suicídio colectivo ou não, ou simples resistência até à morte. Se os sicários eram isso que dizia FJ ou não (Flávio Joseph era um aristocrata judeu que se passou para o lado dos romanos). Não sou historiador, não sei. Mas o tema «liberdade ou morte» é muito antigo.

7.7.05

Em Londres como no Iraque

Tão assustadora como os ataques terroristas é a ideologia que está por trás deles. As declarações de Al Zarqui no Iraque, ontem, ferem como bombas as consciências humanas: o embaixador egípcio teria de ser morto porque é «apóstata», «aliado de judeus e cristãos». Logo, para os ideólogos do terror, ser apóstata, judeu e cristão já é ser não-humano, logo, não ser respeitado sequer como adversário ou inimigo. Quando Blair diz, sobre os bombistas de Londres, que «estas pessoas não respeitam a vida humana», além de ter razão, está nos antípodas da ideologia profundamente fascista que move os terroristas, já que ainda os considera como «pessoas». Pobre Iraque, que tem como opositores mais activos da ocupação apenas estes fascistas.

Filipe Guerra

Outra vez

BBC

O homem que se parecia com Soares



"Foram muitos milhares os que, profundamente consternados, assistiram ontem ao funeral de Salomão Castelo, numa cerimónia impressionante com que o país culto, democrático e bem vestido se despediu do criador do 'traje reversível', da 'casaca multi-usos', da 'Oeiras Fashion 2005', de tantas realizações que se projectaram internacionalmente no campo da moda e do design de fatos de senhora e cavalheiro que não só vestiram durante anos as figuras gradas do regime - desde Isaltino Machado a Valentim Lourenço, passando por Ruben Pinto, Margarida Rebelo de Carvalho ou Cunha Dias - mas também personalidades estrangeiras como Saddam Rockfeller, Laura Castel-Branco e Al Capush ou, porque o mestre era profundamente popular, pessoas vulgares mas distintas como uma Maria Manuela Carrilho, um Cavaco e Sousa, uma Leonor Bondades, um Aventino Ferreira Gomes...
Muitos dirão que uma parte da multidão presente era constituída por inimigos do homem público com quem Salomão se parecia e que, já que o original não se mostra disponível em ir desta para melhor - ou pior, dado que é laico - iam ao menos contemplar na câmara ardente o perfil do seu adversário ainda que só, digamos assim, em simulacro. No entanto estamos em condições de afirmar que o 'grosso do pelotão', para empregarmos a expressão imaginativa e realista do poeta João Leandro Palma Cavalão, era constituído por gente simples ou grada que nutria profunda admiração pelo homem que, saído da classe trabalhadora (seu pai era também alfaiate e a sua progenitora trabalhou como aprendiz de costureira) soube projectar-se nos domínios da moda com talento inovador. 'Um trabalhador da agulha e da tesoura sempre coerente com os seus princípios. Não dava ponto sem nó, o que mostra a qualidade das suas confecções! Na fashion, a sua palavra avisada era uma verdadeira sentença!' - diria com emoção o seu rival e amigo Jerónimo Ratana ao abandonar o cemitério onde o invólucro terreno de Salomão, que era profundamente crente (foi ele que desenhou e confeccionou o actual new-look das sotainas eclesiásticas nacionais), ficou depositado 'et saecula saeculorum'.
A multidão debandou após prolongadas ovações ao designer criativo que, de certa forma, mudou a indumentária de Portugal!".
(Dos jornais)

Salomão Eduardo Pote Castelo nasceu em Braga e especializou-se em corte e costura com o mestre Fernando de Assaz, que lhe ensinou como virar uma casaca a preceito e lhe deu o segredo de do velho fazer novo como ele dizia com chiste. Recebeu diversos prémios nas feiras de fashion de Frankfurt e S.Paulo e, ainda, o "Prémio Camoens" para fato de três peças. Deixa viúva a senhora D.Antonieta Lopo Antunes Castelo, a quem endereçamos os nossos sentidos pêsames.
O poema escolhido pelo artista/artesão desaparecido é o "O paletó" do grande poeta brasileiro Mauro Mota:

Nas mangas, moles túneis, onde enfio
os braços, colho o paletó semeado,
vindo da terra quente contra o frio;
dos estágios botânicos passado

à flor industrial: fio por fio
longo do algodão vivo no trançado
do brim que a estamparia coloriu
e expôs no manequim abotoado.
Nem o tear, nem a alfaiataria,
lembro ao colhê-lo: vejo-o nas matrizes
do chão, para onde há-de voltar, um dia,

comigo. As mãos, nos bolsos quando afundo,
antecipa-se o gesto mais profundo,
plantam-se os dedos como dez raízes.


