29.12.03

Señor Tallon #24

De acordo com Simara, conhecida cançonetista brasileira e especialista em cristaloterapia, técnica esotérica que faz uso das qualidades benéficas dos cristais, “a pedra de 2004 será o cristal de quartzo”.

A gerência agradece a preferência.

Este blog tem estado mais ou menos encerrado para férias do pessoal e balanço. Reabrimos em força a 5 de Janeiro. Até lá, para qualquer assunto, é favor usar o quartzo@sapo.pt.

Post Scriptum #107

VLADIMÍR HOLAN: DIA 4.




Quarto poema da pequena antologia de Vladimír Holan, traduzido por Miguel Gonçalves, a partir da versão em inglês de Dana Habova (Mirroring: Selected Poems of Vladimir Holan, Wesleyan University Press , 1985).


ELA PERGUNTOU-TE

Uma rapariga perguntou-te: O que é a poesia?
Tu querias responder-lhe: Tu também és, ah sim, tu também
- e tu a medo e surpreendido -,
o que prova o milagre,
tenho ciúmes da tua beleza madura,
e porque não posso nem beijar-te nem dormir contigo,
e porque não tenho nada e quem não tem nada para dar
deve cantar...

Mas tu não respondeste, permaneceste em silêncio
e ela não ouviu a canção.

Tradução inédita de Miguel Gonçalves.


SHE ASKED YOU

A girl asked you: What is poetry?
You wanted to say to her: You are too, ah yes, you are
and that in fear and wonder,
which prove the miracle,
I'm jealous of your beauty's ripeness,
and because I can't kiss you nor sleep with you,
and because I have nothing and whoever has nothing to give
must sing...

But you didn't say it, you were silent
and she didn't hear the song.


Tradução de Dana Habova.

28.12.03

Post Scriptum #106

VLADIMÍR HOLAN: DIA 3.




Terceiro poema da pequena antologia de Vladimír Holan, traduzido por Miguel Gonçalves, a partir da versão em inglês de Dana Habova (Mirroring: Selected Poems of Vladimir Holan, Wesleyan University Press , 1985).


FICA

Fica comigo, não me deixes,
a minha vida é tão vazia
que só tu, orgulhosamente humilde, me podes ajudar
a não perguntar mais nada.

Fica comigo, não me deixes,
tem pena da minha impaciência
que, rabiscada no diário de bordo de um navio-prisão,
perdurará até à eternidade.

Fica comigo, não me deixes
não conheces a raiva e nem a tua raiva durará para sempre –
e para onde irias, como te sentirias
quando estivesses farta? Espera um pouco, espera,
espera pelo menos até
que o carteiro chegue com as cartas que só a ti pertencem.


Tradução inédita de Miguel Gonçalves.



STAY
Stay with me, don't leave me,
my life is so empty
that only you can help me, proudly humble,
from asking further questions.

Stay with me, don't leave me,
have pity on my impatience
which, scrawled in a prison-ship's log,
will outlast eternity.

Stay with me, don't leave me,
you don't know anger nor will your anger last -
and where would you go, how would you feel
when you are over it? Wait a little, wait,
wait at least until
the postman comes with letters only for you!

Tradução de Dana Habova.

24.12.03

A emissão segue dentro de momentos.

A Gerência do Quartzo, Feldspato & Mica deseja a todos os seus leitores um Próspero Natal e um Feliz Ano Novo.

Posted by Menino Jesus.

O Silêncio é de Ouro #23

Sugestão do dia.

Por Raul Silva.


Post Scriptum #105

VLADIMÍR HOLAN: DIA 2.




Segundo poema da pequena antologia de Vladimír Holan, traduzido por Miguel Gonçalves, a partir da versão em inglês de Dana Habova (Mirroring: Selected Poems of Vladimir Holan, Wesleyan University Press , 1985).


NEVE

Começou a nevar à meia-noite. E claro
a cozinha é o melhor local para se estar,
mesmo a cozinha dos que não dormem.
É quente, podes cozinhar alguma coisa para ti, beber vinho
e olhar através da janela para a tua amiga, a eternidade.
Para quê preocupares-te se o nascimento e a morte são apenas pontos,
e se a vida não é uma linha a direito.
Para quê torturares-te a olhar para o calendário
e interrogares-te sobre aquilo que está em jogo.
Para quê confessares que não tens dinheiro
para comprar uns sapatos Saskia?
E para quê queixares-te
de que sofres mais do que os outros.

Se aqui não houvesse silêncio
a neve tê-lo-ia sonhado.
Estás sozinho.
Poupa os gestos. Não tens nada para mostrar.


Tradução inédita de Miguel Gonçalves.



SNOW

It began to snow at midnight. And certainly
the kitchen is the best place to sit,
even the kitchen of the sleepless.
It's warm there, you cook yourself something, drink wine
and look out of the window at your friend eternity.
Why care whether birth and death are merely points
when life is not a straight line.
Why torment yourself eyeing the calender
and wondering what is at stake.
Why confess you don't have the money
to buy Saskia shoes?
And why brag
that you suffer more than others.

If there were no silence here
the snow would have dreamed it up.
You are alone.
Spare the gestures. Nothing for show.


Tradução de Dana Habova.

Post It #41

(...)

23.12.03

Cimbalino Curto #51

Rui Rio acusa,
Nuno Cardoso defende-se,
Rui Sá dispensa,
Orlando Gaspar reúne,
Oliveira Marques reconhece,
a Administração Regional de Saúde do Norte responsabiliza,
a União de Sindicatos do Porto reclama,
os trabalhadores da Metro do Porto paralisam,
a PSP do Porto detém,
a GNR apreende,
e a caravana passa.

Post Scriptum #104

VLADIMIR HOLAN: DIA 1.





Tal como tínhamos anunciado, iniciamos hoje a publicação de um pequeno conjunto de poemas de Vladimir Holan, em tradução inédita de Miguel Gonçalves.

Holan nasceu em Praga, em 1905, e morreu na mesma cidade, em 1980. Durante a sua agitada e intensa vida, sofreu inúmeras perseguições e os seus livros foram silenciados e proibidos durante anos. A redescoberta do seu trabalho no seu país e um pouco por toda a Europa inicia-se apenas a partir dos anos 60. Nos anos 80, era já considerado um dos grandes poetas nacionais e um dos maiores da literatura europeia do século XX.

Em Portugal, a extensa e extraordinária obra de Holan está representada apenas por uma breve plaquete, que foi editada pela Oiro do Dia, em 1981. Trata-se de dois poemas, "Soldados Vermelhos" (originalmente editado em 1947) e "Morte", traduzidos por Luísa Neto Jorge e Eugénio de Andrade, respectivamente. Para além, claro, do poema incluído na Rosa do Mundo (Assírio & Alvim, 2001).

Hoje publicamos o primeiro de quatro dos seus poemas, a partir da versão em inglês de Dana Habova (Mirroring: Selected Poems of Vladimir Holan, Wesleyan University Press , 1985).


ENCONTRO NO ELEVADOR

Entrámos no elevador. Apenas nós os dois
olhámos um para o outro e foi tudo.
Duas vidas, um momento, plenitude, felicidade.
Ela saiu no quinto andar e eu continuei a subir
sabendo que jamais a voltaria a ver,
aquele fora apenas um encontro, um só e para sempre,
sabendo que se a seguisse seria um homem morto no seu caminho
e que se ela se voltasse para mim
seria apenas do outro mundo.

Tradução inédita de Miguel Gonçalves.


MEETING IN A LIFT

We stepped into the lift. The two of us, alone
We looked at each other and that was all.
Two lives, a moment, fullness, bliss.
At the fifth floor she got out and I went on up
knowing I would never see her again,
that it was a meeting once and for all,
that if I followed her I would be like a dead man in her tracks
and that if she came back to me
it would only be from the other world.

Tradução de Dana Habova.

Post It #40

Sabes onde é que a cultura me levou ontem?
A lado nenhum.

22.12.03

Correio dos leitores.

Há muitos anos li um livro cuja história nunca mais me saiu da cabeça. No entanto, não me recordo como e onde o arranjei e, pior do que isso, esqueci completamente o nome do autor e o título.
O livro conta a história de um amor entre duas personagens: Johannes e Katharina. Um amor, porém, frustado, uma vez que o irmão de Katharina obriga-a a casar com um nobre rico mas cruel. Por isso, Johannes e Katharina só conseguem passar uma noite juntos. Quando se vêem um ao outro, por acaso, cinco anos depois, o seu reencontro é tão apaixonado que o pequeno filho de ambos – fruto da sua união de uma noite – se afoga num tanque próximo. O marido de Katharina obriga então Johannes a pintar o retrato do rapaz morto, acompanhado desta legenda: "Culpa Patris Acquis Submersus" ("Desaparecido sob as águas devido à culpa do pai").
Alguém sabe de que livro se trata e onde posso encontrá-lo? Dão-se alvíssaras.


