30.11.03

Post Scriptum #87

ADRIENNE RICH: DIA 4




Quarto poema da breve antologia de Adrienne Rich, em tradução inédita de Margarida Vale de Gato.



de “FONTES”

VII

Durante anos porfiei contigo: as tuas categorias, as tuas teorias, a tua vontade, a crueldade que derivava inextrincavelmente do teu amor. Durante anos, todas as discussões que alimentei em pensamento foram contigo. Via-me, a filha mais velha criada como um filho, ensinada a estudar mas não a rezar, ensinada a prezar a leitura e a escrita como coisas sagradas: a filha mais velha numa casa sem filhos, a que tinha de derrubar o pai, pegar no que ele lhe ensinara, usá-lo contra ele. Tudo isto num castelo no ar, o mundo flutuante dos assimilados que sabem e negam que hão-de ser sempre estrangeiros.
Após a tua morte, tornei a encontrar-te no rosto da patriarquia, podia por fim classificar rigorosamente o princípio que encarnavas, havia por fim uma ideologia que me permitia arrumar-te, identificar o sofrimento que provocaste, odiar-te por justa causa como parte de um sistema, o reinado dos pais. Vi o poder e arrogância do macho como a tua genuína imagem de marca; não vi por baixo dela o sofrimento do judeu, a insígnia estrangeira que usavas, já que deliberadamente quiseste que fosse invisível para mim. Só agora, sob uma lente tremenda, de mulher, consigo decifrar o teu sofrimento e não negar qualquer parte do meu.

(Sétimo poema da sequência «Sources» in “Your Native Land, Your Life: Poems”, 1986)



Tradução inédita de Margarida Vale de Gato.

28.11.03

O Povo é Sereno #23

Num dos seus posts de ontem, Pacheco Pereira manifesta o seu desacordo em relação à existência de bolsas de apoio à criação literária, "em versão junior e sénior". Estou de acordo. Eu gosto da imagem romântica do escritor que é contabilista durante o dia e que escreve poesia pela noite dentro. E é claro que não se trata apenas de uma questão de gosto, mas de justiça. A escrita é uma opção que cada um faz livremente. Com todas as consequências, boas ou más, que daí possam resultar.

Não acredito em génios que precisam de dinheiro público para criar. Não acredito em escritores que precisam de um cheque para escreverem. Não acredito em escritores camarários. Não acredito em poetas do regime. Não acredito em escritores que preenchem formulários de candidatura para criar um livro de poemas. Não acredito num país que tem que pagar para ter bons escritores. Na maioria dos casos, e estou plenamente consciente do que estou a dizer, estamos a subsidiar livros banais ou sofríveis.

Mas o caso muda de figura se estivermos a falar de criadores que trabalham noutras expressões artísticas? A sua opinião em relação ao financiamento público dos criadores, caro Pacheco Pereira, mantém-se se estivermos a falar de bailarinos, músicos, actores, cineastas?

Post It #32

Se ninguém mais escrever livros, ainda assim os livros continuarão sendo escritos.

Post It #31

Rich for the sky.


No sítio da Modern American Poetry encontra-se um amplo conjunto de recursos sobre a vida e obra de Adrienne Rich. Também na The Academy of American Poets e no sítio intitulado American Poems. No The Boston Phoenix há um extenso artigo de Michael Klein. E aqui podem ouvir Adrienne Rich ler um conjunto de seis poemas intitulado "What Kind of Times Are These," gravado em 1995.

Post Scriptum #86

ADRIENNE RICH: DIA 3




Terceiro poema da breve antologia de Adrienne Rich, em tradução inédita de Margarida Vale de Gato.



MULHERES

As minhas três irmãs estão sentadas
sobre rochas de obsidiana preta.
Pela primeira vez, a esta luz, consigo ver quem são.

A minha primeira irmã está a coser o fato para a procissão.
Vai vestida de Senhora Transparente
e todos os seus nervos estarão à vista.

A minha segunda irmã também está a coser
sobre a ferida do peito, que nunca cicatrizou completamente.
Espera, enfim, aliviar este aperto no coração.

A minha terceira irmã está a contemplar
uma crosta vermelho-escura que a ocidente se estende ao longe sobre o mar.
Tem as meias rotas mas é formosa.

(in Leaflets, 1969)


Tradução inédita de Margarida Vale de Gato.

Post Scriptum #85

E se de repente alguém lhe oferecer flores.

Girassóis nas primeiras horas da manhã.
Uma oferta da Cristina Fernandes para os nossos leitores.


Fotografia de Pedro Tudela.


TRAZ-ME UM GIRASSOL
(Eugénio Montale)

Traz-me um girassol para que o transplante
no meu árido terreno
e mostre todo o dia
ao espelho azul do céu
a ansiedade do teu rosto
amarelento

Tendem à claridade as coisas obscuras
esgotam-se os corpos num fluir
de tintas ou de músicas. Desaparecer
é então a dita das ditas

Traz-me tu a planta que conduz
aonde crescem loiras transparências
e se evapora a vida como essência
Traz-me o girassol de enlouquecidas luzes.

Eugénio Montale.
Tradução de Jorge Sousa Braga, integrada em "A religião do girassol: uma antologia", Assírio & Alvim, 2000.

27.11.03

Post It #30

O que leva os adolescentes a drogar-se ou a abrir os pulsos não são os discos de heavy metal tocados ao contrário, é o Michael Bolton tocado normalmente. Mais aqui.

Post Scriptum #84

ADRIENNE RICH: DIA 2




Segundo poema da breve antologia de Adrienne Rich, em tradução inédita de Margarida Vale de Gato.




5:30 A. M.

Pássaros e sangue periódico.
Antigas recapitulações.
A raposa, arfando, de olhos em brasa,
enterrada no meu peito.
Somos tão belas,
ela e eu, com os nossos pêlos
fulvos, os nossos rastos sanguíneos,
as nossas fugas milagrosas,
o nosso pânico vergatado acossando-nos
para novos milagres!
Eles aprovisionaram-nos de pílulas
para o fluxo do sangue, pílulas para o pânico.
Há que afogá-las na pia.
Isto é, pois, a verdade:
a agulha embotada tacteando o fluido vertebral,
ácido fraco no fundo do cálice,
mau pressago, mau pressago.
Ninguém diz a verdade sobre a verdade,
que é aquilo que a raposa
vê da sua toca esgaravatada:
de dentes embotados, homicida
em posição de ataque, estúpida
criatura de ideias fixas que
no fim nos há-de esfolar.

(in Leaflets, 1969)

Tradução inédita de Margarida Vale de Gato.

O Silêncio é de Ouro #19

PRÉMIO SININHO DE PRATA DE CONHECIMENTOS MUSICAIS.

Qual foi o filósofo do século XX que mais música escreveu?

O desafio foi lançado pelo Manuel Resende, na sequência da blogonovela dedicada à família Wittgenstein. O prémio é um sininho em prata de lei. Lembro apenas que Firmino, o Belo já aventou uma hipótese: "foi Sartre... claro. Passou o século inteiro a dar música." Uma resposta que o coloca numa posição muito confortável para vencer este concurso. Mas faltam ainda as vossas respostas.

26.11.03

O Povo É Sereno #20

A propósito de "O Povo é Sereno #19", publicado no dia 21, pelo Pedro Pombo, recebemos esta mensagem do nosso leitor Ricardo Carvalho.

Na sexta-feira passada fiquei perplexo ao ler o post "O Povo é Sereno #19". Verifiquei então que, numa linguagem extremamente dura, o Sr. António Pedro Pombo tecia alguns comentários acerca da minha pessoa.

No fundo, o António nada diz sobre o que eu escrevi. Limita-se, num estilo (também já ouvi a designação: "vou-te dar uma resposta à Pinto da Costa") a que certos comentadores e figuras públicas já nos habituaram, a diminuir a pessoa como forma de refutar os seus
argumentos. Não creio que comunicar assim seja proveitoso para nenhum dos dois.

Dada a agressividade das suas palavras, inferi que devo ter tocado em algum ponto sensível (neste caso sim, involuntariamente). E pelo conteúdo do post, calculo que tenha sido naquela parte em que digo "fdx, a malta do Porto que bebe vinho tinto e bate nas mulheres". Estou convencido que o António não bate nas mulheres, mas o mesmo já não posso dizer em relação às pessoas que, de boa fé e com o intuito de provocar o debate (de ideias, não acerca de pessoas, dos seus dotes intelectuais ou literários), participam neste blog. Quanto ao vinho tinto, confesso que eu próprio também sou um apreciador : )

Neste texto sou classificado como "’anti-portista’ de grau "primário". Antes de mais gostaria de saber o que isso é. Será que o António com os poucos dados que tinha sobre mim, juntamente com "construções mentais, ou caricaturas grosseiras (...) divulgadas e popularizadas, nomeadamente através do sistema mediático" (a dita comunicação social
do Porto?), inferiu esta classificação? No seu post o António faz referência às pessoas que incorrem nesse erro, classificando-as também.

Pessoalmente gosto de me socorrer da minha formação (académica neste caso) como uma ferramenta, não como uma arma. O resumo que o António faz do interessante tema das representações sociais deveria servir para auxiliar uma reflexão mais profunda acerca dos problemas e oportunidades que se colocam às pessoas que vivem na Área Metropolitana do Porto, não para atacar uma pessoa que tem um ponto de vista que lhe parece diferente do seu. Creio que seria um desgosto para Serge Moscovici e outros ver o seu trabalho usado desta maneira.

Assumo que as minhas críticas não têm sido muito construtivas, mas esta resposta levou-me a reflectir um pouco mais sobre o Porto. Uma vez que vou generalizar, salvaguardo de antemão as necessárias excepções à regra.

As pessoas que se identificam como sendo do Porto (a malta do Porto) funcionam, segundo me parece, numa lógica de um grupo com uma elevada coesão interna. De facto, no Porto não há muitas "ondas". Toda a gente se identifica mais ou menos com as mesmas coisas (ídolos, feitos colectivos marcantes, formas de vestir (é um stress encontrar roupa gira no porto), locais de diversão ou de lazer, etc. Como todos os grupos muito coesos, a malta do Porto reage muito mal à diferença (o que é normal), procurando afastar as "ovelhas negras".

No Porto não há muitos grupos diferentes (ou pelo menos com peso) daí que num clima conjuntural de elevada instabilidade não tenha armas para se defender. A existência de diversidade interna sempre foi um factor benéfico para o grupo em momentos difíceis e de incerteza. Actualmente parecem beneficiadas as cidades que se abrem ao mundo, que acolhem a diferença e a integram na sua identidade.

Claro que a herança é pesada. O Porto foi a "capital do trabalho", talvez a única cidade verdadeiramente industrial em Portugal. Nesse clima é obvio que interessava a quem das pessoas tira(va) proveito criar um clima de elevada coesão e adesão aos seus objectivos (ou que pelo menos que não os pusessem em causa), ao mesmo tempo que não convinha que houvesse quem pensasse pela sua própria cabeça e tivesse iniciativa, dado os riscos que isso comporta para um sistema social que faz da submissão à autoridade um pilar basilar.

