Homenagem fúnebre a Luís Carlos Fins Afonso Ferreira Crespo, ao som ao 40ª Sinfonia de Mozart (Molto Allegro), da Pequena Serenata em Sol Maior, KV 525 (Allegro); e de Ballads (do saxofonista de jazz Ike Quebec)
"Obrigado pela visita", disseste, com o teu sorriso sereno a bailar-te na boca. Não percebi onde se consegue ir buscar tanta coragem. Uma visita é coisa tão pouca perante quem sabe estar a olhar a morte de frente.
Falámos de viagens, amigos comuns, passeámos pelos espaços que escolheste, naquele teatro fraterno de iludir uma morte que tu desconfiavas poder apunhalar-te a qualquer momento.
E eu, para te "recuperar" para o mundo dos vivos e te dar força, levei-te nesse dia "Amanhã à mesma hora, diário de uma stripper", de Leonor Sousa. Já não tive tempo de te dar "O Beijo" (José Vilhena), que esteve a apanhar sol em minha casa durante dois dias, para prevenir as infecções que os objectos podem transportar perante quem está tão fragilizado fisicamente.
"Obrigado pela visita", disseste. E nunca mais ouvi palavra da tua boca. Visitei-te sem medos de nenhuma espécie da primeira vez, seis dias após o teu internamento, apenas com a preocupação de te dar ainda um abraço no hospital.
Estavas no teu primeiro dia de quimioterapia. Não pude deixar de perguntar: "Mas qual é o problema em concreto?". O problema era uma leucemia aguda. Galopante. Como não podia deixar de ser. Passaste pela vida a galopar como um corcel fogoso, um tufão, um ciclone de afectos. Com a curiosidade natural de ir ao encontro do Outro, viajando pelo mundo como quem apanha o autocarro para ir a Belém. Da Suécia à Albânia, passando pela Macedónia, da Polónia à Roménia. Onde não estiveste, Luís Carlos?
Telefonaste-me a pedir conselhos sobre Skopje, onde eu tinha estado ao serviço de O JOGO a cobrir um encontro da selecção nacional de basquetebol. Lembro-me disso tão bem como das confissões sobre a tua segunda experiência amorosa.
"Obrigado pela visita", disseste. E eu deixei-te a falar com a Margarida. Ela entrou no quarto e tu estendeste a perna, como um gatinho angorá com medo da chuva, mas com vergonha de o mostrar. De modo a que a Margarida pudesse fazer-te uma festa no pé direito. Já estavas a despedir-te, Luís Carlos? Se estavas a despedir-te, os teus olhos mostravam uma coragem maior do que o mundo.
E tinhas ainda coragem para chegar à cama ao lado e perguntar com voz animadora: "Então, camarada?". E camarada era uma palavra que te ficava bem. Porque camaradagem é fraternidade.
As nossas relações nunca foram normais, Luís Carlos. Nunca discutimos, desde 1979 até ao dia 15 de Julho de 2005. Isto não é normal, Luís Carlos. Que bonito seria o mundo se isto fosse normal, Luís Carlos. Já reparaste numa coisa? Se retirarmos o "Carlos Fins" do meio de "Luís Carlos Fins Afonso Ferreira Crespo" e lermos os primeiros dois nomes que sobram... tens o mesmo nome que eu: Luís Afonso.
"Obrigado pela visita", disseste. E foram as últimas palavras que ouvi da tua boca. Eu é que agradeço a visita que me fizeste durante estes anos todos. E tão poucos foram.
Dizem que a vida começa aos 40. Sendo assim, Luís Carlos, nem chegaste a ter idade para entrar na escola.
Pediste-me para avisar o Alberto da tua hospitalização. E eu avisei. No outro dia, o Alberto visitou-te logo ao almoço. E desfez-se em pequenas peças ao falar comigo ao telefone. Uma semana mais tarde, foi a vez do Gabriel se quebrar em mil pedaços de "puzzles" de cristal, telefonando-me de Gotemburgo. E eu, no meio de um jantar de blogues, dei todas as notícias ao Gabriel, com serenidade. Sabes, Luís Carlos, eu já tinha enviado um "mail" ao Gabriel, a preparar a tua passadeira vermelha que desemboca num bar de valquírias.