Joaquim Cardoso
joaquimcardoso34@yahoo.com

O Povo é Sereno #30

Depois dos cafés, o amor.

Ainda a propósito do amor pelas cidades e pelos seus cafés, Firmino, o Belo deixa-nos esta sugestão, em jeito de desafio:

Já se discutiu cafés, meios de transporte, pontas de lança. Não seria esta a altura certa para discutir o amor no Porto? Será que amamos mais do que em Lisboa ou Coimbra? Será que amamos demasiado às escondidas? Será que amamos pela frente, será que amamos por trás, ou melhor, será que assumimos os nossos amores ou temos dificuldade em fazê-lo?
Uma coisa é certa, se este fosse um tema de conversa bloguiana, ninguém falaria do Rui Rio nem do Pinto da Costa.

Post Scriptum #103

ASNOGRAFIA
Juan Ramón Jiménez

Leio num dicionário: "Asnografia: s. f.: diz-se, ironicamente, da descrição do asno."
Pobre asno! Tão bondoso, tão nobre, tão inteligente como és! Ironicamente… Porquê? Nem uma descrição séria mereces tu, cuja descrição exacta seria um conto de Primavera? Se ao homem que é bom deveriam chamar asno! Se ao asno que é mau deveriam chamar homem! Ironicamente… De ti, tão intelectual, amigo dos velhos e das crianças, dos regatos e das borboletas, do sol e dos cães, das flores e da lua, paciente e reflexivo, melancólico e amável, Marco Aurélio dos prados…
Platero, que sem dúvida compreende, olha-me fixamente com seus grandes olhos brilhantes, de uma serena firmeza, onde o sol brilha, diminuto e refulgente, num breve e convexo firmamento negro. Ai! Se a sua peluda cabeçorra idílica soubesse que eu lhe faço justiça, que eu sou melhor que esses homens que escrevem Dicionários, quase tão bom como ele!
E escrevi à margem do livro: "Asnografia: s. f.: deve dizer-se, com ironia, claro está!, da descrição do homem imbecil que escreve dicionários."



Juan Ramón Jiménez, Platero e Eu, Trad. José Bento, Livros do Brasil, 2003.


Ilha dos Amores #25


Rauf Mamedov, Birth Scene, 1998.

19.12.03

Post Scriptum #102

Poe, de novo.

Margarida Vale de Gato anda às voltas com o Poe. A ideia é limpar-lhe o pó e dar-lhe um ar novo, com uma nova tradução da sua obra poética para português. O livro está em preparação e deverá sair em breve através da editora Errata. Já aqui tínhamos publicado, em primeiríssima mão, a sua excelente versão de "O Corvo". Hoje, e em jeito de prenda antecipada de Natal, a Margarida oferece-nos o poema "O Lago-Para…". Pela minha parte, agradeço a prenda e retribuo como posso, com um belíssima imagem do Mestre, tirada poucos dias antes do fim.



Retrato de Edgar Allan Poe.
Daguerréotipo de William Pratt,
Setembro de 1849.



O LAGO-PARA...
Edgar Allan Poe (1809-1849)

Tive eu na mocidade ocasião
De achar do mundo vasto um lugar
O qual eu não podia mais amar...
Porquanto me encantou a solidão
De um agreste lago por penedos
Circundado, e por altos arvoredos.

Mas quando a noite o seu sudário
Deitava em tal lugar, e em tudo à volta,
E o vento misterioso andava à solta...
E o vento um canto murmurava...
Ah... era então que eu despertava
Para o terror do lago solitário.

Contudo tal terror não me assustava,
Mas com tremores me deleitava...
Um sentimento tal cujo mistério
Excede mil jazigos de minério...
E mesmo o teu Amor... que eu cobiçava.

No veneno da onda havia dolo,
E em seu vórtice um esquife apropriado
A quem aí buscava o consolo
De um espírito inventivo desterrado,
Erguendo, em seu delírio transviado,
Um Éden no sombrio e torvo lago.


Tradução ainda inédita de Margarida Vale de Gato.
(The Raven and Other Poems, 1845).


Señor Tallon #21

Quem ainda não teve a sorte de descobrir o Luís Graça, tem agora uma excelente oportunidade para o fazer. "O homem que casou com uma ‘Estrela’ Porno & outros contos perversos" (Edições Polvo) é uma deliciosa recolha de histórias de um dos melhores ex-colaboradores do DN Jovem. Sendo do Graça, o livro pode ser comprado sem cerimónias. Mas para os mais cépticos, há aqui uma pequena mas suculenta amostra.

Mais de Graça, no Respirar o Mesmo Ar e também aqui.

Em breve, Vladimir Holan. Por Miguel Gonçalves.

18.12.03

O Povo é Sereno #29

Conversas de Café.

Firmino entra no café e senta-se à nossa mesa. Isto é o que ele diz.

Costumo assistir com alguma atenção ao "mui nobre e leal" debate que este blog tem promovido nos últimos tempos. É natural. Eu e o meu irmão somos vizinhos. Moramos no nº 16 da tabela aqui do lado. E como toda a boa vizinhança, de vez em quando, trocamos sal e pimenta. Hoje porém, ficamo-nos apenas pelo raminho de salsa. E a minha humilde razão é muito simples: esta discussão sobre rivalidades, 29 anos depois, já não faz sentido. O Porto já não mora em casa dos pais. Já não tem que tirar boas notas para ter a mesada, que nunca foi muita. Já não tem que pedir ao pai para entrar na conversa do jantar e dizer o que pensa. Já não tem que esperar pelo S. João para sair à noite e ter motivo para festejar. É certo que ainda mora num T1 K, voltado para um pátio interior. Mas acredito que esteja a juntar o capital necessário para um dia entrar num qualquer condomínio com piscina e ter o seu lugar ao sol. Este blog é a prova disso (desculpa o mel, ó vizinho).

De qualquer forma, e como esta também é uma discussão de afectos, aqui vai um pequeno esgar: Imaginem que eu amo apaixonadamente a minha mulher. E, naturalmente, lhe conheço todos os defeitos. Todas as manhas, os segredos de alcova. Os mesmos que me fazem sorrir sempre que acordo a meio da noite e lhe escuto a respiração. Agora, imaginem que alguém me diz que ela vale pouco. Que há melhor. Que ela, se calhar, até não sabe fazer aquilo que todo o homem gosta. Não é sofisticada. Não é suficientemente inteligente. Não usa aquele sotaque que, em algumas situações, leva um homem a ejectar-se pujantemente rumo a Vénus.
Se isso acontecesse, eu só poderia responder duma forma: "Tens razão… Olha, posso pagar-te um pingo descafeínado?"


Firmino, o Belo

Post Scriptum #101

Rubrica Descubra as Diferenças.


SONETO A HELENA
Pierre de Ronsard (França, 1524-1585)

Quando velhinha, à noite, ao lume da candeia,
Sentada ao pé do fogo, escutando e fiando,
Direis, meus versos lendo e vos maravilhando:
Celebrou-me Ronsard quando não era feia.

Serva não haverá, que ouvindo vossa ideia,
Cansada do trabalho e já cabeceando,
Desse meu nome, ao som, não se erga despertando,
Vosso nome a abençoar, de louvor toda cheia.

Eu serei sob a terra e, fantasma ocioso,
Sob os mirtos, à sombra, hei-de ter meu repouso:
Sereis uma velhinha, à lareira, encolhida.

A chorar meu amor e vossa altivez vã.
Acreditai, viveu em esperar por amanhã:
Colhei, a partir de hoje, as rosas desta vida.

Tradução de A. Herculano de Carvalho.
Oiro de Vário Tempo e Lugar, 2ª Ed., Asa, 2003.



QUANDO FORES VELHA
W. B. Yeats (Irlanda, 1865-1939)

Quando fores velha, grisalha, vencida pelo sono,
Dormitando junto à lareira, toma este livro,
Lê-o devagar, e sonha com o doce olhar
Que outrora tiveram teus olhos, e com as suas sombras profundas.

Muitos amaram os momentos de teu alegre encanto,
Muitos amaram essa beleza com falso ou sincero amor,
Mas apenas um homem amou tua alma peregrina,
E amou as mágoas do teu rosto eu mudava;

Inclinada sobre o ferro incandescente,
Murmura, com alguma tristeza, como o Amor te abandonou
E em largos passos galgou as montanhas
Escondendo o rosto numa imensidão de estrelas.