Os custos dessa herança são pesados. O capital intelectual do Porto é muito baixo. A este nível creio dificilmente se pode considerar a segunda cidade. Cidades como Aveiro, Braga e de certa forma Coimbra podem ser consideradas como sendo cidades com um capital intelectual muito mais elevado (considerando o ratio populacional). Hoje em dia nas sociedades desenvolvidas (a que creio que as pessoas do Porto têm direito de pertencer) são precisas ideias e conhecimento, o trabalho passou a ter um papel secundário.

O Porto precisa de se abrir ao mundo, de aceitar o custo que isso acarreta para colher os seus proveitos. O cerco já acabou! agora temos de nos abrir ao mundo, procurar aquilo que nos une aos outros em vez de salientar aquilo que nos divide e sempre nos dividirá.

Gostaria que o António e todos os outros que o desejem me ajudassem nesta minha análise colocando as suas questões, complementando-as ou apontado as suas fragilidades.


(Ricardo Carvalho)

Mensagem da Gerência #13

ADRIENNE RICH

Retomamos hoje o nosso projecto de edição de traduções inéditas de poesia. E fazêmo-lo com a apresentação de um trabalho de qualidade verdadeiramente superior: 6 COMPOSIÇÕES DA POETISA NORTE-AMERICANA ADRIENNE RICH VERTIDOS PARA PORTUGUÊS POR MARGARIDA VALE DE GATO.

Já aqui falamos da importância do trabalho da Margarida para os leitores de língua portuguesa, a propósito da sua tradução de "O Corvo", de Poe, que apresentámos em primeira mão e que deverá ser publicado em breve pela Errata (Post Scriptum #70). De qualquer maneira, e em poucas palavras, penso que não andaremos muito longe da verdade se dissermos que Margarida Vale de Gato é uma das mais importantes tradutoras portuguesas reveladas ao longo da última década.

Adrienne Rich (n. 1929), por sua vez, ocupa um lugar decisivo na história da poesia norte-americana do século XX. Apesar disso, continua praticamente desconhecida entre nós. O único poema que lhe conheço em português – "Canção" - faz parte do volume "Leituras – Poemas do Inglês", da responsabilidade de João Ferreira Duarte (Relógio D’Água, 1993).

A relevância destas traduções é, por isso, incontestável. E, mais uma vez, graças à impagável generosidade de Margarida Vale de Gato, é nosso o privilégio de publicar - a partir de hoje e ao longo dos próximos dias - esta breve antologia de Adrienne Rich. A primeira em português. Para imprimir e coleccionar.

Post Scriptum #83



Adrienne Rich nasceu em Baltimore em 1929 e começou a escrever poesia na infância sob orientação do pai, um médico patologista descendente de judeus.
Em 1951 publica o primeiro livro, "A Change of World".
Casa com Alfred Conrad em 1953, de quem terá três filhos. Estabelecem residência em Cambridge, Massachusetts.
Mudam-se em 1966 para Nova Iorque, envolvendo-se cada vez mais activamente nos protestos contra a Guerra do Vietname.
Após a morte do marido, em 1970, Adrienne Rich tornou-se mais activa no combate feminista, vindo a descobrir também uma orientação homossexual. Em 1976, junta-se a Michelle Cliff.
Foi professora convidada em várias universidades, editora de jornais feministas e autora de ensaios marcantes sobre a condição da mulher, destacando-se "Of Woman Born: Motherhood as Experience and Institution" (1976) e "On Lies, Secrets and Silence" (1979).
Ganhou diversos prémios literários, designadamente o National Book Award em 1974.
Entre os títulos de poesia publicados, salientam-se "Snapshots of a Daughter-in-Law" (1963), "Leaflets" (1969), "The Will to Change" (1971), "Diving into the Wreck" (1973), "A Wild Patience Has Taken Me This Far" (1981), "Your Native Land, Your Life" (1986), "An Atlas of the Difficult World" (1991) e "Midnight Salvage" (1998).


(Margarida Vale de Gato)



OS TIGRES DA TIA JENNIFER

Os tigres da tia Jennifer cruzam uma trama,
Cidadãos de fulvo quartzo num verde panorama.
Nada receiam dos homens ocultos na folhagem;
Desfilam com diginidade, galhardia e coragem.

As mãos da tia Jennifer manobram com desvelo
A agulha de marfim que a custo puxa o novelo.
No anel da Tia Jennifer o peso do meu Tio
Submete e verga o dedo que outrora cingiu.

Essas mãos amedrontadas, quando ela morrer,
Ficarão ‘inda algemadas ao que aceitou sofrer.
E na trama aqueles tigres por suas mãos cerzidos
Hão-de ficar desfilando, altivos e destemidos.

(in A Change of World, 1951)

Tradução inédita de Margarida Vale de Gato.

25.11.03

O Silêncio é de Ouro #18


Charles Mingus, Alastair Graham, 2002.

Alastair Graham (n. 1945) é um artista londrino que se tem dedicado à criação de ilustrações inspiradas no Jazz e nos seus músicos. No sítio Jazzfolio podem encontrar quase toda a interessantíssima produção de Graham nesta área.

Outras formas de ver o Jazz, pelo nosso Raul Silva.

Post Scriptum #82

O Quartzo, Feldspato & Mica apresenta:

A FAMÍLIA WITTGENSTEIN.

A primeira blogonovela baseada em factos reais.


4º EPISÓDIO

Entra em cena Margarete. Irmã de Ludwig.
Guiados pela mão experiente de Firmino, o Belo, vamos assistir a uma soberba reconstituição do famosíssimo encontro entre Margarete e Gustav.


Algures em Viena, 1905.

MARGARETE: Klimt, pinta o meu retrato.
GUSTAV: Não posso.
MARGARETE: Oh, anda lá… pinta o meu retrato.
GUSTAV: Já te disse, não posso.
MARGARETE: É pá… mas eu vou casar!!!
GUSTAV: Fico muito contente por ti, mas nada feito.
MARGARETE: Ouve lá. Passas a vida enfiado cá em casa. Comes de graça. Ouves música de graça. Arranjei-te duas consultas semanais com o Freud, de graça. Não achas que era altura de me dares a graça da tua pintura?
GUSTAV: Minha querida, estou cheio de encomendas e tenho que aproveitar agora. Palpita-me que daqui a 9 anos o mercado vai estagnar.
MARGARETE: O meu pai paga…
GUSTAV: Amanhã às oito. Traz o teu melhor vestido.


Retrato de Margarete Stonborough – Wittgenstein.
Gustav Klimt (1905).


Episódio criado por Firmino, o Belo.

Não perca os próximos.

Post It #29

Num certo post intitulado "Cultura Geral?" (20 de Novembro), Pedro Sá, um dos dinamizadores do blog Descrédito!, grafou o nome daquele que é normalmente conhecido por Tchaikovski de uma forma mais original: Chaikovskyi.
Este é o diálogo que o Pedro Sá manteve com um leitor na respectiva caixa de comentários, a propósito do nome do famoso compositor russo.

Letra T:
Chaikovsky???

Pedro Sá:
Considerando a grafia que sempre uso para o russo, Chaikovskiy é a grafia correcta. Por exemplo, escrevo Krushchev e não Kruchtchev. Ainda que, em rigor, uma melhor grafia seria uma que tivesse por base a polaca. Ou seja, nestes dois casos Czaikovskyi e Kruszczev seriam as grafias a adoptar. Apenas não a utilizo porque não é adoptada em lado nenhum, porque é que a reproduziria com maior fidelidade uma transliteração dos caracteres cirílicos para os latinos.

Letra T:
Peter Ilyich (ou será Pyotr?) morreu em desespero. Para alguns, foi o preço duma extraordinária sensibilidade. Para mim, foi o resultado de uma prolongada exposição a tipos como tu. Pequenos Bérias à procura de um espaço que pouco mais tarde encontrariam. A música de Peter não é russa. É universal. La Valletta não é universal. É (foi) um entreposto comercial apadrinhado pelos ingleses. Ouvir o Eugene Onegin e fotografar muralhas não é bem a mesma coisa. Talvez a cultura geral não seja mais do que uma forma de partilha. Uma forma de comunhão colectiva. Se assim for, estamos todos de parabéns. Mas há uma condição para que todos possamos usufrir desta felicidade: temos todos de, respeitosamente, comecar pela letra T.

Pedro Sá:
Escusado será dizer que é notório o estalinismo cultural nestas palavras vindas da Letra T. Eu pelo contrário, respeito os nomes originais. Por isso escrevo sempre e digo quase sempre München e não Munique, por exemplo.

24.11.03

Cimbalino Curto #43


Avenida Rodrigues de Freitas (Porto), 19.11.03.

Fotografias e animação de Francisco Costa.

Post Scriptum #81

O Quartzo, Feldspato & Mica apresenta:

A FAMÍLIA WITTGENSTEIN.

A primeira blogonovela baseada em factos reais.


Como estão recordados, no primeiro episódio assistimos à revelação-choque de que Ludwig Wittgenstein, filósofo, tinha entrado para a história da música ao compôr um brevíssimo trecho musical de apenas 30 segundos (Post It #27).

No segundo episódio, Firmino, o Belo, lançou-nos directamente para o interior do drama de Paul Wittgenstein, irmão de Ludwig, e conhecido pela alcunha de "o Maneta", para quem Ravel compôs o Concerto para piano com mão esquerda (O Silêncio é de Ouro #17).

Finalmente, damos hoje a conhecer o terceiro e o mais louco episódio desta incrível blogonovela. A perturbante história de Paul, o sobrinho de Ludwig.
O texto deste 3º episódio é do conhecido escritor de novelas, Thomas Bernhard, e os direitos foram-nos gentilmente cedidos pela Cristina Fernandes.


Durante um século, os Wittgenstein produziram armas e máquinas, até finalmente terem produzido o Ludwig e o Paul, o famoso filósofo que marcou uma época e o louco não menos famoso pelo menos em Viena ou justamente aí ainda mais famoso, que no fundo era tão filósofo como o tio Ludwig, como inversamente o filósofo Ludwig era tão louco como o sobrinho Paul, um, Ludwig tinha tornado a sua filosofia na sua celebridade, o outro, Paul, a sua loucura. Um, Ludwig, era talvez mais filósófico, o outro, Paul, talvez mais louco, mas possivelmente só achamos que um, o Wittgenstein filosófico, era filósofo porque lançou no papel a sua filosofia e não a sua loucura e que o outro, o Paul, era um louco, porque reprimiu e não publicou a sua filosofia, tendo apenas exibido a sua loucura. Ambos eram pessoas absolutamente extraordinárias e cérebros também absolutamente extraordinários, mas um publicou o seu cérebro e o outro não. Eu poderia dizer mesmo que um publicou o seu cérebro e o outro praticou o seu cérebro. E onde reside a diferença entre o cérebro publicado e publicando-se continuamente e o cérebro praticado e praticando-se continuamente? Mas naturalmente o Paul, se o tivesse feito, teria publicado escritos completamente diferentes dos de Ludwig, tal como Ludwig teria obviamente praticado uma loucura completamente diferente da de Paul. De qualquer modo, o nome Wittgenstein era garantia de um nível elevado, do mais elevado mesmo. O nível do filósofo Ludwig foi, sem dúvida, atingido pelo louco Paul, um representa absolutamente um ponto alto da filosofia e da história do pensamento, o outro absolutamente um ponto alto da história da loucura, se quisermos qualificar a filosofia enquanto filosofia, o pensamento enquanto pensamento e a loucura da mesma forma, isto é: perversos conceitos históricos.