Nicolau Saião

Gertrude Stein é Gertrude Stein é Gertrude Stein é Gertrude Stein

Da conciliação dos contrários

Concordo com o sociólogo Muniz Sodré (revista "Pública", de 01/05/2005), quando verifica no mundo actual uma assunção do grotesco ("uma mescla de contrários", de que nasce uma "aparente harmonia" cujos "efeitos violentos acabam por aparecer"). Este movimento está a conseguir instituir um perigoso nivelamento por baixo em todos os domínios. Amassada por um anti-racionalismo acrítico e sentimentalista, esta "conciliação de contrários [inconciliáveis]" está a bestializar o ser humano, rebaixando-o sem que ele se aperceba, eliminando muitas das suas capacidades de pensamento.

Ruy Ventura

6.7.05

Não compares

«Não compares: o vivente é incomparável» é um verso de Óssip Mandelstam, poeta russo. Porque achei este verso banal, simples introdução ao que vinha a seguir no poema; porque achei forçado aquele «vivente», mesmo em russo; porque achei que, enfim, o meu poeta preferido poderia fazer melhor, não obedeci, tentei esquecer e continuei a comparar alegremente. Por que não me esqueci então do raio daquela linha? Porque é verdadeira: a poesia não serve para se comparar à vida, serve para dizer precisamente isso e tentar sobreviver na selva moribunda das palavras.

Filipe Guerra

Após madura reflexão

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Marie Laurencin: Apolinaire et ses amis

Sob um sol de Julho

Após uma noite descansada, a manhã veio e trouxe-me delicadamente pelo cotovelo até ao escritório. Mas o que eu queria era pêssegos.

Da idolatria no meio literário

Estive a ler o suplemento "Mil Folhas" (25.06.2005) dedicado a Eugénio de Andrade. Perante tanta idolatria (aconteceu o mesmo com Sophia de Mello Breyner...), sobressaem os textos de Eduardo Pitta - "Insistir na 'veneração' acrítica é um disparate e um erro" - e de José Tolentino Mendonça - "Desconfia daqueles que veneram. Expulsa de tua soleira os devotos. Não admitas a teu convívio os lábios reverenciais". Um escritor não precisa de devotos (que tantos estragos fazem com a sua cegueira bem intencionada), mas de leitores conscientes que olhem para a sua obra com atenção crítica. Como nos mostram as memórias de Gabriel García Márquez, até os maiores escritores "pecam" sete vezes por dia...

Ruy Ventura

5.7.05

Soneto 130

Seus olhos em nada ao sol se parecem,
Seus lábios rubros, menos que o coral,
Se é branca a neve, os seios lhe escurecem,
Negro o cabelo, em fios de metal.
Vi rosas rubras, brancas, cor-de-rosa,
Mas nunca a face de rosas corada,
E fragrância há bem mais deleitosa
Do que o cheiro que exala a minha amada.
Gosto de ouvi-la falar, mas bem sei
Que a música apraz com mais perfeição.
Uma deusa a passar nunca notei,
Pois quando caminha ela pisa o chão.
Inda assim, o meu amor é tão raro
Como o que o desmente quando o comparo.

William Shakespeare.
Tradução de Manuel Portela.

O supertipo

Num grandioso dispositivo de som e luz, as televisões dão à cena os grandes acontecimentos mundiais: Jardim contra os pretos, Jardim contra os chineses, Jardim contra os indianos, Jardim contra os cubanos, Jardim contra os muçulmanos, Jardim contra os judeus, Jardim contra os jardins.

Raios partam o sol na cabeça

Palavras deselegantes, palavras desconfortáveis, palavras desgraciosas, palavras incomodativas. E, no entanto, impossíveis de substituir por outras. "Merda", por exemplo.


Ionesco em Genebra, 1968.

De como os filhos abrem os olhos dos pais

"Olha, papá, o céu está a ver estrelas."