Tradução de José Agostinho Baptista.
W. B. Yeats, "Uma Antologia", Assírio & Alvim, 1996.

Ilha dos Amores #24


Fra Angélico, o que pintava o céu de joelhos.
A Fuga para o Egipto, Museu de São Marcos, Florença.

17.12.03

Post Scriptum #100

MARTIN OPITZ
(Alemanha, 1597-1639)




WASSER RINNT UND EILET SEHR

Bem veloz, a água se escoa;
Mais depressa a frecha voa;
e o vento, sem descansar
Anda nuvens a arrastar;
Mas passam tão de corrida
Os homens vãos nesta vida,
Que tudo parece lento:
Água, nuvens, frecha e vento.

Tradução de A. Herculano de Carvalho.
Oiro de Vário Tempo e Lugar, Asa, 2003.

O Povo é Sereno #27

O mais polémico dos nossos leitores está de regresso. Ricardo Carvalho reage a um texto que o Nuno Corvacho publicou no jornal Público, de Sábado, a propósito da reabertura de dois cafés históricos do Porto, o Guarani e a Brasileira. Infelizmente, o texto do Nuno não está disponível on line.
Seguem-se os inevitáveis comentários.


Reabriram dois cafés na baixa da Cidade do Porto e os autores deste blog já tiveram oportunidade de se pronunciar acerca do tema. Da forma como é mencionada, a glória dos cafés no Porto deve ser da mesma época em que o Benfica ganhava campeonatos de futebol. Mas posso estar enganado, como é óbvio : )

Nuno Corvacho fê-lo também no jornal Público, este fim-de-semana. Faço aqui esta referência porque nem todos os leitores deste blog têm acesso ao suplemento Local Porto deste jornal. Quem não conhecer o Porto tenha cautela, desconfie. Quem não conhecer Lisboa, também. O texto é demais, nem dá para acreditar em tal falácia. Fiz o seguinte exercício: onde se lia "Lisboa" coloquei "Porto", e onde se lia "Porto" substituí por "Coimbra" (também o poderia fazer com outra cidade). Eis o resultado:

"Se há algo de que Coimbra se pode ainda gabar, quando comparada com o Porto, é da qualidade, diversidade e amplidão dos seus cafés. Na capital do Norte, com efeito, o que se verifica é o 'nivelamento por baixo': há vastos territórios da cidade onde não existe um único café digno desse nome, e os que vai havendo, em povoamento disperso, são, por norma, demasiado exíguos, tantas vezes com as mesas coladas umas às outras numa febre de aproveitamento do espaço, onde a privacidade é naturalmente uma miragem, sendo lugares onde normalmente não apetece estar, mais apropriados às vagas de apressados e desconsolados "comes-em-pé" que invariavelmente os invadem à hora das refeições; não há por isso meio-termo, já que se passa rapidamente e sem transição dos chamados "cafés históricos" e com "pedigree" (como são os da Baixa, por exemplo) para o modelo "francesinharia" manhosa, ficando de permeio um imenso espaço vazio sem uma oferta "mainstream" com o mínimo de qualidade. Sabendo-se como por esse mundo fora grande parte da vida cívica, da massa crítica e do carisma das cidades se mede pela bitola dos estabelecimentos onde as pessoas podem calmamente sentar-se a uma mesa, tomar uma bebida e conversar, o panorama geral que se vive no Porto, salvo raríssimas excepções, é, de facto indigno de uma segunda cidade de um país europeu.
Em Coimbra, felizmente para os conimbricenses e para os turistas que visitam a cidade, é justo reconhecer que o cenário é diferente: há muito mais por onde escolher, a densidade de estabelecimentos do género é incomparavelmente maior, e pode mesmo dizer-se, sem grande risco de erro, que é também mais fértil o cultivo da chamada "vida de café"." E por aí fora.

Soa estranho, não é? Se eu publicasse este texto no jornal "Diário das Beiras" ou no "Diário de Coimbra" de certeza que os leitores que conhecem o Porto diriam o mesmo que eu digo em relação ao texto do Nuno: "Cuidado que isso não é bem assim! Ou o autor não conhece bem o Porto ou então é mal intencionado."

Ideias velhas e usadas são como cacos de vidro. Perigosas porque cortam, não se devem reutilizar mas sim reciclar. Só se reutilizam para pôr em cima dos muros, espetados no cimento com as arestas mais cortantes e bicudas viradas para o suposto invasor. Só para intimidar, portanto. Ter vizinhos que fazem isso é desagradável. Para quem se fecha assim ainda é pior, demonstra medo do mundo exterior e com certeza que não deve ter muitos amigos lá fora.

Parece-me mais profícuo para todos procurar o que nos une em vez de continuar a conversa do "meu café é melhor que o teu", até porque neste caso tenho sérias dúvidas que isso seja verdade.

Quanto aos cafés, já lá fui e estão muito bonitos. O Guarani é uma versão light do Majestic por ser mais acessível que o irmão mais velho. Mas ainda tem muito brilho. É preciso embaciar um bocado, riscar as mesas e depois logo se verá.

Gostei mais do serviço da Brasileira, simpático e descontraído. Parece que tem um restaurante e uma cave com mesas, mas ainda tenho de investigar melhor. Já disse aos responsáveis para tentarem procurar outra solução para as arcas congeladoras e frigoríficos que produzem um ruído alto e monótono, verdadeiramente ensandecedor. Na tv (que é muito pequenina e discreta) se calhar em vez da sport tv com o campeonato italiano de futebol podia-se arriscar um canal de música, desenhos animados, fashion tv, sei lá, procurar uma faixa etária que frequente um sítio fora de casa às 22h00 (que não seja um bordel). A melhor parte é que é uma pechincha! Café 0,50 €.

Já agora, quando lá forem não estacionem o carro em cima do passeio, é desagradável para quem vive perto e vai lá a pé : b


Ricardo Carvalho

16.12.03

Cimbalino Curto #50

Há escutas neste blog.

Há uma ou duas semanas atrás, em conversa com a Cristina Fernandes, na mansa pacatez de uma das nossas caixas de comentários, observávamos como seria interessante um livro feito a partir das experiências vividas nas viagens de autocarro através do Porto.
Pois bem, algum responsável da STCP que nos lê deve ter gostado da ideia e, em tempo recorde, encomendou e deu à estampa o livro, mesmo a tempo de entrar nas listas das ofertas de Natal.
E então os direitos de autor, meus senhores?

15.12.03

Post Scriptum #99

Aproveito o facto de o problema no computador estar mais ou menos resolvido para publicar o segundo texto da poetisa grega Jenny Mastoráki (n. 1949), em tradução inédita de Manuel Resende. Há uma breve apresentação da autora em Post Scriptum #97.  


A ALEGRIA DA MATERNIDADE.


À noite faço trabalhos perigosos.

Ato cordéis compridos

de janela para janela

e penduro jornais clandestinos.

Que queres, a poesia já não dá.

Já outros disseram tudo, dizem.

E depois, há já muitas que cantam

a alegria da maternidade.

A minha filha nasceu

como todos os bebés.

Ao que parece

vai deitar fortes pernas

para correr rápida nas manifestações.


To Soi, Kedros, 1978.

Cimbalino Curto #49

A Feira de S. Miguel, ou simplesmente o S. Miguel, como também era conhecida entre o povo, foi uma das mais importantes feiras do velho Porto. Tinha lugar desde 1682, no campo da Cordoaria, e durava vários dias, a partir de 29 de Setembro. As barracas distribuíam-se pelas ruas à volta do campo, desde as proximidades da Torre dos Clérigos, até junto ao Hospital de Santo António, e vendiam tudo o que é possível imaginar: dos produtos agrícolas e alfaias às mais diversas quinquilharias, dos móveis de pinho aos comes-e-bebes, dos chapéus de palha aos espectáculos de variedades.
Ora, um dos personagens mais marcantes da história desta feira foi o "Domador de Peixes". Durante vários anos, pelo menos de 1734 a 1743, montou a sua tenda junto à "Árvore da Forca", no exacto local onde a Torre dos Clérigos lançava a sua sombra às três da tarde. O seu espectáculo incluía números com pequenas baleias e tubarões, e polvos desmesuradamente grandes. De acordo com alguns relatos da época, todas as tardes o "Domador de Peixes" entrava no campo da feira instalado numa espécie de carro alegórico puxado por dois enormes leões marinhos. Depois, fazia estalar três vezes o seu chicote e o espectáculo começava.
O "Domador de Peixes" foi o único verdadeiro concorrente do "Homem do Cosmorasma", outro personagem incontornável da Feira de S. Miguel. Firmino Pereira, velho cronista da cidade, deixou-nos um relato esclarecedor daquilo que era possível assistir na sua tenda: "o Homem do Cosmorasma possuía uma máquina mágica que exibia as pirâmbolas do ingito com dois camelos em baixo; a rainha de Espanha mandando afuzilar Cristovão Colombo, um dos sete sábios da Grécia; e a morte de D. Inês com o rei a tirar-lhe o coração pelas costas."
A Feira de S. Miguel foi transferida em 1876, por ordem camarária, para a Rotunda da Boavista. Acabou por desaparecer poucos anos depois.