"O sobrinho de Wittgenstein", de Thomas Bernhard.
Traduzido por José A. Palma Caetano e editado pela Assírio & Alvim.


Não perca os próximos capítulos.

Press Release #2

A Companhia da Esquina leva à cena, a partir de 28 de Novembro e até 21 de Dezembro, a peça de teatro musical "Rosmaninho e Alecrim", no palco do Teatro S. Francisco, Centro Cultural Franciscano, Largo da Luz, 11, em Lisboa.
A encenação é de Guilherme Filipe, e do elenco fazem parte, entre outros, Cláudia Lauro, Inês Fernandes e Pedro Martinho.
De acordo com o comunicado da companhia, "Rosmaninho e Alecrim é a história de um pai sonhador, uma alegre empregada suíça, dois amigos divertidos e preocupados com a escolha de uma prenda para Rosmaninho - que queria ser... Popstar!!!"
Os espectáculos ocorrem às sextas às 21h30, sábados às 16h00 e 21h30, e domingos às 11h00 e 16h00. Durante a semana, o espectáculo realiza-se exclusivamente por marcação, através do 965 858 009.

Post Scriptum #80

A HISTÓRIA

Eugenio Montale
(1896-1981)



A história também não é
a escavadeira que destrói como dizem.
Deixa passagens no subsolo, cavernas, covas
e esconderijos. Há quem sobreviva.
A história é também benigna: devasta

o mais que pode: se exagerasse decerto
que seria melhor, mas sempre lhe faltam
notícias, não cumpre
todas as suas vinganças.
A história rapa o fundo
como uma rede de arrasto
com alguns rasgões, e há peixes que fogem.
Por vezes encontra-se o octoplasma
de um que escapou e não parece por isso feliz.
Não sabe que está fora, ninguém lhe falou nisso.
Os outros, apanhados, julgam-se
mais livres do que ele.

Excerto de "A História".
De "Mesa de Amigos – Versões de Poesia por Pedro da Silveira", Assírio & Alvim, 2002.

Señor Tallon #17

Chá forte de sabugueiro e funcho, com casca de limão.
Pode-se adoçar com mel, a gosto.


A cura para a gripe, segundo Ginjinha. E para muitos outros males, acrescento eu.

21.11.03

Señor Tallon #16

A gripe é a pior inimiga do blogger dedicado.

Até já.

20.11.03

O Silêncio é de Ouro #17

Quem lê este blog com alguma regularidade já deve ter reparado nos seus comentários. É um dos nossos comentadores mais atentos. E se não é o mais ácido, engenhoso e excessivo, é no mínimo o mais agradável à vista. Firmino, o Belo resolveu sair da sombra das caixas de rodapé e saltar para a primeira página. Esta é a sua primeira colaboração, digamos, oficial. Um texto delicioso sobre Paul Wittgenstein, irmão de Ludwig, surgido a propósito do Post It #27.
Caros leitores, do Firmino com furor.


Se a história musical de Ludwig dura apenas 30 segundos, aqui fica uma das mais belas histórias que a música nos contou e cujo protagonista é precisamente o seu irmão Paul Wittgenstein.
Paul era em 1914 um jovem pianista com uma carreira fulgurante na Europa e especialmente admirado pelo famoso grupo dos franceses. Mas a grande guerra das trincheiras calhou a todos. E foi aí que Paul perdeu, em combate, o seu braço direito. Para Paul, a vida tinha terminado, embora ele continuasse tristemente vivo. Só que neste mundo dos homens, às vezes há lugar para um final feliz. Ravel, um fervoroso admirador do pianista, decidiu "ressuscitar" Wittgenstein criando para ele a sua mais apaixonante (opinião Firmínica) e indiscutivelmente singular obra musical: o concerto para piano e orquestra, para a mão esquerda.
Se Ludwig redimensionou a filosofia (um dever para quem, diz-se, ter andado a primária com o Adolfo), Paul mostra-nos que da universalidade da música fazem parte algumas melodias verdadeiramente extraordinárias, que, infelizmente, só alguns homens conseguem ouvir.

Firmino o Belo.

Post Scriptum #79

François Villon
(França, 1431?-1463?)




BALADA


Em rosalgar, em pedra arsenical,
em enxofre, em salitre e em cal viva,
em chumbo que a ferver rói mais brutal,
em sebo e pez junto a lixívia activa
de mijo de judia cagativa,
lavaduras de pernas de gafado,
raspaduras de pés, botim furado,
sangue de cobra e drogas venenosas,
fel de texugo, lobo e zorra dado,
sejam fritas as línguas mais maldosas.

Em miolos de gato a pescar mal,
preto, velho e sem dentes na gengiva,
de cão velho que valha por igual,
raivoso pela baba e a saliva,
no espumar da mula ofegativa
que rasoiras bem fino têm talhado,
n’água onde os ratos hão afocinhado,
rãs e sapos e bichas perigosas,
lagarto e serpe e aves de tal costado,
sejam fritas as línguas mais maldosas.

Em sublimado ao toque só fatal,
e no umbigo de uma cobra viva,
em sangue seco em malga barbeiral
à lua cheia, vista que é nociva,
que ora é negro, ora verde mais que oliva,
em tumor, pús, e tanque emporcalhado
onde dessanguam amas sujo atado,
em lavagens de fêmeas amorosas
(quem não sabe, em bordéis não é versado)
sejam fritas as línguas mais maldosas.

Senhor, passai depois cada bocado,
se tamiz, saco ou filtro haveis falhado
pelo fundo de bragas pegajosas;
mas antes, dos suínos no cagado
sejam fritas as línguas mais maldosas.

Os testamentos de François Villon e algumas baladas mais, organização e tradução de Vasco Graça Moura, Campo das Letras, Porto, 1997.

Post It #28

Eu hoje vi um reboque azul a rebocar um reboque vermelho que rebocava um carro preto.


Señor Tallon #15

Early Morning Thoughts


I love the smell of ink in the morning.

19.11.03

Ilha dos Amores #17


Animação criada por Fernanda Alves sobre desenho de Armando Alves e poema de Eugénio de Andrade. Com o apoio técnico de Ricardo Ferreira.






Desenho de Armando Alves, publicado no catálogo da exposição dedicada aos "30 anos de Trabalho de Eugénio de Andrade", Inova, 1976.

Barcos ou não
ardem na tarde

No ardor do verão
todo o rumor é ave

Voa coração
ou então arde

Eugénio de Andrade

Post It #27

Leidenschaftlich não dura mais do que 30 segundos. É a única composição musical conhecida daquele que é considerado o principal filósofo do século XX, Ludwig Wittgenstein.

Post Scriptum #78

BEN JONSON VS JOYCE KILMER
Combate em torno das árvores e em dois rounds.


1º ROUND
Ben Jonson desafia Joyce Kilmer.



A VIDA PERFEITA


Não é crescendo à toa,
Como as árvores, que alguém se aperfeiçoa;
Não como o roble, em pé trezentos anos,
E ser madeiro enfim, calvo, seco sem ramos.
Esse lírio de um dia,
Em Maio, tem mais valia,
Mesmo que à noite caia já sem cor:
Foi a planta da luz, era o sol a flor.

Em justas proporções a beleza se ajeita,
E só num ritmo breve é que a vida é perfeita.


Ben Jonson
(Inglaterra, 1572-1637)



2º ROUND
Joyce Kilmer responde a Ben Jonson
.



ÁRVORES


Parece-me que nunca ninguém há-de
Ver poema tão belo como a árvore.

Árvore que sua boca não desferra.
Do seio doce e liberal da terra.

Árvore, sempre de Deus a ver imagem
E erguendo em reza os braços de folhagem.

Árvore que pode usar, como capelo,
Ninhos de papo-ruivo no cabelo;

Em cujo peito a neve esteve assente;
Que vive com a chuva intimamente.

Os tontos, como eu, fazem poesia;
Uma árvore, só Deus é que a faria.


Joyce Kilmer
(E.U.A., 1886-1918)



Ambos os poemas foram traduzidos por A. Herculano de Carvalho e fazem parte do volume "Oiro de Vário Tempo e Lugar", 2ª Ed., Asa, 2003
.

18.11.03

O Silêncio É de Ouro #16





Se há um clube de jazz que possa ser considerado o mais importante do mundo, esse clube só pode ser o Village Vanguard. Localizado em plena Manhattan, é uma espécie de catedral do Jazz. Foi fundado em 1935 por Max Gordon, e pelo seu palco passaram todos os grandes músicos do século XX: John Coltrane, Miles Davis, Bill Evans, Dexter Gordon, Stan Getz, Wynton Marsalis ou Charles Mingus. Testemunho disso mesmo são os inúmeros discos gravados ao vivo no clube, muitos dos quais transformados em referências fundamentais para os apreciadores de Jazz.

Mais uma sugestão do nosso prezado colaborador Raul Silva.

O Povo é Sereno #18

A propósito de "O Povo é Sereno #17", que, recordo, propunha aos leitores eleger e comentar o(s) acontecimento(s) mais importante(s) da semana anterior, e cuja caixa já excedeu os famigerados cinco comentários, recebemos as seguintes mensagens:

A birra vai em fuga e o pelotão não reage! (frase alternativa ao fastidioso "a birra vai à frente no marcador"). O mais engraçado é que a alternativa b) "A birra de Scolari com a comunicação social do Porto" está mal formulada, uma vez que o jornalista com o qual Scolari "embirrou" nem sequer era do Porto (mas a pergunta era, ok). Se me tiverem sempre a chatear a cabeça com a mesma estória eu também embirro, e vocês, não?
Serve esta vitória da birra para demonstrar a imagem que a malta tem do pessoal do Porto. Noutro dia diziam-me lá em baixo: "fdx, a malta do Porto que bebe vinho tinto e bate nas mulheres".
Acordem para a vida, abram os olhos e verão que o ranquinge da UEFA não conta para reduzir o desemprego ou para estancar a fuga de técnicos qualificados. O resto do país (pelo menos a maior parte) já percebeu isso.
Aconselho a leitura da entrevista que Alexandre Quintanilha deu ao jornal Público de Domingo passado. Gostei particularmente da sua visão positiva do Porto. Faz-me lembrar a minha quando aqui cheguei. Eu também quero ser daqueles "jovens que vão mudar as coisas", como ele refere, mas olho à minha volta e vejo que o Scolari vai à frente, isolado do pelotão.


Ricardo Carvalho


Sem dúvida, a inaugudragão! Festa interessante, esta! Música, Helis, Mágicos, alguns palhaços também... Enfim, uma grande comemamaração - principalmente, por parte de alguns dos nossos mais respeitosos deputados!
Ah, acho também que alguém se antecipou à filosofia dos campeões nacionais: "comer a relva". É que eu não vi nenhuma. Foi só areia!


Miguel Gonçalves

Post It #26

Alguém já disse que Alexander Pushkin (1799-1837) está para a Rússia como Luís de Camões está para Portugal. Mais do que um poeta popular, é uma espécie de instituição nacional, na Rússia. Mas há um lado menos conhecido de Pushkin que tem vindo a ser revelado nos últimos anos e que é extremamente interessante.
A editora Difel, por exemplo, publicou em 1998 um Diário Secreto que é atribuído a Pushkin e cujo teor é talvez muito pouco próprio para um escritor com as características que lhe foram atribuídas durante anos e anos.
Tudo isto vem a propósito da mais recente biografia de Pushkin da autoria de T. J. Binyon, professor de russo em Oxford, onde a atribulada vida do poeta é reconstituída com todos os pormenores. Michael Dirda escreveu no Washington Post uma interessante recensão sobre este livro.