Da glória literária

Percorrer um alfarrabista ou um mercado de velharias é o melhor exercício para nos vacinarmos contra esta sociedade de sucesso (literário, pseudo-cultural) fácil. Quantas "bestas céleres" (perdão, best sellers...) de outros tempos se acumulam por ali. E quem lhes pega? Ninguém!

Ruy Ventura

Mais uma vez

"Para acalmar a angústia (já terei dito isto?), para acalmar a angústia, para adormecer mais tranquilo, à noite, na cama, recordo os nomes de todos os que morreram... de todos os meus parentes e amigos, e inimigos que morreram, que morreram... São centenas... Represento para mim mesmo a minha própria peça, 'O Rei Está a Morrer', no papel principal!"

Eugène Ionesco

Os Canhões de Nabarone

"Os Canhões de Nabarone - Subsídios para o estudo do comportamento sexual da Sociedade Portuense" é uma produção Panmixia, não subsidiada, em cena no Teatro Latino (ao Teatro Sá da Bandeira). A dramaturgia e encenação são de Fernando Moreira e José Carretas.
De terça a Sábado às 21.30; Domingo às 16.00; preço único 10 euros; reservas através do 918485865. Até 24 de Julho.

Aliados

A Manuela D.L.Ramos, co-autora do Dias com Árvores, criou um blogue dedicado ao polémico projecto camarário de "reabilitação da Avenida dos Aliados", no Porto. Fundamental para quem pretende conhecer outros pontos de vista sobre o plano de Siza Vieira e Souto Moura.

4.7.05

Valium

E adormeceu nos ternos braços da sua poltrona.

O estado do tempo

O dia nasceu cheio de sol.
O céu está carregado de nuvens.


Frantisek Kupka, "Quatres histoires de blanc et noir", 1926

Poemas de Iacyr

Não é frequente, em Portugal, a edição de livros de poetas brasileiros. Decerto: vamos tendo à nossa disposição obras e/ou antologias de alguns autores clássicos (Cecília Meireles, Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto, etc.), mas - salvo estas e outras excepções - os leitores portugueses de poesia não têm à sua disposição nas livrarias o que se vai escrevendo no Brasil. Hoje em dia o acesso está mais facilitado, porque a internet permite aceder, sem grande esforço, ao conhecimento da obra de grandes poetas que vão produzindo do outro lado do Atlântico. O panorama editorial é, no entanto, paupérrimo, embora nos últimos tempos venham aparecendo algumas luzes ao fundo do túnel. Mais vale tarde do que nunca... E, assim, só podemos congratular-nos por, neste momento, já termos à nossa disposição autores tão fundamentais quanto, por exemplo, Adélia Prado ou Manoel de Barros. Em Portugal precisamos, contudo, de conhecer - através de boas edições - as obras de Mauro Mota, José Paulo Moreira da Fonseca, C. Ronald, Heleno Godoy, Fernando Fábio Fiorese Furtado, Miguel Jorge, Mário Chamie e de vários outros poetas que tem escrito muita da melhor poesia em Língua Portuguesa.
Esta introdução vem a propósito de uma ocasião feliz: a publicação em Portugal de uma das vozes mais importantes da poesia brasileira que se tem escrito nos últimos vinte e cinco anos, Iacyr Anderson Freitas. Nascido em Patrocínio do Muriaé (Minas Gerais) a 22/09/1963 e residente em Juiz de Fora, Iacyr possui uma vasta bibliografia que tem sido premiada tanto no Brasil quanto no estrangeiro. Traduzido em várias línguas, entre os seus livros destacam-se, em poesia, "Messe" (1990), "Oceano Coligido" (antologia da sua produção entre 1980 e 2000) e "A Soleira e o Século" (2002). Vale a pena ler, também, o seu livro de contos "Trinca dos Caídos", publicado em 2003. Agora temos a felicidade de poder adquirir, em Portugal, uma excelente antologia dos seus poemas: intitula-se "Terra Além Mar", foi seleccionada por Ozias Filho, prefaciada por Amadeu Baptista e editada na "Colecção Pasárgada", dada à estampa pela Ardósia Associação Cultural (info@ardosia.com.pt).
Poderia registar aqui a minha opinião crítica sobre a poesia de Iacyr Anderson Freitas. Mas nem este é um texto crítico, nem pretendo repetir o que outros já escreveram, reinventando a roda (que já foi inventada há muito) e correndo o risco de fazê-la quadrada... Manifesto apenas a minha adesão plena à obra que o poeta de Juiz de Fora ("vizinho" de Murilo Mendes e de Fernando Fiorese) publicou até ao momento (esperando estimular um igual entusiasmo em quantos me lêem). Estamos na presença de uma poesia profunda que escava o interior do ser humano, para nele encontrar os fundamentos da memória, do exílio, do quotidiano, da erosão do mundo, das emoções que nos transportam no universo. Como escreveu Edimilson de Almeida Pereira, "a poética iacyriana consiste em reconstruir - com pensamentos e afectos - os lugares onde a hipótese de reconstrução se desvaneceu".
Para vos abrir o apetite, aqui ficam dois dos seus poemas ("As mãos de meu pai" e "Lugar")[mantivemos a ortografia brasileira]:

"Só agora vejo crescer em mim/ as mãos de meu pai.// Decerto não tão rápido assim:/ um salto,/ o desfolhar de muitas noites sob a pele/ e, de repente,/ as mãos de meu pai// (o seu gesto esquivo/ de nuvem/ fixou-se antes/ e agora ruge.)// Hoje vou desfolhando minha pele,/ retirando o limo, o círculo de urzes,/ mas as mãos de meu pai/ não surgem.// Permanece ainda/ a velha imagem/ com seus santos no sepulcro.// A velha imagem/ de algo meu, que se foi/ gastando aos poucos.// Desfolhando-se até ao osso.// Até que outras mãos/ saibam colher, do ar mineral,/ a flora silenciosa,/ e úmida de meu corpo."

"Nunca tivemos lugar nesse mundo.// Ontem amávamos tanto/ o que agora esquecemos.// Amanhã venderemos a qualquer preço/ o que hoje nos faz/ mudar de endereço.// Por isso invejamos aquela árvore:/ porque soube/ qual era o lugar, porque nele soube/ deixar raízes// e em silêncio/ levitar."


Ruy Ventura

3.7.05

De como é que eu burlei um alfarrabista fascista

Aconteceu o seguinte.

Havia no Porto um alfarrabista, o Sérgio, na rua de Cedofeita, que era um bocado fascista. Tinha tudo o que a gente queria (inclusive senhoras americanas com o púbis à mostra), mas também imensos documentos de louvor ao Rommel, a raposa do deserto.

Ora, acontece que, uma vez, à procura de sobreviver nessas Europas, fugido ao Salazar, fui dar a Bruxelas, onde me aconteceram outras aventuras.

Entre os empregos precários que tive, tive o emprego de andar, disfarçado de soldado de Napoleão, com um painel pela frente e outro painel por trás, a vender não sei que coisa aos europeus convictos.

Junto a mim, havia um autêntico fascista, convencido da sua impedância, mas um dos poucos com quem se podia falar. Explicou-me diversas coisas, inclusive que havia um poeta belga, Henri Michaux que era o suprassumo.

Para ele, era o suprassumo só porque era belga.

Palavra puxa palavra, consegui induzi-lo a emprestar-me uma antologia da poesia francesa do Pompidou, que, para quem não sabe, foi primeiro-ministro francês e pessoa altamente culta, tanto que fez um centro cultural do mesmo nome nos Halles de Paris, onde antigamente se comia excelente sopa de cebola às tantas da manhã, coisas que já não há.

Que fiz eu com a antologia? Vendi-a ao Sérgio, que não percebeu que os francos inscritos na página de rosto não eram franceses, mas belgas.

Grande vitória do proletariado sobre a pequena-burguesia de vários países.

Note-se, aliás, que o crime prescreveu, que eu não sou burro.

Eu não acredito em bruxas três

Perguntará o eventual leitor deste blogue. Mas o que é que este palerma (palerma sou eu) se põe agora a falar do exponencial, quando nos deixou pendurados naquela coisa das bruxas?

E com razão. É que não expliquei o que tinha a ver aquela introdução belgicana respeitante às bruxas.