Post Scriptum #98

Hora do Conto

O AVISO
Por Walter Benjamin

Num parque de recreio, não longe de Tsingtau, havia um promontório rochoso célebre pela sua localização romântica e pelas suas encostas escarpadas, precipitando-se no abismo. Esse promontório era visitado por muitos namorados, em seus momentos de felicidade, os quais, depois de se maravilharem com a paisagem nos braços das suas acompanhantes, desciam até uma hospedaria próxima. Essa hospedaria estava próspera. Pertencia ao senhor Ming.
Aí pensou um dia um apaixonado, abandonado pela sua amada, pôr termo à vida, no mesmo lugar onde mais plenamente a havia vivido e, não longe da estalagem, lançou-se do rochedo mais alto para o abismo. Este engenhoso apaixonado teve seguidores e não tardou que o promontório fosse mais maldito como ossário do que famoso como miradouro.
Tal reputação, porém, pesava também sobre o estabelecimento do senhor Ming pois nenhum cavaleiro levaria a sua dama a um sítio onde, de um momento para o outro, poderia aparecer uma ambulância. O negócio do senhor Ming ia de mal a pior e ele viu-se forçado a entrar em reflexão.
Um dia, fechou-se no seu quarto. Quando de lá saiu, foi para se dirigir à central eléctrica próxima. Poucos dias depois, uma cercadura de arame rodeava o romântico promontório. Num letreiro lia-se: "Cuidado! Alta tensão! Perigo de morte!"
A partir de então, os candidatos a suicidas passaram a evitar aquele lugar e os negócios do senhor Ming prosperaram como nunca.

Walter Benjamin, Histórias e Contos, trad. Telma Costa, Teorema, 1992.

Ilha dos Amores #22



Sou um leitor voraz de literatura erótica. Não tanto como o Pedro Pombo, é certo, mas mesmo assim com algum currículo na área. Ora, tanto quanto me lembro, " A Vida Sexual de Catherine M." foi o único livro vagamente aparentado com este género, que não consegui ler até ao fim. É um livro chato, repetitivo, sensaborão, desinteressante.
Pois bem, acabo de saber - com muito atraso - que o polémico livro foi recentemente adaptado para o teatro. "La Vie Sexuelle de Catherine M." esteve em cena no teatro Fontaine, em Paris, numa encenação de Jacques Malaterre. Marie Matheron interpretou o papel da narradora. Não conheço a actriz, mas acredito que se tivesse visto a peça ficava a conhecê-la melhor. E, de resto, com todos os pormenores. Isto, claro, se a peça respeitar o espírito do texto original.

Computador avariado desde sexta-feira. Stop.
Sem mail e ligação à internet. Stop.
Espero que por pouco tempo. Stop.
Até já. Stop.

posted by rma, a partir de um cibercafé, algures em Gaia.

13.12.03

Correio dos leitores

Há muito tempo que procuro um exemplar de "Le Voyage Clair-Obscur", de Jacques Bellmer, dado à estampa pelas Editions Nicaise, em 1947. Compro em bom ou mau estado. Aceito várias modalidades de pagamento.

João Barbosa
joao_bar@hotmail.com


Alguém conhece o texto integral de um poema do romeno Zarin Berezescu sobre os "poetas silenciosos" e que começa com estes versos:

"Os poetas silenciosos têm duas bocas, três, quatro, sete.
Mas poupam as palavras quando não têm nada para dizer."


Ana Claro
claro.ana@aeiou.pt

12.12.03

Post Scriptum #97

De volta aos gregos. De todos os poetas do século XX que aqui temos publicado, os gregos são os que estão em maior número. E tudo graças à generosidade de Manuel Resende. Recordo que nos nossos arquivos encontram-se vários poemas de Kiki Dimoulá, Michális Ganas e Nikos Engonópoulos, para além de Giórgios Seféris, em versões inéditas de Manuel Resende. Hoje acrescentamos a esta lista a poetisa Jenny Mastoráki (n. 1949), ainda inédita em quase todas as línguas, à excepção do inglês. A tradução e apresentação são de Manuel Resende. 


JENNY MASTORÁKI (n. 1949). Poetisa grega definitivamente nascida depois da guerra, assume uma posição crítica relativamente aos seus antecessores (de resto, quase todos homens). Os seus últimos livros são recolhas de visões oníricas. Seguem-se, porém, dois poemas tirados do seu segundo livro – este é o primeiro -, «To Soi» («Os meus», no sentido de «os meus familiares»), de 1978.


O RIO


O poema omnipotente,

como rio mítico,

barbudo,

de cartucheira à bandoleira,

vem pela rua abaixo a buzinar

enfadando as amantes.

E o poeta

por que te apaixonaste aos dezoito

já não existe,

pois existir quer dizer

tenho casa na rua kypséli

vá visitar-me no fim-de-semana

ou apresento-lhe a minha esposa.

Há uns tipos, em altos estrados,

a fazerem truques com lenços coloridos,

como outrora os charlatães

que vinham de carroça

e te tiraram o dente são

por dois taleres.


De To Soi, 1978.

Post It #39

Estes são alguns dos blogs surgidos recentemente e que, na nossa opinião, merecem uma visita cuidada: Apfelstrudel, Gargarejando Alegremente, Pudins Maizena, Engenheiro António Manuel Coelho dos Santos, Acrocephalus arundinaceus e Galinha da Minha Vizinha.

Estas sugestões são patrocinadas pelo blog O Porto é uma na São.

Post It #38

O melhor do mundo são as crianças.

Many artists’ children turn out just fine, and grow up to edit their parents’ work and live off the royalties. But some do not - for example, James Joyce’s two children. His son became an alcoholic; his daughter went mad. Carol Loeb Shloss, a Joyce scholar who teaches at Stanford, has just written a book about the latter: " Lucia Joyce: To Dance in the Wake"

Press Release #5

Hoje, no Auditório Fernando Távora da Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto, a partir das 22h00, vai ocorrer uma venda de desenhos de arquitectos e artistas plásticos.

Os desenhos estarão expostos no museu da faculdade de 8 a 12 de Dezembro.

Entre os autores incluídos nesta venda contam-se, entre outros, Álvaro Siza Vieira, Eduardo Souto Moura, Alexandre Alves Costa, ACTAR Barcelona, Pedro Ramalho, Carlos Nogueira, Marcos Cruz e Manuel Graça Dias.


(João Mendes)

Mais informações sobre esta venda de desenhos aqui.

11.12.03

Post Scriptum #96

François de Maynard
(França, 1582-1646)


EPIGRAMA

Nada escreve a tua pena
Que de mil véus se não cubra,
Teus dizeres são noite negra
De lua e estrelas viúva.

Amigo meu, deita fora
Essa retórica horrenda,
Bem precisa a tua obra
Dum adivinho que a entenda.

Se o teu espírito pede
Que ocultes seu génio imenso,
Dize-me lá: quem te impede
De te servires do silêncio.

Tradução de A Herculano de Carvalho.
Oiro de Vário Tempo e Lugar, 2ª Edição, Asa, 2003.


A Ilha dos Amores #20



Inauguram hoje as exposições de fotografia Para Além do Instante, de Mário Marques (Portugal, n. 1956), Toda a Dor do Mundo, de Alfredo Jaar (Chile, 1956), Bahia, Saga e Misticismo, de Marcelo Buainain (Brasil, n. 1962), e Tanta Dor, de Jane Evelyn Atwood (E.U.A., n. 1947), na Cadeia da Relação do Porto, sede do Centro Português de Fotografia, a partir das 22h00.

Señor Tallon #19

Corte de Cabelo

E o destaque do dia vai inteirinho - para usar uma expressão cara aos animadores de rádio - para "a nova imagem" do jogador de futebol Simão Sabrosa. De acordo com fontes próximas do jogador, que solicitaram o anonimato, "a próxima grande jogada do 'sub-capitão' benfiquista será a abertura de um concurso de ideias para o desenvolvimento e concepção de um layout original para a noite de reveillon". Mais um contributo daquele que é conhecido apenas por Simão, para reduzir os índices de desemprego entre os designers e directores de arte portugueses.