Post It #25



Edith Piaf and Jean Cocteau died on the same day. Cocteau, chivalrous at the last, obeyed the rule of ladies first. "Ah, la Piaf est morte," he said on the morning of October 11 1963. "Je peux mourir aussi." And then he promptly died of a heart attack.

Post Scriptum #77

Marin Sorescu
(Roménia, 1936-1995)




SHAKESPEARE

Shakespeare criou o mundo em sete dias.

No primeiro dia fez o céu, as montanhas e os abismos da alma.
No segundo dia fez os rios, os mares, os oceanos
E os restantes sentimentos –
Que deu a Hamlet, a Júlio César, a António, a Cleópatra, e a Ofélia,
A Otelo e a outros,
Para que fossem seus donos, eles e os seus descendentes,
Pelos séculos dos séculos.
No terceiro dia juntou todos os homens
E ensinou-lhes os sabores:
O sabor do ciúme, da glória e assim por diante,
Até esgotar todos os sabores.

Por esse tempo chegaram também uns indivíduos
Que se tinham atrasado.
O criador afagou-lhes compassivo a cabeça,
E disse que só lhes restava
Tornarem-se críticos literários
E contestarem a sua obra.
O quarto e o quinto dia reservou-os para o riso.
Soltou os palhaços
Para darem cambalhotas,
E deixou os reis, os imperadores
E outros desgraçados divertirem-se.
Ao sexto dia resolveu alguns problemas administrativos:
Forjou uma tempestade,
E ensinou ao rei Lear
O modo de usar uma coroa de palha.
Com os restos da criação do mundo
Fez o Ricardo III.
Ao sétimo dia viu se havia algo mais a fazer.
Os directores de teatro já tinham coberto a terra de cartazes,
E Shakespeare concluiu que depois de tanto esforço
Também ele merecia assistir ao espectáculo.
Mas antes disso, esfalfado de todo,
Foi morrer um pouco.

Marin Sorescu, Simetria, Tradução Colectiva, Quetzal, 1997.

17.11.03

Señor Tallon #14

Quantos escritores justificarão a morte de uma árvore para dar vida a um só dos seus livros?

Post Scriptum #76

DUAS VARIAÇÕES SOBRE UM TEMA LENTO.


PRIMEIRA VARIAÇÃO

Caracol da Lua
(Ted Hugues)



A coisa mais triste que há na lua é o caracol sem concha.
Só é possível localizá-lo através do canto, um lamento pungente de quebrar o coração

e que soa como se algo o estivesse a perfurar.
O seu movimento é uma batalha lenta e cruel.

Triste, molhado, com frio, parece uma lágrima enorme
em fina pele. Arrasta-se no perto que é o seu longe

à procura de um abrigo contra o sol –
porque o primeiro raio logo o derretia e depois era preciso correr.

Só quando a noite cai na lua ele pode mexer-se à vontade,
com aqueles seus músculos ondulantes e o muco a escorrer

mas não há nenhum lugar na lua que sirva de garagem
para um caracol assim. Não é que seja muito comprido,

mede é quilómetro e meio de largo.
É inútil procurar um lugar para se esconder.

E assim, lamentando-se sempre e espetando os cornichos
lá vai tacteando no arco escuro da lua.

Já procurou por tudo quanto é sítio. Eu creio
que o tom prateado da lua lhe vem do muco dos caracóis.



SEGUNDA VARIAÇÃO

Caracol Estrelado
(Vasko Popa)


Deslizaste depois da chuva
Depois da chuva de prata

As estrelas com seus ossos
Sós construíram-te uma casa
Aonde a levas sobre uma toalha

O tempo capenga te persegue
Para alcançar-te para esmagar-te
Estende os chifres caracol

Te arrastas por uma face gigante
Que jamais hás de fitar
Direto para a boca do nada

Retorna à linha da vida
À minha palma de mão sonhada
Enquanto não é tarde demais

E deixa-me como herança
A toalha mágica de prata




Berloque de ouro em forma de caracol,
Colômbia,
300 a.C. - 1000 d.C.



Primeira variação: Ted Hugues, O Fazer da Poesia, Assírio & Alvim, 2002. Tradução de Helder Moura Pereira.

Segunda variação: Vasko Popa, Osso a Osso, Perspectiva, 1989. Tradução de Aleksandar Jovanovic.

14.11.03

Post It #24

Nós temos quantos litros de sangue? Cinco?
Obrigado!


Lido numa das caixas de comentários do blog A Natureza do Mal.

Cimbalino Curto #40

Diálogo de um jornalista com Rui Rio, na SIC Notícias:
- "O Senhor está com a mesma gravata do dia da tomada de posse. É talismã?
RR: Ah, não. É coincidência. Mas se calhar tem alguma razão de ser....
- Concerteza tem mais gravatas...
RR: Sim, muitas.
-...sobretudo agora que é presidente da Câmara...."

Além de uma memória notável para os pormenores, que se revelou muito útil para o público em geral, o dito jornalista revelou uma capacidade de extrapolação perfeitamente lógica.


Cimbalino gentilmente servido pelo Cidadão Livre.

Post it #22

Janela de oportunidades.

Como sempre, foi graças à luminosa sugestão da Cristina Fernandes que descobri aquela que é uma das mais fantásticas definições de Portugal que alguma vez tive oportunidade de ler:

Portugal é um país de poetas, quer dizer, um país que odeia a poesia.

Post Scriptum #75

Em meados dos anos 50, logo após a publicação do seu segundo livro de poemas, John Ashbery mudou-se para Paris. Aí conheceu o escritor francês Pierre Martory com quem viveu perto de 10 anos, praticamente os mesmos que esteve naquela cidade. Alguns dos mais conhecidos poemas de amor de Ashbery são dessa época ou inspiram-se nela.

Pierre Martory (1920-1998), antigo combatente da resistência francesa, é um dos segredos mais bem guardados da literatura francesa contemporânea. O seu trabalho só se tornou realmente conhecido a partir dos anos 90, depois da edição de The Landscape Is Behind the Door (Sheep Meadow Press, 1994), uma recolha de poemas seus traduzidos para inglês pelo próprio Ashbery.

O poema de Martory que aqui publicamos, Centro Cívico, Décimo Quinto Bairro, é uma versão de Miguel Gonçalves feita justamente a partir da tradução inglesa de Ashbery.


Pierre Martory, fotografado por Raimundo Mora.

CENTRO CÍVICO, DÉCIMO QUINTO BAIRRO

Tinhas que ouvir os passos dos soldados
as voltas magoadas o som da valsa do acordeão
abandonado no pavimento como um cortador de relva
assim que a parada passasse
tinhas que beijar o pé do soldado
tirar-lhe a bota e lamber-lhe o tornozelo
até onde o caqui de sete milímetros e meio de grossura permitisse
tinhas que sacudir a sua barriga como um tapete
era o dia da grande ilusão
quando eles depunham o seu profundo conhecimento
e fingiam estar à procura de atraentes sucessores
mas seria melhor procurar o coração
e colocar um despertador no seu lugar
um despertador que pudesse anunciar a alvorada como uma marioneta
mas que não levasse o café à cama
tinhas que remexer debaixo dos seus dentes falsos
à caça de diamantes escondidos com um dedo cheio de vida
à caça deles por todo o lado e não os encontrar
mesmo nas dobras da sua nudez.
A alegria de ser uma criança de um povo soberano
de dar uma mão às instituições
e de ver o seu nome inscrito no mármore
dos urinóis em letras de alcatrão
por uma simples bandeira em que nos tornámos
rufando o nosso cansaço pelas esquinas
que o vento perturba a menos que seja primeiro
o vento dos trompetes todo o amor para os ventos

Tradução inédita de Miguel Gonçalves.

13.11.03

Cimbalino Curto #39


Rua Conde de Vizela, Porto.

Fotografia de Ricardo Carvalho.

A Gerência Agradece #17

Dê uma para a caixa.

Envie as suas opiniões, sugestões, comentários, dicas e outras coisas que tais para quartzo@sapo.pt.

Post Scriptum #74

Foi por intermédio de Ezra Pound que os concretistas brasileiros descobriram o poeta provençal Arnaut Daniel e, com ele, a palavra Noigandres (que escreviam com maiúscula), supondo que designasse a obra em progresso. Ora, desde 1904 o erudito alemão Emil Levy sugerira que o poeta se referia a uma planta cujo cheiro afastava o tédio. Era o aroma da noi gandres, isto é, a noz moscada, cujas propriedades narcóticas e/ou afrodisíacas eram cavilosamente utilizadas pelo cozinheiro cantante Arnaut Daniel para melhor conquistar as suas amadas. Contudo, Ezra Pound, conhecendo, embora, o trabalho de Emil Levy, manteve-lhe o nome em silêncio, afirmando que a palavra era de sentido ignorado. A questão foi definitivamente esclarecida pelo falecido Alfred Hower em trabalho publicado na revista "Discurso" (USP), Maio de 1978, sobre o qual os concretistas, por sua vez, decidiram manter silêncio, para não comprometer o laborioso sistema exegético que havia elaborado.

Isto é o que diz Wilson Martins.

Post it #21

Leia aqui o primeiro do Janeiro.

Post Scriptum #73

Rubrica "O meu pipi é melhor do que o teu".



Pietro Aretino,
gravura de anónimo francês,
meados do século XVI,
The University of Michigan Museum of Art.




SONETO 24

Onde o ireis meter? Fazei-me a graça
De explicar: na frente, atrás? Que saber
Quero. Por quê? Teríeis desprazer
Se eu no cu vos pusesse, por desgraça?

Nossa senhora, não! A cona maça
Ao caralho, que já nem tem prazer.
Faço o que faço por não parecer,
Verbi gratia, uma tola à antiga e crassa.

Se o caralho no cu todo quereis,
Porém, à grã maneira, eu me contento
De que façais de mim o que quereis.

Pegai-o com a mão, metei-o dentro,
Que tão útil ao corpo o sentireis
Quanto alguém molestado de argumento.

Tal gáudio experimento
De o caralho em vosso cu sentir pois,
Que eu morro, que morreremos todos dois.

Pietro Aretino, (Itália, 1492-1556).
Aretino, Sonetos Luxuriosos, Tradução, Introdução e Notas de José Paulo Paes, Companhia das Letras, 2000.

12.11.03

Cimbalino Curto #38


Rua de Passos Manuel, Porto.

Fotografia de Ricardo Carvalho.

O Silêncio É de Ouro #12



Se o disco Time Out de Dave Brubeck Quartet (O Silêncio é de Ouro #9) é uma espécie de lição nº 1 para os amadores de Jazz, a revista norte-americana Down Beat é a sua Bíblia. O primeiro número saiu em 1934 e pelas suas páginas passaram todos aqueles que de algum modo deixaram a sua marca na história do jazz e do blues: Jelly Roll Morton, Louis Armstrong, Benny Goodman, Woody Herman, Dizzy Gillespie, Miles Davis, Sonny Rollins, Charlie Parker, Ornette Coleman e Charles Mingus, são apenas alguns exemplos.
A revista sai todos os meses e os textos são de primeiríssima qualidade, as fotografias excelentes e o grafismo é capaz de transformar o leitor menos comprometido no mais fanático dos coleccionadores.
A edição on line está disponível aqui.