Bem, respiremos fundo. Houve uma altura em que pensei fugir ao Salazar e às suas guerras coloniais, e fui para a Bélgica, tendo arranjado "emprego" na Grolier International, uma enciclopédia americana que a gente tinha de vender segundo excelentes métodos de marketing. Tinha uma página especial que a gente segurava no ar e a encadernação não se desfazia. Era para provar que a encadernação realmente não era qualquer merda. Mas tinha que ser mesmo aquela página.

Faziam estágios para os "empregados" (os quais não tinham qualquer certeza de rendimento senão a comissão das vendas). Também nos davam um tutor, um vendedor experimentado que ia connosco aos potenciais clientes pescados por telefone (ring ring... Alguma coisa familiar?). Calhou-me como tutor o filho do embaixador da Índia, pessoa de grande cultura e honestidade, que me explicou: «Eh pá, pira-te desta merda. Olha que eu só vendi bastantes enciclopédias porque o meu pai é embaixador.»

Estávamos nós nisto, quando um palerma louro com o carro amouxado por certamente várias aventuras do género, e cheio de inscrições em flamengo, começou a querer encostar-nos à berma. É que o gajo, o filho do embaixador da Índia, era mesmo, digamos, um bocado preto e eu, aqui para nós,não tenho assim um ar muito ariano,seja deus louvado.

(ah ah! só agora, neste preciso momento é que percebo a ironia involuntária desta frase, visto que, segundo os partidários destas coisas,os indianos são os descendentes dos arianos. Desculpem qualquer falta)

Graças a deus ou ao diabo, o gajo, o filho do embaixador da Índia, não era nenhum peco em matéria de condução automóvel e, passados uns segundos, estávamos a expirar alívio na berma.

Foi nessa altura que compreendi que havia um problema na Bélgica. Nessa época, o grande partido nacionalista flamengo era o Volksunie, considerado pela burguesia francófona e pela esquerda como proto-fascista.

E o quê?

O quê, é que hoje o Volksunie, se cindiu. O Volksunie propriamente dito encosta-se regularmente à esquerda e os seus dissidentes fizeram o Vlams Blok (a que pertencerá, certamente essa avantesma que me quis assassinar numa berma).

Segue no próximo número.

2.7.05

O Poder da Exponencial dois

Este novo poder da exponencial é inspirado por Albert Jacquard e por um artigo do Monde Diplomatique.

Viviam rãs no charco juntamente com nenúfares. Os nenúfares duplicavam todos os dias o seu número, o que queria dizer que as rãs, mais parcimoniosas nos seus transportes sexuais, viam dia a dia reduzido o espaço que tinham à sua disposição. Não se preocupavam, pelo seguinte:

No primeiro dia, os nenúfares ocupavam um décimo apenas do charco. No segundo dia, dois décimos. No terceiro dia, quatro décimos, nada de preocupante. No quarto dia, oito décimos, quantidade desprezível. No quinto dia, dezasseis décimos, no sexto dia, trinta e dois décimos, no sétimo dia, sessenta e quatro décimos.

Alto,pensaram as rãs: sessenta e quatro décimos é mais de metade. Mas ainda temos quase metade do charco. Só que no sétimo dia, as rãs não tinham onde viver. Nenúfares e rãs tinham esgotado o charco.

Outro exemplo, tirado do Monde Diplomatique.


«Imaginemos que a descendência duma única bactéria, colocada ao meio-dia no meio de cultura, consegue saturar a caixa à meia-noite: nesse lapso de tempo, o número de bactérias foi multiplicado por 68 mil milhões. Quando é que a caixa estava meio cheia? Às 23 horas e 40 minutos. Se fôssemos uma dessas bactérias, em que momento teríamos consciência de que começávamos a ter falta de espaço? Às 22 horas, quando a colónia só ocupava ainda 1,5 % du volume da caixa, não imaginávamos a catástrofe que se preparava.

Suponhamos que, às 23,20 horas, uma bactéria particularmente avisada começasse a inquietar-se. Socorrendo-se de grandes meios,lança um programa de investigação de novos espaços. Às 23,40 horas, são descobertas três novas caixas, o que multiplica por quatro o volume disponível! Essa expansão dos recursos, aparentemente considerável, só dará, porém, uma trégua de 40 minutos: a colónia morrerá abafada 40 minutos após a meia noite.»

ERRATA:
Onde se lê "décimos", leia-se "centésimos".