10.12.03

O Povo é Sereno #26

De acordo com um documento do Pentágono divulgado ontem, Portugal e Angola são os únicos países de língua oficial portuguesa que poderão concorrer à reconstrução do Iraque. De fora da corrida deverão ficar países como a França, a Alemanha, a Rússia e o Canadá. Uma explicação demasiado simplista para esta decisão, e que é avançada pelo Público, remeter-nos-ia para o facto destes países se terem recusado a participar na coligação militar liderada pelos Estados Unidos.
Mas os reais motivos que estiveram por trás desta escolha da Administração Bush poderão ser outros, pelo menos no que diz respeito a Angola. E a hipótese foi-nos adiantada pelo leitor Ricardo Carvalho. Segundo o Ricardo, os americanos poderão ter sido influenciados por uma campanha publicitária que está a ser veiculada em vários jornais e revistas, e que demonstra a vitalidade do sector angolano da construção civil.
Este é o anúncio que prova que a tese de Ricardo Carvalho poderá ter alguma base de sustentação. Mas, caro Ricardo, uma dúvida persiste. O que terão feito os portugueses, por seu lado, para cair nas boas graças dos americanos?


Anúncio publicado na revista África Hoje nº 183 (Novembro de 2003).

ADRIENNE RICH: DIA ÚLTIMO

Com este poema, encerramos o ciclo dedicado a Adrienne Rich que incluiu um pequeno conjunto de poemas traduzidos por Margarida Vale de Gato e nunca antes editados. Esperamos com isto ter contribuído para um maior conhecimento da extraordinária arte de Rich entre o público de língua portuguesa. E, quem sabe, despertar o interesse de algum editor.
Não queríamos terminar sem dirigir um agradecimento muito especial à Margarida, excelente tradutora de Rich e de todos os grandes poetas.




Sexto poema (quinta parte) da breve antologia de Adrienne Rich, em tradução inédita de Margarida Vale de Gato.



DESPERTAR NAS TREVAS

5.

Toda a noite sonhando com um corpo
que o espaço verga de outro modo que o meu
Fazemos amor na rua
o trânsito corre para longe de nós
arrepiando como um lençol
o asfalto agita-se com ternura
não há qualquer apreensão
movemo-nos em conjunto como plantas subaquáticas

Uma e outra vez, começando a despertar
Mergulho de costas para te descobrir
sussurrando ainda, toca-me, continuamos
fluindo através desse lento
oceano da floresta de luzes da cidade
agitando a capilosidade do corpo.

Mas isto é o que se diz em sonhos
despertando
gostaria que houvesse um espaço
real em que nos pudéssemos situar
passando-nos os binóculos
olhando para a terra, a lenha
onde começou a racha.

(in Diving Into the Wreck, 1973)




Tradução inédita de Margarida Vale de Gato.

O Silêncio é de Ouro #21



Herbert Joos (n. 1940) é um conhecido músico alemão que, desde o princípio dos anos 70, concebeu ou participou em cerca de 30 discos de jazz, alguns dos quais históricos. Mas Joos não é apenas um excelente intérprete de vários instrumentos de sopro, é também um extraordinário ilustrador e autor de um livro dedicado exclusivamente a Miles Davis (1926-1991). "Miles: An Illustrated Portrait" (1991) inclui numerosas ilustrações de Davis e é já uma espécie de raridade entre os coleccionadores de jazz.
Algumas dessas ilustrações podem ser vistas aqui.


(Raul Silva)

9.12.03

Post Scriptum #95

Aos 15 anos, Flaubert sonhava ser condutor de camelos no Egipto e perder a virgindade num harém. E a realidade não andou muito longe da ficção. Quando o seu pai faleceu, Flaubert herdou uma fortuna razoável que lhe permitiu viajar longamente pelo Oriente. Aí conheceu a prostituta Kucuck Hanem, com quem manteve uma experiência sexual que terá sido de grande significado. Segundo o próprio escritor, Kucuck não seria exactamente um modelo de beleza: "Ela tem um dente incisivo superior direito que começa a deteriorar-se". De qualquer maneira, sempre que o francês passava por Esna, perto de Luxor, não perdia a oportunidade de recolher-se de novo entre os braços e o dente cariado de Kucuck.
Esta história foi-me contada pelo Affonso Romano de Sant'anna. E eu, admito, estou a contá-la com algumas modificações.

ADRIENNE RICH: DIA 9




Sexto poema (quarta parte) da breve antologia de Adrienne Rich, em tradução inédita de Margarida Vale de Gato.



DESPERTAR NAS TREVAS

4.

Claridade,

um jacto

cegante e purgante

flechas de sol fustigando a água

os corpos montando o ar

tais planadores

os corpos em câmara lenta

caindo
na piscina
das Olimpíadas de Berlim (2)

controlo; perda de controlo

os corpos erguendo-se
arqueando-se de costas para a torre
o tempo rebobinando

claridade de ar livre
antes dos quartos escuros
com chuveiros

os corpos caindo de novo
livremente

mais rápidos que a luz
a água abrindo-se
tal ar
tal realização

Uma mulher fez este filme
contra

a lei
da gravidade


(2) Alusão à sequência de mergulhos do documentário Olimpíadas, de Leni Reifenstahl sobre os Jogos Olímpicos de 1936.


(in Diving Into the Wreck, 1973)


Tradução inédita de Margarida Vale de Gato.

Cimbalino Curto #46



A pequena capela que fica diante da entrada principal dos jardins do Palácio de Cristal e que falei no Cimbalino Curto anterior (# 45), chama-se Capela do Senhor da Boa Nova, e foi construída em 1783, por iniciativa dos moradores daquela zona. A capela foi edificada no mesmo local onde existia o Padrão do Senhor Jesus da Boa Nova, que lhe deu o nome, e que terá sido mandado edificar em 1628, pelo navegador portuense Pantaleão Gomes.
Está situada no antigo Largo da Boa Nova onde era costume o povo jogar a pela e os ingleses o críquete. Parece que na casa que está encostada ao templo, e que foi recentemente recuperada (a fachada, pelo menos), viveu Camilo Castelo Branco. Foi nessa casa que Camilo criou e dirigiu a "Gazeta Literária do Porto" (o 1º número saiu em 1868 e durou 16 números), tendo Ana Plácido como principal colaboradora.

Press Release #4

"Quanto Durou Jacques?" é o novo livro do dramaturgo Teixeira Moita, que acaba de ser lançado pelo Inatel, na sequência do prémio atribuído por esta instituição ao autor, em 2002.

"’Quanto Durou Jacques?’ é uma peça para um actor, duas actrizes e um único cenário; dividida em dez cenas.

A acção decorre no tempo presente. O nome Jacques?, referido no título, decorre de uma canção de Jacques Brel, que tem uma importância primeira na definição de uma das personagens, bem como da trama psicológica subentendida no texto.

Assim, um jovem modesto visita a casa da sua namorada? filha de pais abastados. É recebido pela mãe da namorada. Ao que parece, a senhora está de partida para abandonar o lar devido a desinteligências com a família. A namorada do jovem está em casa de uma amiga e demora a regressar. Durante a espera, as duas personagens principais entram em choque geracional. A protagonista sofre com o seu envelhecimento físico e com o sentimento de rejeição que julga ver à sua volta. Assedia sexualmente o jovem até aos limites de ambos?

(Teixeira Moita)

Post It #37

A Cristina, em Sonhos.

7.12.03

Cimbalino Curto #45

Roteiro para uma manhã de domingo, no Porto.



Começar com um cimbalino e uma nata, no restaurante do Palácio de Cristal, com vista sobre o lago e os pavões. Aproveitar para fumar um cigarro e acompanhar o voo dos automóveis sobre o rio, ao longe, através da Ponte da Arrábida.
Fugir dos dinossauros, saindo pelo portão principal. Visitar a discretíssima capela setecentista que fica do outro lado da Rua de D. Manuel II e que aos domingos de manhã tem estado aberta. Seguir depois ao longo da mesma rua, no sentido da baixa.
Entrar no museu Soares dos Reis. Ao domingo de manhã o viajante não paga. Beber um segundo café no pequeno bar, passando pela livraria. Fumar um segundo cigarro nos jardins. Andar em volta da cabeça de São Pantaleão. E acabar a manhã sob a imensa luz branca do Desterrado.

Um roteiro alternativo que passa pela Cordoaria e pela Cadeia da Relação pode ser consultado aqui.