Mas o Gabriel deve ter passado uma semana sem perceber o que lia. O Gabriel não queria compreender. O Gabriel conhecia o Luís Carlos que se atirava loucamente pela encostas nevadas da Suécia, a bordo de um trenó. E que tinha logo um acidente à primeira tentativa, porque uma placa de gelo por baixo da neve o impedira de travar como devia.
- Ó Gabriel, vai ali um casal a fazer sexo, na parte de trás do eléctrico.
E o Gabriel, habituado a certos costumes liberais da Suécia, nem queria acreditar, enquanto o Luís Carlos, num dos seus primeiros contactos com Gotemburgo, se começava a compenetrar de que estava a assistir a uma cena normal para a Suécia.
Faz amanhã oito dias, Luís Carlos. Eram 23 horas, mais minuto menos minuto, Luís Carlos. Eu estava num jantar de blogues. E quando o telemóvel tocou era o Gabriel. E eu, a pensar que estava sereno, dei todas as notícias com calma e elevação.
- Desculpa, Luís - disse o Gabriel.
- Desculpa, Luís - disse o Gabriel.
- Desculpa, Luís - disse o Gabriel.
Desculpa, Luís, disse o Gabriel.
- Não consigo ouvir mais. Vou ligar à minha mãe.
E o Gabriel desligou. E quando o Gabriel desligou, as lágrimas que eu tinha chorado pelo Javier Bardem em "Mar Adentro" vieram outra vez esquiar-me pelo rosto abaixo. Mas vinham em grandes grupos de excursionistas muito velozes, a cair nos lábios com o sabor do sal.
E a Matahary, que estava a meu lado, e que eu só tinha conhecido pessoalmente há poucas horas, ficou assim...assim...assim muito triste a olhar para mim. Sem saber o que dizer ou que fazer.
E eu sorri um sorriso bonito, pedi desculpa e fui até à casa de banho. Sabes, Luís Carlos, eu não tinha vergonha de chorar por ti. Nestes dias todos, eu tive orgulho em chorar por ti. Mas eu precisava mesmo de ir à casa de banho.
E depois deslizei parede abaixo, fiquei com os joelhos à altura da cara, abracei as pernas e aquele exército de lágrimas (parecia um exército do Akira Kurosawa em "Ran") veio dar-me beijinhos no rosto, como quem diz:
- Deixa lá, Luís, é assim a vida.
Assim, como?
Sim, assim, como?
Luís Carlos, tu dançavas a valsa com a vida como num "Romeu e Julieta" de Shakespeare. E transformavas os golos de Eusébio num tango religioso de expressão máxima.
- Eu lembro-me. Eu era pequeno, eu até chorei. O Eusébio nunca falhava aqueles livres. E daquela vez partiu para a bola e chutou por cima da trave. Eu lembro-me, eu era pequeno, eu até chorei.
Sim, Luís Carlos, tu em pequeno choravas pelo Benfica. Mas sabias que o desporto era uma coisa para conviver, apesar de seres um tanque de guerra a jogar futebol. Eu sei, um dia chutaste-me no pé, quando ele ocupou o sítio onde estava a bola. Fiquei por ali aos saltinhos no jardim da Casa da Moeda, como numa dança da chuva. E tu a coçares a cabeça, a escolher o melhor ângulo para me pedir desculpa.
Rezei por ti de madrugada, na praia de Carcavelos, nesse sábado. Rezei por ti no Estoril, no sábado seguinte, no 60º aniversário de um grande amigo. E não percebi nada, Luís Carlos. Não percebi como é que uma felicidade merecida do meu amigo não se podia conjugar com mais um pedacinho de presunto ou queijo, para petiscar com a tua felicidade. Prepararam uma homenagem ao aniversariante, "construindo-lhe" um DVD-ROM de 20 minutos que atravessava toda a sua vida.
E enquanto eu via Moçambique e um tempo que não era o nosso (mas aquele mundo existiu mesmo?) começou a tocar o "She" do Elvis Costello e as lágrimas do "Mar Adentro" apareceram outra vez à traição. E o filho do aniversariante bateu-me nas costas, olhou-me com ternura, percebeu tudo e disse:
- É humano.