Raul Silva.

Post Scriptum #72

A Metafísica, outra vez.

Já aqui tínhamos publicado poemas de Henry Vaughan e George Herbert (Post Scriptum #56 e 59), representantes maiores da chamada "Escola Metafísica Inglesa", na tradução irrepreensível de Rui Lage. Hoje voltamos a reincidir com Andrew Marvell (1621-1678).
Numa Gota de Orvalho é o mais extenso dos três poemas, e foi "o mais difícil de traduzir", nas palavras de Rui Lage.
Esta tradução ainda está inédita e deverá ser publicada no próximo número da revista Águasfurtadas, que se encontra em preparação.




Numa Gota de Orvalho
(Andrew Marvell)

Vê o orvalho do Oriente
Do seio da manhã vertido
Nas rosas despontando,
Mas da nova casa negligente
Pois em clara região nascido,
Em seu globo se fechando
E no seu recolhimento
Vai figurando o nativo elemento.
Como a púrpura flor altiva,
Mal a terra aflorando
Mas o olhar aos céus retornando,
Brilha de luz dorida;
De si mesma a lágrima
Pois que já do firmamento despedida.
Rola inquieta, insegura,
Temendo crescer impura:
Até que o sol, em a vendo,
Com pena ao céu a devolva aquecendo.
Assim a alma, aurora
Da límpida fonte do eterno dia,
Se dentro da humana flor avistada:
Recordando de outrora a altura,
Foge da pétala adoçada;
E a própria luz reunindo pura,
Nas esferas onde pensa em redor
Mostra, no céu menor o céu maior.
Em que débil forma encerrada
E de toda a sorte fugidia:
Põe fora o mundo arredondada
Mas acolhe dentro o dia;
Escuro em baixo, claro acima:
Aqui ódio, ali amor ensina,
Quão leve e fácil pois partir:
E quão disposta a ascender.
De um ponto apenas conseguir,
Tudo em volta aos céus erguer.
E o divino orvalho assim vai destilando
Branco, inteiro, mas frio e gelado.
Gelado na terra: que evaporando
Sobe rumo às glórias do sol dourado.


Tradução ainda inédita de Rui Lage.




On a Drop of Dew

See how the Orient Dew,
Shed from the Bosom of the Morn
Into the blowing Roses,
Yet careless of its Mansion new,
For the clear Region where ‘twas born,
Round in its self incloses,
And in its little Globes Extent,
Frames as it can its native Element.
How it the purple flow’r does slight,
Scarce touching where it lyes,
But gazing back upon the Skies,
Shines with a mournful Light;
Like its own Tear,
Because so long divided from the Sphear.
Restless it roules and unsecure,
Trembling lest it grow impure:
Till the warm Sun pitty it’s Pain,
And to the Skies exhale it back again.
So the Soul, that Drop, that Ray
Of the clear Fountain of Eternal Day,
Could it within the humane flow’r be seen,
Remembring still its former height,
Shuns the sweet leaves and blossoms green;
And, recollecting its own Light,
Does, in its pure and circling thoughts, express
The greater Heaven in an Heaven less.
In how coy a Figure wound,
Every way it turns away:
So the World excluding round,
Yet receiving in the Day.
Dark beneath, but bright above:
Here disdaining, there in Love,
How loose and easie hence to go:
How girt and ready to ascend.
Moving but on a point below,
It all about does upwards bend.
Such did the Manna’s sacred Dew destil;
White, and intire, though congeal’d and chill.
Congeal’d on Earth: but does, dissolving, run
Into the Glories of th’ Almighty Sun.

11.11.03

Post Scriptum #71

Ainda há corvos por aqui.

Não queríamos encerrar este "dossier" do "Corvo", aberto a propósito das extraordinárias traduções que Isa Mara Lando e Margarida Vale de Gato nos ofereceram do poema de Poe (Post Scriptum #67 e 70), sem lançar mais algumas pistas de leitura. Neste sítio podem encontrar-se mais 22 versões em português do poema, entre as quais as de Fernando Pessoa (1924), aqui citado várias vezes, Machado de Assis (1883), Alexei Bueno (1980) e Sérgio Duarte (1998).

Entretanto, e porque as coincidências em torno de "O Corvo" continuam a acontecer, o Manuel Resende informa-nos que muito recentemente concluiu um poema para o próximo número da revista Inimigo Rumor onde também voam corvos. A próxima edição desta revista será integralmente dedicada ao Ruy Belo. O poema de Resende é um pequeno conjunto de variações sobre a "Nau dos Corvos", texto de Ruy Belo inspirado na famosa rocha que existe ao largo de Peniche, assim chamada por parecer uma nau quinhentista e nela abrigar muitos corvos, e onde era citado o inevitável poema de Poe.
O Manuel Resende cedeu-nos o seu poema para uma pré-publicação.



Fotografia da "Nau dos Corvos", Peniche, da autoria de Vasco Ribeiro.



DIVAGAÇÕES SOBRE O POEMA "NAU DOS CORVOS" DE RUY BELO

Para Jorge Silva Melo

tudo se perde nada se cria nada se transforma
se suspeitasses como está aquele grande rio eufrates
que te interessaria a pétrea pátria e o moreira baptista
pátrias é o que mais há e ainda ontem
engoli umas quatro (pide rasca gana) com este trejeito
de falar manso um português quotidiano
como quem não quer a coisa ora de
pois das palavras idas como uma maré
ficam conchas ou lixo? conchas ou o quê?
eu como tu presumo percorro repetidas distâncias
entre o lava-roupa e a cozinha mas agora perseguido
pelos predicados de primeira ordem comer dormir
enquanto lavo a louça ou arrumo a roupa
(são animais tristes
as camisolas vazias
e de orelhas murchas)

vou pensando talvez falta de abraços
que sou um ponto ténue e inextenso
por onde o mundo me suga e não fica nada
já se sabe o sol nasce sem nós e
anda praí muita circulação monetária
e muita guerra pra que não nos consultaram
mas por isso mesmo é mundo demais
para um só homem ou até vá dois
e olha que eu bem sei que aquela nespereira
ao canto do olho ao lavar dos dentes
trabalha para mim como todas as nespereiras
mas por isso mesmo é mundo demais

é que (como dizer-to a ti?) o tempo (detergente?)
tanto deu que sem se quebrar furou a pedra
entrou como uma enxurrada e
encheu-nos de presente e agora por cá
tudo decorre e tudo permanece
dum modo mais essencial
uma vez que as coisas vãs são mudáveis
mas não estamos mais perto de nada
e nunca estamos em casa em nenhum lugar
já não há professores do liceu agora são secundários
os factos colam o focinho à nossa cara
que fedor a uísque da classe média (alta)
na verdade as palavras debandaram
haverá certamente quem ache que é luxo
neste tempo de tanta escolha em que há tudo
dizem eles
pedir um fogo que não finde em cinza
e eu próprio se queres saber hoje
à falta de beleza convulsiva
e para alimentar a alma
pensei em comer dois almoços
sucessivamente

ah pensar localmente e agir globalmente
realmente não há como esses corvos
não os simbólicos que vêm nas noites negras
dizer nunca mais sobre a cabeça de pallas
nem sequer o heckle and jeckle que por acaso são pegas
nada disso aqueles corvos biológicos
aquelas aves abstractas que há nos matos
gosto do estilo deles que pisa com pés de corvos
o chão de terra e com asas negras
rasga os ares insalubres e com corpo habita
entre as latas de sardinha as reles ervas e todo
o lixo das coisas corvos arredios
corvos clandestinos
gosto da carne intragável e de ela ser intragável
do crocitar que não se escreve com u
nem nenhum amoroso carcereiro admira
da roupa que não tira ahs e ohs da boca dos meninos
pelo que podem andar no mundo livres

sim sim os corvos os não palradores
os que se abrigam ali para o lado sul
os que são pouca coisa o que podem
é preciso talvez fazer esse poema
mas para lá chegar há que esculpir com as palavras
com as palavras ir desbastando
até que ele surja bruto e radioso
e que importa que pensem que estamos pedrados
ou bêbados
vamos então dizer frases do género
"no mundo minúsculo
não é o bicho-de-conta
que empurra a formiga"


Manuel Resende.

10.11.03

Cimbalino Curto #37


Rua Morgado de Mateus, Porto.

Fotografia de Francisco Costa.

Mensagem da Gerência #10

Na semana passada, publicámos aqui, praticamente em primeira mão, a magnífica tradução de "O Corvo", de Edgar Allan Poe, realizada por Isa Mara Lando (Post Scriptum #67), uma das mais apreciadas tradutoras brasileiras da actualidade. Quase na mesma altura, e em resposta a um contacto que tínhamos efectuado anteriormente, recebemos uma missiva de Margarida Vale de Gato, nome que os nossos leitores facilmente reconhecerão de algumas traduções fundamentais surgidas entre nós nos últimos anos, na qual nos informava estar a traduzir Poe para a editora Errata e que decidira enviar-nos desde já a sua versão de "O Corvo", para uma espécie de pré-publicação.

Ora, isto significa que, graças a uma extraordinária coincidência que estávamos longe de prever, o Quartzo, Feldspato & Mica tem a sorte de poder publicar, com muito poucos dias de diferença, duas versões distintas daquela que é provavelmente a obra mais famosa de Poe. E desde logo pela mão de duas tradutoras de excepção. Um privilégio único que queremos partilhar com os melhores leitores da blogosfera.

Enfim, este curioso episódio acaba por ser também um bom pretexto para agradecer aos vários criadores que, em sucessivas demonstrações de invulgar e inesgotável generosidade, têm-nos cedido trabalhos de uma qualidade absolutamente inquestionável, ainda inéditos, ou disponíveis em círculos muito restritos. Falamos de MANUEL RESENDE, JORGE DE SOUSA BRAGA, RUI LAGE, ISA MARA LANDO, MIGUEL GONÇALVES E, AGORA, MARGARIDA VALE DE GATO. Todos contribuíram para tornar este blog muito, mas muito mais interessante.

Post Scriptum #70

Margarida Vale de Gato é mais uma tradutora de excepção a colaborar com o nosso blog. O seu nome está ligado a várias traduções absolutamente incontornáveis surgidas em Portugal nos últimos anos. Para citar apenas alguns exemplos, lembro as edições de Henry Michaux, Truman Capote, Lewis Carroll, René Char, Jack Kerouac, Herman Melville, Christina Rossetti, Oscar Wilde e W.B. Yeats, para a Relógio D’Água, e essa extraordinária pequena maravilha que é "A morte melancólica do Rapaz Ostra & Outras Estórias", de Tim Burton, para a Errata.

É, pois, com o maior orgulho que apresentamos, em primeira mão, a sua versão de "O Corvo" (1845), de Edgar Allan Poe (1809-1849). Este texto deverá integrar a edição da Poesia Completa de Poe que a tradutora se encontra a preparar para a editora Errata, com aparato crítico e abundantes ilustrações de Filipe Abranches. A sua saída está prevista para o início de 2004.