Señor Tallon #18

E isto leva-nos à sempiterna questão de saber quem é mais lido: o leitor ou o livro?

Post Scriptum #94

Se a alma de um poema está no último verso, como se costuma dizer, o seu coração só pode estar no primeiro. Este é um dos primeiros versos mais belos que eu conheço.

La chair est triste, hélas! et j’ai lu tous les livres.

Pertence ao poema Brise Marine de Stéphane Mallarmé, e foi publicado pela primeira vez em 1866, no Le Parnasse Contemporain.
Eis algumas traduções para português:

Triste carne, ai de mim! Já li os livros todos.
(José Augusto Seabra)

Oh! A carne é um tédio, e li todos os livros.
(Filipe Jarro)

A carne é triste e eu, ai! já li todos os livros.
(A. Herculano de Carvalho)

Post Scriptum #93

A Adrienne Rich regressa na terça-feira. A isto se chama fazer render os peixes.

5.12.03

Post It #36

Os árabes estão aqui.

ADRIENNE RICH: DIA 8




Sexto poema (terceira parte) da breve antologia de Adrienne Rich, em tradução inédita de Margarida Vale de Gato.



DESPERTAR NAS TREVAS

3.
A tragédia do sexo
jaz à nossa volta, um molhe de lenha
para que os machados foram amolados.
Os velhos abrigos e tendas
olham fixamente pelo espaço devastado com alguma resolução
– o tugúrio do ermita, a cabana dos caçadores –
cenas de masturbação
e piadas obscenas.
Um mundo do homem. Mas acabou.
Eles próprios o venderam às máquinas.
Eu percorro essa inconsciente floresta,
uma mulher vestida com velhos desperdícios do exército
que encolheram para lhe servirem, perco-me
por momentos, entontece-me
o sol esgaravatando entre as árvores,
frio no brejo e líquen da mata.
Isto não tem salvação possível. Estou só,
pontapeando os últimos troncos que apodrecem
com o seu estranho cheiro a vida, não morte,
perguntando-me em que raio se teria tudo transformado.


(in Diving Into the Wreck, 1973)


Tradução inédita de Margarida Vale de Gato.

Post It #35

E ao sétimo dia, Deus não descansou.

Caim e Abel, os irmãos divididos, juntaram-se ao fim de vários milénios para fazer um blog. Juntos, sim, mas pouco. Agora, Caim é um mulherengo incorrigível com forte simpatia pela direita radical. E Abel, a vitima do odioso fratricídio original, está ligado ao negócio das flores, é pacifista e de esquerda. Para o comum dos mortais, é uma oportunidade para ler excelentes textos, carregados de sabedoria milenar. Os pecados de um e de outro são um bálsamo para a alma do leitor criterioso.
Para ler todos os dias. Religiosamente.

Post Scriptum #92

Hoje publicamos o segundo e último poema dessa extraordinária sequência intitulada Gymnopedías, de Yorgos Seféris (1900-1971), em tradução inédita de Manuel Resende.
Há algumas notas sobre estes poemas em Post Scriptum #91.



GYMNOPEDÍAS


II.
MICENAS


Dá-me as tuas mãos, dá-me as tuas mãos,
Dá-me as tuas mãos.


No meio da noite vi
O cume eriçado do monte,
Vi o campo mais além, inundado
Pela luz de uma lua oculta,
Vi, voltando a cabeça,
As negras pedras amontoadas
E a minha vida tensa como corda,
Princípio e fim.
O último instante;
As minhas mãos.

Soçobra quem levanta as grandes pedras.
Estas pedras, ergui-as enquanto pude,
Estas pedras, amei-as enquanto pude,
Estas pedras, o meu fado,
Sufocado pela minha própria terra,
Atormentado pela minha própria camisa,
Condenado pelos meus próprios deuses,
Estas pedras.

Sei que eles não sabem, mas eu,
Que tantas vezes segui
O caminho do assassino ao assassinado,
Do assassinado ao pagamento
E do pagamento ao outro assassinato,
Tacteando
A púrpura inesgotável,
Na noite do regresso
Em que começaram a sibilar as Eríneas
Na erva escassa -
Vi as serpentes cruzadas com as víboras
Emaranhadas por sobre a raça vil,
O nosso fado.

Vozes da pedra, vozes do sono,
Mais fundas aqui onde o mundo escurece,
Memória do esforço que se enraíza no ritmo
Marcado na terra com passos
Esquecidos.
Corpos enterrados nas fundações
Do outro tempo, nus. Olhares
Fitos, fitos numa marca
Que, por mais que queira, a gente não consegue distinguir;
A alma
Que luta por vir a ser a tua.

Nem já o silêncio te pertence,
Aqui onde pararam as mós.


Tradução inédita de Manuel Resende.

O Silêncio é de Ouro #20

Armstrong in the moon.



Louis Armstrong nasceu numa zona pobre de New Orleans, a 4 de Agosto de 1901, e nunca mais morreu. A generalidade da crítica considera-o uma espécie de pai fundador do Jazz. Mas a sua influência ultrapassou as próprias fronteiras deste género musical. Armstrong é um ícone cultural reconhecível em qualquer parte do mundo. Na internet está em quase toda a parte, mas sobretudo aqui.

Raul Silva

A Ilha dos Amores #19

De volta aos girassóis.



Mais uma excelente imagem a lembrar outras estações com menos chuva e frio. Desta vez, é uma oferta do Mário Filipe Pires, autor de um excelente blog que cresce neste local.

4.12.03

ADRIENNE RICH: DIA 7




Sexto poema (segunda parte) da breve antologia de Adrienne Rich, em tradução inédita de Margarida Vale de Gato.



DESPERTAR NAS TREVAS


2.

Estamos de pé na bicha à porta de alguma coisa
dois a dois, ou sozinhos em pares, ou simplesmente sozinhos,
a olhar para janelas cheias de tesouras,
janelas cheias de sapatos. A rua estava a fechar,
a cidade estava a fechar, seríamos nós os que teriam a sorte
de conseguir? Exibiam
numa redoma de vidro, o Homem sem País (1).
Nós atirámos-lhe à cara os passaportes, chorámos por ele.

Estão a despejar sangue de animais no mar
para que os tubarões venham ao de cima. Às vezes
cada orifício do meu corpo
pinga sangue. Não sei se hei-de
fingir que é uma coisa natural.
Haverá uma lei sobre isto, uma lei da natureza?
Vós adorais o sangue
vós chamais-lhe sangria histérica
vós quereis bebê-lo como leite
vós embebeis nele os dedos e escreveis
vós desmaiais ao seu cheiro
vós sonhais em despejar-me no mar.

(1) Referência ao conto "Man Without a Country" (1863) de Edward Everett Hale (1822-1909).


(in Diving Into the Wreck, 1973)


Tradução inédita de Margarida Vale de Gato.

Post It #34

O Nuno também pôs o Montale a falar português.

O Povo é Sereno #25

Música para o povo.

São tão lapidares, os comentários que alguns dos actores da nossa cena económica emitiram sobre o novo Código do Trabalho, que os achei merecedores de um fundo musical adequado.

Post Scriptum #91

O Manuel Resende está de regresso aos poemas. Com uma extraordinária sequência de dois textos de Yorgos Seféris (1900 – 1971), traduzidos directamente do grego e reunidos sob o título de Gymnopedías. Este é o primeiro poema dessa sequência.
De Seféris existe já em português uma conhecida antologia da responsabilidade de Joaquim Manuel Maglhães e Nikos Pratisinis, editada pela Relógio D’Água (1993). Estes poemas porém não entraram nesse livro e, presumo, continuavam inéditos na nossa língua.
As notas são também de Manuel Resende.



GYMNOPEDÍAS


"Geologicamente, Santorini é uma combinação de pedra-pomes e caulino, de cujo golfo... foram surgindo ilhas, que nele voltavam a mergulhar. Foi berço de antiga religião, de cujos ritos faziam parte certas danças líricas de ritmo austero e pesado, a que chamavam gymnopedías."

Guia da Grécia


I.
SANTORINI


Debruça-te, podendo, sobre o escuro mar, esquecendo
O som de uma flauta sobre passos nus
Que pisaram o teu sono na outra vida, submersa.

Escreve, podendo, na tua derradeira concha
O dia, o nome, o lugar;
E lança-a ao mar, para que se afunde.

Vimo-nos nus sobre a pedra pomes
Fitando as ilhas que emergiam,
Fitando as ilhas rubras que mergulhavam
No seu sono e nosso sono.
Aqui nos vimos nus, segurando
A balança que descaía para o lado
Da injustiça.