O Poder da Exponencial

O xadrez é um jogo antiquíssimo, e muitas lendas contam a sua origem, uma das quais nos diz que foi inventado na Índia. Quando o rei Cheram o conheceu, ficou maravilhado com o engenho do inventor, o seu súbdito Seta, e a múltipla variedade de posições que no jogo são possíveis.

Mandou então chamar Seta para o recompensar pessoalmente pelo invento. Seta apresentou-se ao soberano vestido com muita modéstia.

- Seta, quero recompensar-te dignamente pelo engenhoso jogo que inventaste - disse o rei. O sábio agradeceu, mas não aceitou a generosidade.

- Sou rico que chegue para satisfazer todos os teus desejos - replicou o rei. Diz-me a recompensa que desejas e eu te satisfarei. Seta continuou calado. - Não sejas tímido, diz o que queres, não hesitarei em satisfazer os teus desejos.

- Grande é a vossa magnanimidade, ó soberano, porém concedei-me um curto prazo para meditar na resposta, e amanhã, depois de árduas reflexões, vos comunicarei o meu pedido.

Quando, no dia seguinte, Seta se apresentou de novo ante o trono, deixou o rei maravilhado pelo seu pedido inaudito.

- Soberano - disse Seta -, mandai que me entreguem um grão de trigo pela primeira casa do tabuleiro de xadrez.

- Um simples grão de trigo? - retorquiu admirado o rei.

- Sim, soberano, e, pela segunda casa, ordenai que me entreguem dois grãos, pela terceira, quatro grãos, pela quarta, oito, pela quinta, dezasseis, pela sexta, trinta e dois etc.

- Basta - interrompeu o rei, irritado - receberás o trigo correspondente às 64 casas do tabuleiro, de acordo com o teu desejo: por cada sucessiva casinha receberás a dupla quantidade que pediste, porém deverás saber que o teu pedido é indigno da minha generosidade; ao pedires-me tão mísera recompensa menosprezas irreverentemente a minha benevolência. Na verdade, como sábio que és, deverias ter dado maior prova de respeito ante a bondade de teu soberano. Sai daqui, meus servos te darão esse saco de trigo que solicitaste.

Os matemáticos da corte trabalharam intensamente para calcular a recompensa de Seta, que ficou à espera à porta do palácio real. Só ao amanhecer do outro dia o matemático chefe da corte solicitou audiência para apresentar ao rei uma informação muito importante:

- Ó rei, calculámos escrupulosamente a quantidade de grãos que Seta deseja receber. Resulta uma cifra astronómica, absurdamente gigantesca.

- Seja qual for a sua grandeza - interrompeu com altivez o rei -, os meus celeiros não se esvaziarão, prometi dar a recompensa a Seta, pelo que lha darei.

- Senhor, não depende da vossa vontade cumprir semelhante desejo: em todos os vossos celeiros não existe a quantidade de trigo que exige Seta. Nem sequer em todos os celeiros de todo o reino, nem até nos celeiros de todo o mundo. Se desejais entregar sem falta a recompensa prometida, ordenai que todos os reinos da terra se convertam em lavouras, mandai secar mares e oceanos, que se fundam todos os gelos e todas as neves que cobrem os distantes desertos do norte, que todo o espaço seja totalmente semeado e que toda a colheita seja entregue a Seta. Só então receberá a sua recompensa.

- Dizei-me qual é esse número tão monstruoso de grãos, disse o rei, espantado.

- Ó soberano, são 18.446.744.073.709.051.615. Ou seja, é o mesmo que 2 elevado à potência 64... A recompensa do Inventor do Xadrez deverá ocupar um volume aproximado de 12.000 Km3. Se o celeiro tivesse 4 metros de altura e 10 de largura, o seu comprimento teria que ter 300.000.000 de quilómetros, ou seja, o dobro da distância que separa a terra do sol.

ERRATA:

Como não podia deixar de ser, meti trapalhada. 2 elevado a 64 não é nem podia nunca ser
18 446 744 073 709 051 615, que é ímpar.