Tal como tinha acontecido com a tradução de Isa Mara Lando, e uma vez que o poema é relativamente longo, decidimos publicá-lo num corpo de letra ligeiramente menor do que é habitual.

A apresentação do texto é da autoria de Margarida Vale de Gato e a ilustração é de Filipe Abranches.

Tal como a de F. Pessoa, a minha tradução esforça-se por ser «ritmicamente conforme o original». No entanto, nesta versão, o quarto e o quinto versos deixam de rimar com o refrão. Isto, porque no Corvo de Poe a rima em «ore» era um eco entre dois nomes: o do Corvo (Nevermore) e o da amada morta (Lenore), o que intensifica a impossibilidade da repetição de um reencontro entre os amantes, e fortalece a tese daqueles que interpretam o Corvo como uma reencarnação da amada. Porém, é impossível reproduzir isto em português: Lenore não rima com «nunca mais», nem há nenhum nome de mulher terminado em «ais». F. Pessoa, para manter o esquema rimático original (e por outras razões domesticantes que agora não vêm ao caso) aboliu o nome da amada. Eu restauro-o, não só porque acho que é importante manter na tradução as marcas estrangeiras do texto, como também porque penso que a funcionalidade deste poema vive muito do jogo entre esses dois nomes próprios. Assim, desdobrei o efeito de eco em dois refrões sonoros: rima em «ais» no segundo verso e no refrão, e rima em «ora» (evocando Lenora) no quarto e quinto versos. Cria-se uma polifonia, contrariando a monotonia que Poe disse querer manter, mas salva-se a permutabilidade dos nomes e evita-se o gemido contínuo de tantos ais. Quanto ao resto, procurei manter aliterações, assonâncias e rimas internas, bem como o máximo possível de informação referencial dentro dos constrangimentos da métrica.
Esta versão, que deriva em parte do facto de eu estar a fazer uma tese de doutoramento sobre a recepção de Edgar Allan Poe em Portugal, faz parte do livro POESIA COMPLETA DE EDGAR ALLAN POE, traduzido por mim e abundantemente ilustrado por Filipe Abranches, que será editado pela Errata no início de 2004.





O CORVO

Era o meio da noite sombria, fraco e lasso eu reflectia
Sobre os tomos singulares dos saberes ancestrais;
E com sono, cabeceando, eis que ouvi algo raspando,
Seco som, ténue, tocando, tocando à porta de fora,
Visita decerto seria, batendo à porta lá fora,
Isso só e nada mais.

Distintamente eu me lembro, era o mais negro Dezembro;
E no chão a cinza ardente urdia formas espectrais.
Oh, quem me dera a aurora, quisera em vão nessa hora,
Ler meus livros contra a dor... dor por perdida Lenora;
Jovem rara e radiosa, que os anjos chamam Lenora,
E aqui ninguém chama mais.

E o roçagar, triste e frouxo, dos sedosos panos roxos,
Fez-me, feérico, fabricar, torpes horrores fantasmais,
Pelo que então, sossegando o peito célere vibrando,
Repeti: «É uma visita, que ao meu quarto assoma agora
E à porta bate e se agita, nesta tão tardia hora;
Isto é e nada mais.»

Minha alma então se animou e já não mais hesitou;
«Senhor, ou Senhora», disse eu, «perdão peço antes demais;
Mas eu estava dormitando, e vosso bater foi tão brando,
Tão ténue fostes tocando, tocando à porta a desoras,
Que mal vos pude escutar» – e a porta abri sem demora:
Só o breu e nada mais.

Espreitando aquele breu, temente me mantive eu,
Suspeitando e tendo sonhos jamais tidos por mortais,
Mas o silêncio era duro, não havia nele augúrio,
E apenas seu nome puro ousei sussurrar: «Lenora»,
E o eco logo volveu meu murmúrio de «Lenora».
Isto apenas, nada mais.

De novo tornei para dentro, toda a minha alma ardendo,
E de novo ouvi batendo, como que batendo mais,
«Por certo», pensei, «algo vela, e toca em minha janela,
Veja eu pois o que me apela, o mistério que se ignora,
Sossega ó meu coração, e este mistério explora...
É o vento e nada mais!»

Abri com força a vidraça, e eis que alvoroçado esvoaça
Adentro um corvo soberbo, de tempos imemoriais.
Não se mostra reverente nem hesita reticente,
Mas, com seu porte imponente sobre a porta se me arvora,
Trepando à estátua de Palas que a minha ombreira decora,
E ali pousando sem mais.

Quando a ave de ébano vi, de meu devaneio sorri,
Devido ao decoro grave dos seus ares senhoriais.
«Tens na crista uma tonsura, mas não te falta bravura,
Velho e horrendo corvo escuro, do negrume que apavora,
Diz-me que nome te dão nos cais onde Plutão mora!»
Disse o Corvo: «Nunca mais.»

Espantou-me que a ave tosca discursasse desenvolta,
Posto que suas palavras fossem pouco racionais,
Sendo, creio, consensual que nunca nenhum mortal
Viu pousada em seu umbral besta falante ou canora,
Num busto de pedra esculpido que a sua porta decora,
Com tal nome «Nunca mais».

Mas sobre a estátua serena disse o Corvo isto apenas
Como se a alma vertesse nas palavras triviais.
E mais nada aventurou, não mais dali esvoaçou,
Até que em mim algo ousou: «Amigos tive eu outrora,
Também este irá como eles, como as Esperanças, pela aurora.»
Disse a ave: «Nunca mais.»

Assustado pela sentença que assim cortou tal silêncio,
Disse: «Repete ele por certo ensinamentos banais
Que ouviu a mestre funesto a quem o Destino infesto
Perseguiu lesto e agreste, e o seu canto, alto embora,
Fez alquebrar no de um homem cuja sorte não melhora,
Entoando "Nunca mais".»

Mas ainda o Corvo feio me iludia o devaneio,
E do busto, porta e ave, me aproximei então mais,
E arrastando o assento, cismei eu, elanguescente,
Por que esta ave agourenta, tão escura ave de outrora,
Por que é que, tosca e grotesca, a ave torva de outrora,
Crocitava «Nunca mais».

Isto me ia perguntando, mas nem uma fala trocando
Com a ave que inflamava meu peito de olhos fatais.
Isto e mais fui cogitando, e a cabeça reclinando
No veludo do divã, sem que nele a luz, que agora
Cindia o pano lilaz, pudesse aflorar Lenora
Que a não veria jamais.

E o ar era então mais denso, espargido de etéreo incenso,
Como se um anjo passasse com seus passos musicais
No soalho atapetado: «Deus te traz, ó Desgraçado,
A paz e o olvido ansiado das memórias de Lenora;
Traga, pois, traga o nepente, esquece a perdida Lenora!»
Disse o Corvo: «Nunca mais.»

«Profeta», eu disse, «Ó mal que temo! Profeta és, ave ou demo!
Por Tentação enviado, varrido por vendavais,
Desvalido mas ousado, neste ermo enfeitiçado,
Neste lar mal assombrado, diz-me, minha alma implora,
Se em Galaad há consolo, di-lo à alma que te implora!»
Disse o Corvo: «Nunca mais».

«Profeta», eu disse, «Ó mal que temo! Profeta és, ave ou demo!
Pelo Deus a quem se adora, pelo céu que cobre os mortais,
Diz-me à alma, que quebranta, se nesse Éden tão distante
Estreitará a jovem santa que os anjos chamam Lenora,
Jovem rara e radiosa, que os anjos chamam Lenora.»
Disse o Corvo: «Nunca mais».

«Que então pois nos apartemos», bradei eu, «Ó ave ou demo!
Volta ao negrume das trevas, tormento dos vendavais!
Não deixes pluma em sinal do perjúrio da tua alma,
Deixa-me minha erma calma, o busto que o umbral decora,
Deixa de bicar-me o peito e vai-te daqui embora!»
Disse o Corvo: «Nunca mais.»

E o Corvo, sem ter voado, permanece ainda sentado
Na branca estátua de Palas que há sobre os meus portais,
E tem o olhar transtornado de demónio estremunhado;
E a luz que sobre ele arde urde no chão uma forma,
E a minha alma, dessa sombra que soçobra ainda agora,
Não recobra... nunca mais!



Tradução de Margarida Vale de Gato.

7.11.03

Post Scriptum #69

Novalis era, em primeiro lugar, engenheiro de minas. Goethe formou-se em Direito e trabalhou durante longos anos para o governo. Schiller e A. W. Schlegel ganhavam a vida a dar aulas numa universidade. Johann Peter Hebel era director de um pequeno liceu. E. T. A. Hoffmann foi um famoso advogado e juiz, e Joseph Von Eichendorff um administrador prussiano. Kleist tentou várias vezes conservar um emprego e fracassou sempre.

Post it #20

Um autor deve guiar o leitor pelos campos amenos do comum até o momento em que, recriando as chispas e os relâmpagos, possa desnorteá-lo, desorientá-lo, possa retirar-lhe o chão sob os pés e o céu sobre a cabeça.

Cimbalino Curto #35


Biblioteca Pública Municipal do Porto.

Fotografia de Francisco Costa.

Post Scriptum #68

Paladas de Alexandria, (séc. IV), numa tradução de José Paulo Paes, sugerida pelo Manuel Resende.

Um pequeno epigrama de Paladas de Alexandria, traduzido por José Paulo Paes (1926-1998), um dos maiores tradutores de poesia, sobretudo grega, para português (do Brasil).
(Manuel Resende)



Acaso estamos mortos e só aparentamos
estar vivos, nós gregos caídos em desgraça,
que imaginamos a vida semelhante a um sonho,
ou estamos vivos e foi a vida que morreu?

Paladas de Alexandria (séc. IV d.C.), tradução de José Paulo Paes, in "Paladas de Alexandria - Epigramas", Nova Alexandria, 1992.

Press Release #1

A editora Gostar acaba de lançar uma Prenda de Natal em forma de livro. Podem conhecê-la aqui.

O Silêncio é de Ouro #10

A nossa leitora Isabel Coimbra sugere que evoquemos Adriano Correia de Oliveira.
Corajoso e digno como poucos, enfrentou todas as deslealdades e muitas humilhações. Morreu no dia 17 de Outubro de 1982, de cirrose e de tristeza, em Avintes.



Fica feita a evocação.

Ilha dos Amores #16

Hoje começamos o dia com duas boas sugestões na área da imagem. A primeira, de Insensatez, transporta-nos para os "Quartos junto ao Mar", criados por Edward Hopper (1882-1967).


Edward Hopper, Rooms by the Sea, 1951, Yale University Art Gallery, New Haven, Connecticut .

A segunda sugestão foi-nos enviada pelo Ricardo Mariano e é uma ligação para o sítio do fotógrafo Simon Larbalestier, conhecido sobretudo pelos seus trabalhos para os belíssimos discos da editora britânica 4AD. De Larbalestier escolhemos esta imagem.


Simon Larbalestier, Bed, de uma série realizada entre 1988 – 1995.

6.11.03

Mensagem da Gerência #9

O Quartzo, Feldspato & Mica tem o prazer de anunciar mais uma colaboração de excepcional qualidade na área da tradução: ISA MARA LANDO.