Calcanhar do poder, querer sem sombras, amor medido,
Ao sol do meio-dia, planos que amadurecem,
Estrada do destino com o toque de moça mão
Sobre o ombro;
Na terra que se vai dispersando e não resiste,
Na terra que já foi nossa,
Afundaram-se as ilhas, em cinza e ferrugem.

Altares demolidos
E amigos olvidados,
Folhas de palmeira na lama.

Deixa, podendo, que as tuas mãos viajem
Aqui na curva do tempo com o barco
Que aflorou o horizonte.
Quando o dado embateu na lousa,
Quando a lança embateu na couraça,
Quando o olhar conheceu o estrangeiro
E o amor secou
Em perfuradas almas[1];
Quando olhas em redor e encontras
A toda a volta, só pernas vindimadas;
A toda a volta, só mãos mortas,
A toda a volta, só olhares escurecidos.
Quando já não te resta sequer escolher
A morte que buscavas para ser tua
Escutando um grito

Mesmo que fosse o do lobo,
O teu direito;
Deixa, podendo, que as tuas mãos viajem
Desprende-te do tempo infiel
E soçobra:
Soçobra quem ergue as grandes pedras.


[1] Sócrates, no Górgias de Platão diz que as almas dos intemperados são
furadas e deixam escapar o seu conteúdo (NT).


Santorini é uma ilha vulcânica, e é um dos locais onde se diz que se situava a Atlântida. A ilha foi submersa por uma erupção, mas voltou a reaparecer. Seféris que nasceu em Esmirna e teve de se exilar para a Grécia devido à expulsão pelos turcos da população helénica da Ásia Menor, e, mais tarde, da própria Grécia devido à ocupação alemã, fala muito destes mundos desaparecidos.


Tradução inédita de Manuel Resende.

Cimbalino Curto #44

Por exemplo, no Porto, quem pretender viajar para Sonhos deve embarcar no autocarro nº 9, que parte do Bolhão, atravessa o Marquês e segue, quase sem paragens, ao longo de Costa Cabral.
A viagem para o Forno é um pouco mais tortuosa. Parte igualmente do Bolhão, atravessa o Campo 24 de Agosto e segue através de Fernão de Magalhães, no sentido de Campanhã, e é mantida pelo autocarro nº 53.

3.12.03

ADRIENNE RICH: DIA 6




Sexto poema da breve antologia de Adrienne Rich, em tradução inédita de Margarida Vale de Gato.



DESPERTAR NAS TREVAS


1.

Aquilo que me intriga é
sermos nós compostos por moléculas

(ele mostrou-me a figura na calçada)

arranjadas sem que o saibamos ou consintamos

como a foto do telex composta
por milhões de pontos

em que o homem de Bangladesh
passeia esfomeado
na primeira página
sem saber nada disso
que é a sua presença para o mundo.


(in Diving Into the Wreck, 1973)


Tradução inédita de Margarida Vale de Gato.


Este poema, "Despertar nas Trevas", é um pouco mais longo do que os anteriores. Trata-se de uma belíssima sequência, da qual publicamos hoje a primeira parte. Ao longos dos próximos dias publicaremos as partes seguintes.

Entretanto, há mais Adrienne Rich noutros sítios. Este é um dos maiores centros de recursos sobre a escritora existente na rede, com ligações para entrevistas, ensaios, artigos e sugestões.

Mensagem da Gerência #14

Finalmente, mudamos o servidor das caixas de comentários. Agora, esperamos nós, já é possível escrever mensagens com mais de 400 caracteres e fazer mais do que cinco comentários por post. Infelizmente, a mudança de operador implicou a perda dos comentários que tinham sido publicados até ao momento. Por outro lado, a nova modalidade não indica o número de comentários que cada caixa contém e o nome do autor da última mensagem. De qualquer maneira, este novo servidor apresenta mais vantagens do que o anterior. Aproveitamos para agradecer a todos os leitores que, com os seus comentários, têm contribuído para tornar este blog melhor. Quem preferir, pode continuar a participar através do quartzo@sapo.pt.
O blog segue dentro de momentos.

2.12.03

Post Scriptum #90

Yehuda Amichai (Alemanha, 1924 ? Israel, 2000) é um dos poetas de língua hebraica mais traduzidos em todo o mundo. Publicou 11 volumes de poemas, duas novelas e um pequeno livro de contos. Alguns dos seus poemas já foram vertidos para português, com destaque para as versões do brasileiro Millôr Fernandes. Este poema foi excelentemente traduzido pelo Miguel Gonçalves, a partir da versão em língua inglesa da responsabilidade de Chana Bloch e Chana Kronfeld.


A ESCOLA ONDE ESTUDEI

Passei pela escola onde estudei enquanto rapaz
e disse do fundo do coração: aqui aprendi certas coisas
e não aprendi outras. Toda a minha vida amei em vão
as coisas que não aprendi. Estou coberto de conhecimento,
sei tudo sobre o crescimento da árvore do conhecimento,
a forma das suas folhas, a função do seu sistema de raízes, os seus insectos parasitas.
Sou um especialista na botânica do bem e do mal,
e ainda estou a estudá-la, e continuarei a estudá-la até ao dia em que morrer.
De frente para o edifício, olhei para o seu interior. Esta é a sala
onde nos sentámos e aprendemos. As janelas de uma sala de aulas sempre
abertas
para o futuro, mas na nossa inocência pensávamos que era apenas paisagem aquilo que víamos da janela.
O recreio era estreito, pavimentado com pedras largas.
Relembro o breve tumulto de nós os dois
junto dos frágeis degraus, o tumulto
que era o início de um primeiro grande amor.
Agora ele existe para além de nós, como num museu,
como tudo o resto em Jerusalém.

Tradução inédita de Miguel Gonçalves.

Post Scriptum #89

Sementes de Girassol.

Depois da oferta da Cristina Fernandes (Post Scriptum #85), continuamos a receber flores. Insensatez enviou-nos este poema de René Char, também retirado da antologia "A religião do girassol", que agradecemos, em nome dos nossos leitores.


Imagem de Cristina Valadas

Aquele que acredita no girassol não meditará dentro de casa.
Todos os pensamentos de amor serão os seus pensamentos.

René Char

Tradução de Jorge de Sousa Braga. Retirado de "A religião do girassol: uma antologia", Assírio & Alvim, 2000.

Post It #33

Acaba de sair em França um livro de Michel Schneider intitulado "Morts Imaginaires" (Prémio Medicis de Ensaio 2003), que versa sobre as últimas palavras dos grandes escritores antes da morte. Sim, houve um tempo em que o momento da morte também era entendido como uma obra de arte. Uma espécie de último grande verso, de última grande frase, antes do grande ponto final. Goethe, por exemplo, terá dito no seu leito de morte: "Luz, mais luz!". Victor Hugo, por sua vez, terá optado por um verso alexandrino: "C’est ici le combat du jour et de la nuit" ("Este é o combate do dia e da noite"). E Tolstoi não terá resistido a uma frase definitiva de grande efeito: "Amo a verdade… muito." Kant terá dito simplesmente "Basta" e Anatole France sussurrou "mãe, mãe". Henri Heine terá dito "estou perdido", George Bernanos "a nós dois!" e Chateaubriand, bom garfo até ao fim, terá gritado "Adoro leitões, comeremos leitões".
O livro é uma edição Grasset & Fasquelle e há um pequeno extracto disponível aqui.

Post Scriptum #88

ADRIENNE RICH: DIA 5




Quinto poema da breve antologia de Adrienne Rich, em tradução inédita de Margarida Vale de Gato.



(DEDICATÓRIAS)

Eu sei que lês este poema
já tarde, antes de saíres do escritório
com o único foco de luz intenso, amarelo, na janela escurecida
na lassidão de um edifício esbatido no silêncio
muito para lá da hora de ponta. Eu sei que lês este poema
de pé numa livraria longe do oceano
num dia cinzento do começo da Primavera, flocos ténues levados
através dos amplos espaços das planícies em teu redor.
Eu sei que lês este poema
num quarto em que aconteceu mais do que podias suportar
em que as roupas da cama jazem em rodilhas estagnadas sobre a cama
e a mala aberta fala em fugir
mas tu não podes ainda partir. Eu sei que lês este poema
enquanto o metropolitano abranda e antes de subires as escadas a correr
em direcção a um novo tipo de amor
que a tua vida nunca permitiu.
Eu sei que lês este poema à luz
do ecrã da televisão onde imagens sem som se agitam e deslizam
enquanto aguardas o comunicado da intifada.
Eu sei que lês este poema numa sala de espera
de olhares que convergem inconvenientes, de identidade com estranhos.
Eu sei que lês este poema a uma luz fluorescente
no aborrecimento e fadiga dos jovens que são deixados de fora,
que se deixam de fora, muito cedo na vida. Eu sei
que lês este poema com a vista que te falha, as lentes
espessas ampliando estas letras para lá de todo o significado mas continuas a ler
porque até o alfabeto é precioso.
Eu sei que lês este poema patrulhando o fogão
onde aqueces leite, uma criança a chorar-te no ombro, um livro na mão
porque a vida é curta e tu tens sede.
Eu sei que lês este poema que não é na tua língua
pressupondo algumas palavras enquanto outras te prendem à leitura
e eu quero saber quais são as palavras.
Eu sei que lês este poema à escuta de qualquer coisa, enquanto o azedume e a esperança
te espartilham,
regressando uma vez mais à tarefa que não podes recusar.
Eu sei que lês este poema porque não sobra mais para ler
aí onde foste aterrar, em pêlo.