O verdadeiro valor é:

18 446 744 073 709 551 616

Obrigado a David Luz, pela correcção

Uma imitação de Daniil Harms

Saramago, o melhor escritor português vivo com nobel, marcou um encontro de anciãos com Herberto Hélder, o melhor poeta português vivo sem prémio, mas, como estivessem longe, um em Lanzarote e o outro em Lisboa, combinaram encontrar-se a meio caminho. Por sua vez, Lídia Jorge, a melhor escritora portuguesa viva de quem não se tem ouvido falar, telefonou a Agustina, a melhor escritora portuguesa viva tout court, e as duas arranjaram uma sala nas traseiras da Pastelaria Doce Lindo, na Rua do Sol ao Rato. Compareceram não só os ditos anciãos mas outros melhores escritores portugueses vivos, alguns deles sem convite. Prado Coelho falou, Graça Moura distribuiu as esferográficas, a Gulbenkian pagou a conta, o patrão da pastelaria mijou-se a rir de felicidade.

Filipe Guerra

Declarações polémicas

Nem todo o burocrata é mesquinho e sádico.

Ainda há povos felizes.

Não sou excluído social, não existem excluídos sociais, excluída social era a tua avó.

Deus existe

Os bancos só emprestam dinheiro a quem provar não precisar dele.
Caro senhor, a sua declaração supra contém manifestos erros técnicos. A Banca empresta dinheiro a quem o pedir com bons modos e se apresentar com uma gravata decente.

Às vezes também o burocrata se perde nos meandros dos seus sentimentos.

Se, do teu quilo e meio de belas maçãs starking, deres as duas melhores ao excluído, Deus recompensar-te-á.

Está tudo bem, o que eles têm é inveja.

Devagar se vai ao longe.

Agustina Bessa-Luís, sem dúvida a melhor escritora portuguesa viva.

Os burocratas vão e vêm, as secretárias ficam.

Se os blogues literários não se metessem tanto em política, o défice catastrófico até que se endireitava.

Excluindo os incontornáveis, aliás mortos, Camões, Fernando Pessoa, Sophia e Eugénio, Herberto Hélder é sem dúvida o melhor poeta português vivo.

O Porto é uma nação.

---------- é sem dúvida o melhor escritor português vivo (preencher).

Se juntarmos esforços, se nos dermos as mãos, se unirmos vontades, se o que lá vai lá vai e o que é preciso é olhar para a frente, se pararmos para pensar, oh, oh!

Filipe Guerra

Arrastão e Diana Andringa

Sobre o arrastão de Carcavelos.

Diana Andringa, primeiro, tem um nome esquisito.

Mas é, para qualquer jornalista,uma referência. Alma viva da Vida Mundial, antes do 25 de Abril, conotada com o MRPP logo a seguir, dirigente sindical e sempre inteira, irrepreensível.

Realizou agora enorme obra meritória que devia envergonhar todos os pivôs da nossa, salvo seja, televisão.

Fez um simples video com as notícias absolutamente estúpidas e nulas dos quatro canais e de vários jornais de referência, bem como meia dúzia de entrevistas bem escolhidas e captações de conferências de imprensa.

E desmonta cirurgicamente uma miserável manipulação.Apenas com as armas da inteligência, da sensibilidade e da integridade.

Creio que qualquer pessoa de bom senso perceberá que assim é. Basta descarregar o video. Aqui.

1.7.05

Anunciação


Jacarandá do Largo do Viriato. Talvez a árvore mais amada do Porto. Fotografia da Lídia Pereira.

Banqueiros, os traficantes de dinheiro

Aquilo que Sampaio disse dos banqueiros, embora menos literatário do que o costume, já que toda a gente o entendeu, ainda foi curto. Fosse eu presidente, e mandaria prender todos os grandes traficantes, dos da droga aos do dinheiro.
Ser liberal, quanto mais ultra melhor, é ser djovem. Os djovens liberais, alguns bem velhos, é ver-lhes as salazaristas caras enrugadas quando falam sérios nas tevês deles, têm tido palavras muito feias para Sampaio, com argumentos matemática, financeira e juvenilmente inteligentes, mas o mais inteligente dos quais é (eu ouvi): Sampaio é velho, pensa como um velho e não percebe nada de economia. Os djovens velhos e os velhos djovens liberais até que são totós: falam, falam, dão as caras, as matemáticas, os anos de estudo, as economias e as ciências, mas são como os ladrões que roubam para o patrão e não para eles, pois o verdadeiro ultra-liberal, o que lucra mesmo com isso por enquanto, está caladinho como um rato a curtir no real, a assegurar o seu dia de amanhã e a ver no que as coisas dão, porque hoje em dia, não é?, nunca se sabe.