Claro que era humano. Tratava-se das minhas lágrimas para ti, do Estoril para a tua cama do Hospital do Desterro, exílio de coragem onde entraste de peito feito às balas, como se corresses a direito para a morte, como no "Galipolli", do Peter Weir. Não sei se estou a dobrar a letra L no sítio certo, Luís Carlos, mas agora estou a falar contigo, não vou pesquisar na Net, no IMDB. É um site onde se vai para obter dados sobre filmes. Não sabias, Luís Carlos? Ah! sim, tu é mais tinto.
É óbvio que agora não vou à Internet, Luís Carlos. Nem estou para a Taça Davis, em ténis. Sabes, Luís Carlos, estamos a perder com a Argélia por 2-0. Mas isso não tem importância nenhuma, pois não? O que continuo sem perceber é a razão de não teres podido estar comigo na bancada, a dizer uma coisa que eu imagino assim, num diálogo que apenas não aconteceu porque não tinha de acontecer:
- Porra, que estes portugueses não jogam nada. E o sol está forte como o caraças. Vou mas é buscar uma cerveja.
- Mas não estás a gostar do jogo, Luís Carlos?
- Estou a gostar de estar contigo. Mas agora vou buscar uma cerveja. Já venho, espera aí. Também queres uma?
Bem, Luís Carlos, vou passar do sol do Jamor para a penumbra da Igreja de S. João de Deus. Eu sei, às 16 horas, combinei com a Margarida. Mas não estranhes que não te vá cumprimentar e olhar para ti. Quero ficar com o sorriso que tenho dentro do coração. Esse outro Luís Carlos que já és... pertence a outro filme. Enganou-se no casting. Enganaram-no no casting e eu continuo sem compreender. Quero ficar com aquele filme de longa-metragem (e tão curto, tão curto que até dói no Alaska) em que entramos os dois.
Morri por ti um bocadinho todos os dias, Luís Carlos, quando te visitei. Para ver se ao morrer um bocadinho todos os dias te conseguia pescar um bocadinho de vida para além da morte.
Onde foste buscar tanta coragem, Luís Carlos?
Sabes, Luís Carlos, acho que me passaste um bocadinho da tua coragem. Sabes que me ia virando a um malcriadão de uma loja, a mandar-me calar? A fazer cabedal para mim. E se ele era grande, Luís Carlos. Mas eu não tinha medo nenhum. O que me podia fazer ele, Luís Carlos? Tu estavas a lutar na tua cama e eu sei que se a pancadaria começasse ele não tinha hipótese.
Porque era tanta a minha raiva de te ver a emigrar.
Lutaste que nem um leão, Luís Carlos.
- Fisicamente não estou preocupado contigo. Nesse capítulo tu és forte. Moralmente é que já não digo nada.
E foi assim que me despedi de ti na primeira e penúltima visita que te fiz no Hospital dos Capuchos. E uma empregada riu-se, à porta da saída. Porque também há risos nos locais recheados de morte em cemitérios de ilusões.
Foste jantar, Luís Carlos. E três dias depois já fiquei a ver-te jantar um peixinho. Com calma, serenamente, intercalando com a conversa, enquanto a Margarida não chegava. Ou já tinha chegado? Sei que o trânsito estava terrível e ela chegou muito stressada. Chegou ela, saí eu. Era a minha deixa nesse teatro de fingirmos que ainda estavas a tempo de sair dessa peça de teatro em que tinhas o papel do falecido.
Mas deixa-me que te diga, Luís Carlos: não vais faltar com essa facilidade toda ao nosso almoço do dia 31 de Dezembro, no "Hexágono Mais". Deves ser é parvo. Em primeiro lugar, porque já era tradição
(estás a ouvir, Luís Carlos? Está a tocar o saxofone do Ike, em "Nancy - With the laughing face").
em primeiro lugar, porque já era tradição. E depois porque tu insistias sempre em pagar e me passavas para a mão um molhinho dos livros que eu escrevia, para autografar para os amigos.
- Este é para a família Neves.
Sabes, Luís Carlos, eras o meu único amigo e leitor que pedia autógrafos para as famílias. E aquilo caía-me tão bem.
Por isso, Luís Carlos, já sabes. A 31 de Dezembro de cada ano, conto contigo no Galeto entre as 13 horas e as 13 e 30 horas. Apontando para chegar ao "Hexágono Mais" lá para as 14 horas. É perto, mas gostamos de andar devagar.