(in An Atlas of the Difficult World, 1991)


Tradução inédita de Margarida Vale de Gato.


[N. T.: O sujeito poético fala em palavras pressupostas numa língua estrangeira. Nesta tradução, quis resistir, justamente, à tentação de pressupor que estas «dedicatórias» seriam dirigidas a um interlocutor feminino que nunca é explicitamente mencionado no texto de partida, ainda que os dados biográficos de A. Rich ou certos elementos textuais possam levar a inferi-lo. Assim sendo, recorri a alguns malabarismos para elidir a marca de género em que facilmente se tropeça na língua portuguesa.]

O Povo é Sereno #24

Era mais do que previsível. O texto que escrevi sobre a questão do financiamento dos escritores, na sequência de um post de Pacheco Pereira, no Abrupto, gerou vários comentários, a favor e contra. Esta é a contribuição de Manuel Resende.
Entretanto, também há reflexões sobre este assunto em A Natureza do Mal, no Aviz, no Desejo Casar, no Respirar o Mesmo Ar e no Blogue de Esquerda.
Mais opiniões serão bem-vindas. Usem, por favor, a grande caixa de comentários: quartzo@sapo.pt.


"Não acredito em génios que precisam de dinheiro público para criar. Não acredito em escritores que precisam de um cheque para escreverem uma página inesquecível. Não acredito em escritores camarários. Não acredito em poetas do regime. Não acredito em escritores que preenchem formulários de candidatura para criar um livro de poemas. Não acredito num país que tem que pagar para ter bons escritores. Na maioria dos casos, e estou plenamente consciente do que estou a dizer, estamos a subsidiar livros banais ou sofríveis."

Primeiro: nem só génios escrevem; a maior parte da literatura é constituída por obras medianas ou medíocres, por pequenos talentos e talentozinhos, imitadores e aparentados e nem isso; ora, também disto é feita. Se estamos à espera dos génios, não há literatura (bem, também se calhar não se perdia nada).

Segundo: só conheces os génios que escreveram e publicaram livros; quantos não o puderam fazer pelas cruéis condições em que viveram? Só para lembrar um que me é muito caro ao coração: António Maria Lisboa, que nos deixou meia dúzia de versos fulgurantes, o que não nos teria deixado se não tivesse morrido de tuberculose?

Terceiro: a questão do cheque é muito importante na nossa sociedade. Chateaubriand escreveu as "Mémoires d'Outre-Tombe" à custa dos cheques de uma sociedade anónima que se constituiu para o financiar, ficando-lhe com os direitos. Etc.

Quarto: quanto aos poetas camarários; Adília Lopes, Nuno Moura, Al Berto, J.E. Agualusa, M de Carvalho são-no?

Quinto: os poetas de regime. Onde estão? Só o estão se considerarmos que mais de metade seguramente dos escritores já levou com uma bolsa em cima ou outra espécie de subsídio. São todos bolsados, e como tal bolsaram os seus livros. Assim, deve haver entre eles algum escritor de regime.

Sexto: obras banais ou sofríveis. Meu caro, a maior parte das coisas que se publicam são obras banais ou sofríveis, menos as da Rita Ferro, eh eh, que essa não precisa de bolsas. Mas não creio que esta frase tua seja muito feliz. Voltanto aos mesmos exemplos, Adília Lopes, Nuno Moura, Al Berto, escreveram obras banais ou sofríveis?

Pessoalmente, nunca tive subsídios, nem bolsas, porque não quero, mas por ferocidade contra uma sociedade que é inimiga da poesia; ela não quer nada de mim, eu não quero radicalmente nada dela, a não ser para lhe torcer o pescoço. Temo-nos dado bem os dois neste entendimento.

Não consigo é tragar certa gente que, demagogicamente, quer insinuar que toda a intervenção do Estado reduz os intervindos a funcionários públicos, esquecendo que nos países que tomam como modelo (essencialmente os anglo-saxónicos) existe essa coisa inenarrável que são os poetas laureados, encarregados de fazer versos à rainha, na Inglaterra, e à república, nos EUA (aqui não há só os poetas laureados federais, mas também os estaduais).
Depois, nesse tipo de regimes, há todo um esquema de conferências e cursos fictícios nas universidades para dar dinheiro aos coisos líricos. E, last but not least, esta é a mesma gente que achará muito bem o mecenato, porque são privados a dar o cacau: ora, donde vem o cacau? Dos impostos não pagos pelos mecenas: numa palavra, estes apropriam-se privadamente dos dinheiros públicos para escolherem a seu bel-prazer, sem qualquer tipo de controlo, a arte que querem apoiar; ao menos nas bolsas, há comissões responsáveis, constituídas por pares escritores, saídos de organizações por assim dizer profissionais, há regras do jogo que as instituições representativas podem fixar ou alterar.

Num país que dá milhões para estádios de futebol ("indústria" onde correm rios de dinheiro), é indecoroso protestar contra as migalhas distribuídas aos vates e correlativos. Dir-me-ão que também esses subsídios devem ser cortados, e fazem bem dizer, porque preciso de me rir um bocado: eu sempre queria ver, no país de fátima, futebol e fado alguém cortar subsídios aos futebóis que, como diz o director do Público, faz falta para estimular a "nossa" deles auto-estima.

E não é só o futebol, são os desportistas de alta competição, a quem "devemos" (bem, eu não devo nada) duas medalhas de ouro olímpicas e outras tantas de cortiça, são as zonas francas, são, eu sei lá.

E um país que não consegue ter literatura sem bolsas não é para acreditar? Isto merecia um grosso tomo de análises. Mas limito-me ao seguinte: quem escreve em português, tem um mercado muito restrito, que não se pode comparar com o da língua inglesa. Meio por cento da população dos EUA é ainda mais de um milhão de pessoas; se meio por cento lesse poesia, as tiragens seriam fabulosas. Em Portugal, nunca haverá um mercado como este, mas os livros têm os mesmos custos de fabrico. Se deixarmos os mecanismos de mercado funcionar por si, estamos bem tramados.


(Manuel Resende)

Press Release #3

Jacinta Canta Bessie

CENTRO CULTURAL DE BELÉM: 2 Dezembro.
Convidado Especial: LAURENT FILIPE.
SHOWCASE NA FNAC C.C. COLOMBO: 04 de Dezembro.

O regresso de JACINTA a Portugal para dois espectáculos, no Rivoli (1 de Dezembro) e no CCB (2 de Dezembro), não podia dispensar a presença do trompetista e compositor LAURENT FILIPE, músico a quem os dotes vocais da cantora não passaram despercebidos no início de carreira desta.
Em 2001, Laurent Filipe convida Jacinta para uma série de concertos do músico em Portugal em homenagem a uma das divas do Jazz: Bessie Smith. Foram estes espectáculos que serviram de mote ao lançamento de "Tributo a Bessie Smith", álbum editado pela conceituada Blue Note.

Para além de Laurent Filipe, a cantora de jazz portuguesa far-se-á acompanhar pelos músicos Rob Roth (saxofone), Leonard Thompson (piano), Dan Robbins (contrabaixo) e o português Mário Barreiros (bateria).

No próximo dia 4 de Dezembro, Jacinta fará um showcase de apresentação de uma edição especial de "Tributo a Bessie Smith". O evento terá lugar na Fnac Colombo e pretende divulgar o lançamento deste pacote especial que conta com cinco temas adicionais.

No dia 3 de Dezembro, "The San Francisco Hard Bop Quartet, featuring Mário Barreiros" toca no Hot Club de Portugal (banda composta pelos músicos que acompanham Jacinta).


Mais informações aqui e aqui.