Filipe Guerra

No original:

"O jovem levanta-se, dá-me um aperto de mão, diz-me: 'Mestre, tenho por si uma grande admiração!'
'Eu não', pensei."

E. Ionesco

Da televisão

A televisão está a dar cabo do imaginário colectivo. Melhor dizendo, o mediatismo promovido pela televisão, que coloca ao mesmo nível santos e vigaristas, homens íntegros e meros manobradores... Eleva-se a bizarria e a fama ? e esconde-se a valia que há por esse mundo. Ultimamente, temos assistido a uma espécie de necrofilia (Cunhal e Eugénio de Andrade foram os últimos de uma fila, em que já estiveram Karol Wojtila, Diana, Ayrton Sena, Teresa de Calcutá, Amália Rodrigues, Sousa Franco...). Mostram-se os mortos, porque acarretam multidões, mas, quantas vezes, esconde-se a sua obra, positiva ou negativa.

Ruy Ventura

Eu não acredito em bruxas dois

Como hoje já é amanhã, vou contar, por exemplo,

O Caso do Dicionário Grego.

Na Grécia, há um problema (há mais problemas, mas este também há).

E o problema é o seguinte: Salónica e Atenas não se dão.

Repare-se que Salónica era no princípio do século XX uma cidade muito mais importante do que Atenas. Nela vivia uma intensa comunidade sefardita, que falava ladino (mistura de português e espanhol, judeus fugidos da península ibérica), muitos turcos (entre os quais Kemal Ataturk, que veio a liderar a revolução laica que destruiu o Império Otomano), gregos propriamente ditos, etc.

E Atenas, o que era? Uma aldeia com 1500 habitantes, exangue, sem forças sequer para recordar as glórias passadas, Péricles e essas coisas.

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades. Uma vez que a independência fora adquirida no século XIX, havia que fazer de Atenas a capital, o que se conseguiu com grande força de vontade. Quem hoje descer de avião sobre Atenas, verá o imenso a perder de vista(deserto? conglomerado urbano? outra coisa?) amontoado de betão. O que se chama em grego polikatikía, plurihabitação, isto é, prédios aos andares.

Ora, há em Atenas o AEK, onde pontifica o Fernando Santos, e que quer dizer União Atlética de Constantinopla eh eh eh. E porquê, União Atlética de Constantinopla? Eu pus-me a rir, mas porque sou burro. É que essa malta são "descendentes" dos pontos. São pontos, mas não é para rir. Os pontos, são os refugiados do Helesponto, quando os gregos tentaram explorar o sucesso da independência para invadir a Turquia e foram esmagados, tendo grande parte da população grega da Ásia Menor(sem desrespeito para a Ásia) vindo aterrar a Atenas (não só a Atenas, pois também nos arredores de Salónika eles foram acolhidos, mas foi para Atenas que a grande maioria acorreu, donde os hoje milhões de habitantes dessa capital).

Há também em Atenas um clube mais clássico, o Olympiakós, cujo nome é suficientemente expressivo.

Mas há, em Salónica, o PAOK, e que quer dizer? Panssalónico Atlético Clube de Constantinopla, precisamente. A história é muito mais complicada, mas foi no que deu. Os mesmos pontos, os mesmos refugiados, agora misturados em Salónica.

Só que há ainda uma história mais triste. Durante a ditadura dos coronéis, tudo o que era de esquerda, socialista ou, sobretudo, comunista, era apodado de búlgaro.

Hoje em dia, os de Atenas, para chatearem os de Salónica, que nunca perdoaram à capital ter-se transformado numa metrópole só porque era sede administrativa do país, chamam-lhes... imaginem... búlgaros. E é o que os sócios dos clubes de Atenas chamam aos fãs do PAOK.

Houve um grande dicionário grego que incorreu no erro de consignar num verbete esse apodo, com rigor lexicográfico a explicar que se tratava de designação depreciativa utilizada pelos adeptos do AEK e do Olympiakós para designar os seus rivais do PAOK.

Qual quê? Os deputados de Salónica e mais outros levaram o caso ao parlamento, editaram lei e o dicionário teve de reescrever o verbete.