Trata-se de uma das mais destacadas tradutoras brasileiras da actualidade. Traduziu, entre muitos outros, Amos Oz, Salman Rushdie, Susan Sontag e Michael Cunningham, para a Companhia das Letras; John Fante e Yukio Mishima, para a Brasiliense; Edgar Allan Poe, e Emily Dickinson, para a Imago.

É ainda autora de um conhecido dicionário de termos ingleses que apresentam dificuldades de tradução ou compreensão, intitulado Vocabulando - Vocabulário Prático Inglês-Português, o qual inspirou o sítio www.vocabulando.com.

Para este blog, Isa Mara Lando teve a amabilidade de emprestar a sua magnífica tradução de "The Raven", de Edgar Allan Poe (1809-1849), ainda inédita em livro e que agora se apresenta, pela primeira vez, em Portugal.

Como é sabido, o poema é um pouco longo. Por isso, decidimos diminuir ligeiramente o corpo da letra para não assustar os leitores mais apressados.

Post Scriptum #67

No início de 2001 o prezado colega Haroldo Netto lançou um desafio na lista Litterati, de tradutores literários, da qual eu participava: fazer uma nova tradução do famoso poema "The Raven" de E. A. Poe. Minha vontade de tentar foi imediata: amo Poe desde a adolescência, já traduzi outros poetas, como Baudelaire, Emily Dickinson e John Lennon, com resultados razoáveis, e como todo o mundo, também cometi meus poemas de juventude. Além disso já traduzi dois contos de Poe, A Carta Roubada e Os Assassinatos da Rua Morgue (em edição bilingüe, Imago/Alumni). Estas traduções me pareceram bastante satisfatórias, mostrando que minha afinidade com Poe me permitia, pelo menos, tentar. Como disse Chico Buarque, "A melhor inspiração é a encomenda"...

Comecei relendo as consagradas traduções de Fernando Pessoa e Machado de Assis. São belas, claro, sobretudo a de Fernando Pessoa, fiéis ao tom erudito do original, com belos momentos como "Noite, noite e nada mais" (FP). Mas por serem já antigas, e ambas de dicção lusitana, achei-as duras, dificultosas, com palavras e frases que para um leitor brasileiro de hoje causam espécie e distanciamento, como:

Já foi dito que cada geração traduz de novo os clássicos, e é bom que assim seja. E ao constatar que circulam não só estas como diversas outras traduções do poema, em verso e prosa, decidi fazer uma tentativa*.


Isa Mara Lando






O CORVO (1845)


Versão da Isa Mara Lando
Para a voz de Alceu Valença –
Um trovador de presença
Que sabe cantar chorando,
Ou p’rum velho repentista
Que lá no Nordeste exista
E saiba triste cantar
As angústias do Edgar.




1
Meia-noite, noite escura
Hora de sombra e loucura
Estou eu meditabundo,
Em devaneio profundo
Velhos papéis a estudar
De sono cabeceando
E já quase dormitando
Quando alguém me bate à porta
— Bate, bate, bem de leve —
Com batidas repetidas
Quem será, nessa hora morta
Que veio me procurar?
Deve ser visita breve
— Bate, bate, bem de leve —
Uma visita de paz
Deve ser visita breve
É só isso, nada mais.

2
Eu me lembro, bem me lembro
No triste mês de dezembro
Cada brasa da lareira
Uma sombra projetava
E seu fantasma lançava
Pelo chão a se arrastar.
Esperando o amanhecer
Em vão eu tentava obter
Nos livros da minha estante
Consolo pra minha dor
A dor de perder Leonor
A jovem bela, radiante
Que os anjos chamam Leonor
Jóia rara, tão fugaz
Leonor, pra nunca mais.

3
Cortinas de seda roçavam
E minh’alma ameaçavam
Com fantásticos terrores
Temores que nunca senti.
Pra parar meu coração
Que batia feito louco
Fiquei repetindo um pouco:
"É uma visita que chega
Esperando ali na porta,
Chegou nessa hora morta
Mas visita mal não faz
É só isso, nada mais."

4
Ganhei coragem e disse,
"Meu senhor — minha senhora?
Queira me desculpar
Eu dormitava inda agora
Suas batidas tão leves
Não consegui escutar.
Apesar da hora morta
Vou lhe abrir a minha porta
Vamos ver o que me traz."
Fui e escancarei a porta —
Escuridão, nada mais.

5
Espiei a noite escura
Curioso, temeroso
Tomado por devaneios
Que ninguém ousou sonhar.
Só o silêncio me encarava
E a única palavra
Que ali foi sussurrada
Bem de leve murmurada
Foi um nome: "Leonor?"
Foi o que eu disse baixinho
A resposta o eco traz —
Disse o eco, "Leonor!"
Foi só isso, nada mais.

6
Voltei então para o quarto
Dentro de mim tudo ardia
Logo alguém bateu à porta
Mais forte agora batia.
Com certeza é a janela
O vento na gelosia
Vamos ver o que há lá fora
Que ameaça vem agora
Calma, meu coração
Não bate tanto assim não
Vou explorar esse mistério
Esse mistério tenaz
Vou explorar esse mistério —
É o vento, nada mais.

7
Abro a janela e ouço
Um esvoaçar de asas —
De súbito entra um Corvo
Solene pássaro antigo
Negro viandante arribado
Lá do fundo do passado
E sem dar nenhum sinal
De querer falar comigo
Feito ilustre cavalheiro
— ou talvez fosse uma dama —
Voou — eu levei um susto —
Passou por cima da cama
Chegou no alto da porta
E foi pousar bem no busto
Da deusa Palas Atena —
— Deusa da sabedoria
Que os meus atos vigia
A que não dorme jamais
Acima da minha porta
Pousou ali, nada mais.

8
Negro pássaro de ébano
Um sorriso me arrancou
Ancião de terno preto
Com jeito de professor
"Tu não és nenhum covarde,
Corvo antigo que chegaste
Do reino da Noite escura
Nessa hora negra, tão tarde
Hora de sombra e loucura
Hora sem sono e sem paz
Qual é o teu nome, pergunto,
Teu nome de grão-senhor
Como é que eles te chamam
Lá na Terra de Ninguém
De onde todo corvo vem?"
Disse o Corvo, "Nunca Mais".

9
Fiquei pasmo, aturdido
Ouvindo um bicho tão feio
Falar com tanta clareza
Mesmo sem fazer sentido
Pois qual é a criatura
Um mortal entre os mortais
Que já viu, em noite escura
Um animal, uma ave
Chegar em hora tão morta
Voar pra cima da porta
Pousar em cima de um busto
E se chamar "Nunca Mais"?

10
Mas o Corvo ali sozinho
É só isso que falava
Como se toda a sua alma
Coubesse numa palavra
Numa palavra cabia
Pois mais nada ele dizia
E nem uma pena negra
Aquele bicho mexia.
Até que eu falei baixinho,
"Outros amigos partiram
Se foram cedo demais
Este vai partir na aurora
Qual meus sonhos de rapaz,
Que também já foram embora."
Disse o Corvo: "Nunca Mais!"

11
Espantado com a resposta
— Só ela quebrava o silêncio —
Com certeza, pensei eu,
Ele só fala de cor
Com outro mestre aprendeu —
— Alguém que muito sofreu
Destino amargo demais
E já morta a Esperança
Só lhe restou na lembrança
Uma triste litania
Feita de melancolia,
Feita só de "Nunca Mais".

12
Mas o Corvo, sério e grave
De novo me fez sorrir
Puxei cadeira e almofada
Sentei diante da porta,
Da porta, do busto e da ave.
Recostado no veludo
Pensei bem naquilo tudo
O que ele queria dizer?
Qual a intenção desse bicho
Tão negro, tão magro, tão feio
Triste e solene demais,
Ave de mau agouro
Que entrou no meu devaneio
Grasnando seu "Nunca Mais"?

13
E fiquei ali pensando
Só pensando, sem falar.
Os olhos do bicho, em brasa,
No peito me penetravam
E o meu mais fundo queimavam.
Mergulhei num devaneio
A cabeça para trás
Reclinada, a descansar
No macio da almofada —
Roxo veludo brilhante
Com seu reflexo cambiante,
Roxo veludo brilhante
Que ela não vai mais tocar
Não tocará nunca mais!

14
Nisso o ar ficou pesado
Com o incenso perfumado
De serafins que entravam
E bem de leve pisavam
No meu quarto atapetado.
Gritei "Desgraça! O teu Deus
Com esses anjos mandou
Um santo remédio pra dor
Alívio do sofrimento
O bendito esquecimento
Pra não lembrar de Leonor!
Bebe logo esse remédio
E não penses nela mais
Esquece tua Leonor!"
Disse o Corvo, "Nunca Mais!"

15
"Profeta, bicho ruim!
Mas profeta mesmo assim
Sejas pássaro ou diabo
Se o Tentador te mandou,
Ou se alguma tempestade
Nestas plagas te jogou
Ave noturna, soturna
Mensageiro do Terror
Aqui nessa terra deserta
Nessa terra enfeitiçada
Nesse lar mal-assombrado
Mal-assombrado de Horror
Te imploro, diz a verdade!
Um bálsamo ali existe?
Fala comigo, ave triste!
Responde, se és capaz!"
Disse o Corvo, "Nunca Mais!"

16
"Profeta, bicho ruim!
Mas profeta mesmo assim
Se és pássaro ou diabo,
Pelo Céu que contemplamos
E pelo Deus que adoramos
Responde a esta pobre alma
Carregada de pesar!
Existe um lugar no mundo
Mesmo no abismo profundo
Mesmo distante demais
Onde minh’alma cansada
Doente de tanta dor
Um dia volte a enlaçar
A jovem santificada
A donzela bem-amada
Que os anjos chamam Leonor?"
Disse o Corvo, "Nunca Mais".

17
"Seja este o nosso adeus,
Pássaro, ou inimigo!"
Gritei eu me levantando,
"Volta pra tempestade
Pras negras margens da Noite
Sem deixar nenhum sinal
Nenhuma pena, nem sombra
Dessa mentira, esse mal
Que a tua alma falou!
Deixa a minha solidão!
Deixa o busto de Minerva!
Solta meu coração!
Sai fora da minha porta
Vai embora daqui, ave torta
Vai sem olhar pra trás!
Disse o Corvo, "Nunca Mais!"

18
E ali está o Corvo, parado
Sempre quieto, só pousado
No busto de Palas Atena
Acima da minha porta.
Pelos olhos mais parece
Um demônio ali sonhando.
A lâmpada alumiando
A sua sombra me traz,
E a minha alma da sombra
Que se arrasta pelo chão
Não se erguerá — nunca mais!



Tradução de Isa Mara Lando



* Esta é a versão integral do texto de apresentação desta tradução, da autoria de Isa Mara Lando:


Poe-tando o "Corvo"


No início de 2001 o prezado colega Haroldo Netto lançou um desafio na lista Litterati, de tradutores literários, da qual eu participava: fazer uma nova tradução do famoso poema "The Raven" de E. A. Poe. Minha vontade de tentar foi imediata: amo Poe desde a adolescência, já traduzi outros poetas, como Baudelaire, Emily Dickinson e John Lennon, com resultados razoáveis, e como todo o mundo, também cometi meus poemas de juventude. Além disso já traduzi dois contos de Poe, A Carta Roubada e Os Assassinatos da Rua Morgue (em edição bilingüe, Imago/Alumni). Estas traduções me pareceram bastante satisfatórias, mostrando que minha afinidade com Poe me permitia, pelo menos, tentar. Como disse Chico Buarque, "A melhor inspiração é a encomenda"...