E se tu não puderes ir por um motivo qualquer, podem ir a Margarida e a tua mãe, mais as pessoas que elas quiserem levar. E uma coisa é certa: vamos beber uma garrafa de tinto alentejano, para brindar à tua presença.
E na mesa vai haver sempre um prato para ti. E prometo que em cima dele todos os anos vai estar um poema novo ou um texto novo em que tu entres, tu fales, tu digas qualquer coisa.
E mesmo que eu não possa estar fisicamente, por um motivo qualquer de trabalho ou de força maior, a Maragarida, a tua mãe e as outras pessoas que elas quiserem levar, vão encontrar dentro de um envelopinho o meu texto anual para ti.
E nessa altura, vamos pedir ao senhor Ramos ou ao senhor António para abrirem uma excepção à política de não beber em serviço. E eles vão desejar-te um Bom Ano, Luís Carlos.
Se houver um Inferno irlandês, Luís Carlos, reserva-me um lugar em frente ao ecrã gigante, à hora do Benfica?Sporting. E pede duas Guiness das grandes. Se o Benfica marcar primeiro, tu dás um salto e uma gargalhada daquelas, assim à duende da floresta, com vozeirão dos trovões e riso puro como uma criança acabada de descer do escorrega. E eu encolho os ombros, porque isto de ser do Sporting é assim mesmo.
E se o Sporting marcar primeiro, tu levantas-te, dás um pontapé na mesa, dizes meia-dúzia de palavrões, bebes o resto da cerveja de um trago e proclamas:
- Tenho de ir buscar mais uma cerveja. Uma coisa é sofrer golos, outra é sofrer desta maneira parva. Alguma vez isto acontecia no tempo do Eusébio?
Sabes, Luís Carlos, ainda pensei em pedir ao Eusébio para te fazer uma visita, se conseguisses voltar para este lado. Já não tive tempo. Mas sei que a culpa não foi tua. Lutaste como um leão. Até ao fim, de espada na mão, como um viking.
Natural. Eras um vagabundo da vida, sempre à procura de outras paragens.
Adeus, amigo. Até sempre! Sabes tão bem a falta que me fazes.
(Passam 11 minutos da meia-noite, mas vamos fingir que ainda consegui acabar de escrever no dia 15, está bem?)
PS - Espero que gostes dos poemas que eu escrevi para ti. Afinal, foste tu que mos deste. São mais teus que meus. Ó Luís Carlos, não sei como não explodi quando a tua mãe me agarrou nos braços com meiguice e me disse, à porta do hospital: "Ai, o nosso Luís, ai, o nosso Luís...".
Ai, Luís... eu não sabia que tinha tantas lágrimas guardadas em teu nome no meu coração...
POEMA PARA O ÚLTIMO VOO
Nunca soube
se era azul
o azul dos teus olhos
E sendo azul
se era o azul do céu
ou era o mar
Sempre soube
o oceano inteiro
nos teus olhos
Em lágrimas de sal
e risos de marfim
recheados de pérolas
Nunca soube
se era azul
o azul dos teus olhos
Sempre soube
o teu voo de águia
sobre as águas
O teu corpo como carpa
a saltitar feliz
no meio da corrente
Nunca soube a razão
do teu adeus
a rebentar nas ondas
Olhos nos olhos
eu e tu sabemos
as palavras em falta
Como gotas a escorrer
de mágoas numa caverna
que nos corta a alma
Nunca soube
se era azul
o azul dos teus olhos
O oceano inteiro
do teu voo de gaivota
a beijar a brisa
Nunca soube
se era azul
o azul dos teus olhos
E sempre soube
o teu lugar de pássaro
é no céu
15/7/2005
A VISITA DO PÁSSARO MALVADO
Um dia
uma sombra
um pássaro
uma ave
Disfarçada de abutre
pendurada do céu
de cabeça para baixo
levou-te para longe
E ficou a noite
a chorar baixinho
triste como breu
só, como um farol
Mas a tua luz
que brilhava ao longe
quando tinhas na mão
o vento da tarde
Acendeu um facho
vestiu-se de lutos
sorriu de mansinho
e depois...silêncios
15/7/2005
Luís Graça