Comecei relendo as consagradas traduções de Fernando Pessoa e Machado de Assis**. São belas, claro, sobretudo a de Fernando Pessoa, fiéis ao tom erudito do original, com belos momentos como "Noite, noite e nada mais" (FP). Mas por serem já antigas, e ambas de dicção lusitana, achei-as duras, dificultosas, com palavras e frases que para um leitor brasileiro de hoje causam espécie e distanciamento, como:

(FP) "Tens o aspecto tosquiado"
"Por certo", disse eu, "aquela bulha é na minha janela."
"Libertar-se-á... nunca mais!"

(MA) "Vou sentar-me defronte ao Corvo magro e rudo"
"Onde as tranças angelicais / De outra cabeça outrora ali se desparziam / E agora não se esparzem mais."

Já foi dito que cada geração traduz de novo os clássicos, e é bom que assim seja. E ao constatar que circulam não só estas como diversas outras traduções do poema, em verso e prosa, decidi fazer uma tentativa.

* * *

Alguém já disse que o primeiro verso de um poema é dado pelos deuses, ou soprado pelas musas. E de fato, ao mergulhar em "Once upon a midnight dreary..." ouvi distintamente,

Meia noite, noite escura
Hora de sombra e loucura...

Um bom começo – sonoro, evocativo, e em redondilha maior, ritmo tão natural e familiar aos ouvidos brasileiros. Já estava dado o tom, o diapasão, o rumo da coisa toda. Outros versos logo surgiram:

Bate, bate bem de leve
Com batidas repetidas

(Era o Corvo, com certeza, batendo à minha porta, com batidas decididas, numa aliteração quase onomatopéica.)

Entrando na segunda estrofe ganhei outro presente das musas: de bandeja, a rima remember /december, aliás aproveitada em muitas traduções:

Eu me lembro, bem lembro,
No triste mês de dezembro...

Um bom clima! O ritmo era hipnótico, e o espírito de Poe, nobre e solene, começava a respirar e ganhar vida. Surgia diante de mim a noite negra, o quarto atapetado, o poeta sofredor, a sombra da Casa de Usher, o gato emparedado, o coração delator. Fui ficando empolgada. E foi então que comecei a ouvir os versos na voz de Alceu Valença, e também dos geniais repentistas nordestinos que certa vez assisti num desafio, numa feira no Ceará. Foi Alceu Valença quem me soprou,

Jóia rara, tão fugaz,
Leonor, pra nunca mais!

"Leonor" – eis uma solução simples e eufônica para "Lenore", mais maleável do que a "Lenora" de Machado. (Fernando Pessoa – que curioso! – deixa a donzela sempre "nameless" – "sem nome aqui jamais".) "Leonor", um nome curto, rima com dor, horror, terror – tudo que eu precisava.

O poema ia assim ganhando forma, com dicção marcadamente brasileira. Acolhi essa vertente de braços abertos: o terror não tem pátria, e pode-se sentir em qualquer lugar, seja no Rio (foi no Rio), em Londres, Baltimore ou Fortaleza, o pavor de ver entrar pela janela – meia-noite, noite escura, hora sem sono e sem paz – uma negra criatura que só fala "Nunca Mais".

Continuei assim num semi-transe, meio que servindo de "cavalo", como dizem na umbanda, para os repentistas cearenses, mais Fagner, Chico Buarque, Chico César... No final da estrofe 4 Alceu Valença soltou um nítido grito, pontuado por um forte acorde dissonante do violão de doze cordas:
"Escuridão – nada mais!"

O poema bradava, abria as asas, ganhava força, vigor, vida própria. Enquanto a madrugada avançava eu ouvia, mentalmente, as vozes brasileiras. E sobretudo, lá no fundo da mente, o ritmo constante de um poema que amo muito, "A Morte de Madrugada", de Vinícius de Morais:

Uma certa madrugada
Eu por um caminho andava
Não sei bem se estava bêbado
Ou se tinha a morte n’alma....

...Com o peito de dor rompido
Me quedei, paralisado.....

Prossegui embalada pelas redondilhas, dando-me liberdade, sem acompanhar o esquema original das rimas, rimando como dava e quando dava, procurando captar o clima, a dramaticidade que sobe num crescendo incessante, até chegar à estrofe 15, onde de novo a voz de Alceu Valença lança outro brado de angústia:

Profeta, bicho ruim –
Mas profeta mesmo assim!

– chegando ao clímax na 17, onde o poeta solta esses gritos dilacerados,

Deixa a minha solidão!
Deixa o busto de Minerva!
Solta meu coração!
Sai fora da minha porta
Vai embora daqui, ave torta
Vai sem olhar pra trás!

São os célebres versos de Poe -

Leave my loneliness unbroken! – quit the bust above my door!
Take thy beak from out my heart, and take thy form from off my door!

A solução de Fernando Pessoa é sonora, mas nela não se vê bico ou garra:

(FP) Minha solidão me reste! Tira-te de meus umbrais!
Tira o vulto de meu peito e a sombra de meus umbrais!

Machado de Assis aqui foi menos afortunado, pelo menos para o gosto brasileiro moderno:

(MA) Tira-me ao peito essas fatais
Garras que abrindo vão a minha dor já crua.

* * *

Depois dessa memorável noite – que no meu caso não foi escura, mas iluminada por uma bela lua cheia entrando pela janela – passei uns bons quinze dias obcecada, burilando os versos sem parar. Já desligada do original, sentia o poema em português ganhando corpo e adensando a alma – uma alma vibrante, inteira, própria, que já se revelara desde as primeiras palavras que me foram sopradas.

Fiquei, enfim, passavelmente satisfeita com o resultado, como acredito que deva estar também Mr. Poe, na excelsa nuvem em que hoje habita. Declamado em voz alta o poema em português funciona, faz bom efeito. A maior crítica que lhe faço é que, bem ao contrário do original, as rimas que consegui são pedestres – porta, torta, morta; nunca mais, demais, jamais. Há também algumas licenças poéticas – dois acréscimos ao original e um verdadeiro erro conceitual, que deixo por conta do leitor descobrir, mas que a meu ver não atrapalham, só ajudam.

Enfim, na frase de Cícero, "Feci quod potui, faciant meliora potentes" – "Fiz o que pude, faça melhor quem puder".

Aqui vai, então, meu Corvo, "que cobri de redondilhas" numa noite de luar. Espero que bata as asas, entre por muitas janelas e assombre várias casas.

** Essas e outras traduções do poema se encontram facilmente na internet mediante as palavras-chave "poe corvo". As ilustrações de Gustave Doré, uma para cada estrofe, também estão disponíveis em vários sites.



A Gerência Agradece #16

Obrigado ao Descrédito e ao Valter Hugo Mãe, pelas referências feitas a este blog.



5.11.03

Post Scriptum #66

A "Pulga" de Alexandre O’Neill ("Feira Cabisbaixa", 1965), convertida em giff animado pelo Manuel Resende.




Entretanto, o Manuel também pulou para a Janela e para o blog do Rui.

Cimbalino Curto #34

Hoje há Raul Brandão na tenda do almocreve.

Post Scriptum #65

Este poema foi-me oferecido por um amigo, o José Álvaro Oliveira, que o descobriu numa velha edição do Jornal de Notícias, datada de 17 de Novembro de 1937. Foi publicado no antigo suplemento literário que era distribuído com aquele jornal aos domingos. Pouco se sabe acerca do seu autor, para além de se chamar Haukur Haraldsdóttir, de ter nascido na Islândia, em 1867, e ali ter morrido em 1906. A tradução é de um tal Cristóvão Meireles.

AS INCLINAÇÕES RECÍPROCAS

Quando os peixes começam a ganhar raízes no fundo do mar,
os pescadores mergulham num tão longo desespero
que desatam a escrever-lhes poemas de amor,
que lançam até dois mil metros de profundidade,
em papelinhos verdes presos aos anzóis.

Os peixes, porém, cansados de tanto lixo,
devolvem os papéis e as palavras,
aproveitando apenas os anzóis
para erguer os seus muros de arame farpado.

Jornal de Notícias, 17 de Novembro de 1937. Tradução de Cristovão Meireles.

Mais poemas com peixes aqui, aqui, aqui e aqui.

4.11.03

Cimbalino Curto #33


Rua Morgado de Mateus, Porto.

Fotografia de Francisco Costa.

Post Scriptum #64

O silesiano Andreas Griphius (1616-1664), de quem já aqui publicámos um poema (Post Scriptum #62), além de poeta foi um importante dramaturgo. Os seus textos eram assinados sob o pseudónimo "Meletomenus", que significa "O Melancólico".
Foi contemporâneo e amigo de Christian Hoffman von Hoffmannswaldau (1619-1679), poeta conhecido sobretudo pelos seus poemas eróticos. Ambos frequentaram a mesma escola, ambos estudaram em Leiden, ambos viajaram pela Europa e regressaram a casa para assumir papéis na vida civil da Silésia.
Dos dois, Griphius foi o primeiro a morrer, embora tenha morrido menos do que Hoffmannswaldau.

Post Scriptum #63

JÁ NAS BANCAS.
A Relógio D’Água acaba de publicar um dos grandes livros de poemas do século XX: Spoon River Anthology, do norte-americano Edgar Lee Masters (1868-1950), numa tradução de José Miguel Silva.
Edgar Lee Masters foi um dos mais destacados representantes do chamado Grupo de Illinois, do qual também fez parte Carl Sandburg. E Spoon River é um dos livros mais extraordinários que conheço. A primeira versão foi publicada entre 1914 e 1915. Em Portugal, as primeiras traduções surgiram pela mão de Jorge de Sena (corrijam-me se estiver errado).
Infelizmente, ainda não tenho o livro. Por isso, recorro à tradução do Sena.



HOMER CLAPP

Muitas vezes Aner Clete no portão
me recusou um beijo de adeus,
dizendo que tínhamos primeiro de estar noivos,
e só com um distante apertar-me da mão
me dava as boas-noites, quando eu a trazia a casa
do ringue de patinagem ou da igreja.
Mal tinha o ruído dos meus passos sumido na distância
e Lucius Atherton
(o que eu soube quando Aner se foi para Peoria)
lhe entrava pela janela ou a levava
no carro puxado pela parelha baia
a passear no campo.
O desgosto levou-me a tratar da vida
e pus todo o dinheiro da herança de meu pai
na fábrica de latas, para conseguir
ser chefe da contabilidade, e perdi tudo.
Foi quando entendi que eu era um dos bobos da Vida,
a quem só a morte trataria como igual
aos outros homens, fazendo que eu me sentisse um homem.

Tradução de Jorge de Sena, incluída em Poesia do Século XX, 2ª ed., Fora do Texto, 1994.

3.11.03

O Silêncio É de Ouro #9

Este disco é uma espécie de lição nº 1 para amadores de Jazz: Time Out de Dave Brubeck Quartet (1959). Inclui, entre outros, o tema Take Five, um dos mais famosos da história do Jazz. O grafismo do álbum é da responsabilidade de Neil Fujita. A lição foi-nos oferecida pelo Raul Silva.