No início de 2001 o prezado colega Haroldo Netto lançou um desafio na lista Litterati, de tradutores literários, da qual eu participava: fazer uma nova tradução do famoso poema "The Raven" de E. A. Poe. Minha vontade de tentar foi imediata: amo Poe desde a adolescência, já traduzi outros poetas, como Baudelaire, Emily Dickinson e John Lennon, com resultados razoáveis, e como todo o mundo, também cometi meus poemas de juventude. Além disso já traduzi dois contos de Poe, A Carta Roubada e Os Assassinatos da Rua Morgue (em edição bilingüe, Imago/Alumni). Estas traduções me pareceram bastante satisfatórias, mostrando que minha afinidade com Poe me permitia, pelo menos, tentar. Como disse Chico Buarque, "A melhor inspiração é a encomenda"...
Comecei relendo as consagradas traduções de Fernando Pessoa e Machado de Assis. São belas, claro, sobretudo a de Fernando Pessoa, fiéis ao tom erudito do original, com belos momentos como "Noite, noite e nada mais" (FP). Mas por serem já antigas, e ambas de dicção lusitana, achei-as duras, dificultosas, com palavras e frases que para um leitor brasileiro de hoje causam espécie e distanciamento, como:
Já foi dito que cada geração traduz de novo os clássicos, e é bom que assim seja. E ao constatar que circulam não só estas como diversas outras traduções do poema, em verso e prosa, decidi fazer uma tentativa*.
Isa Mara Lando
O CORVO (1845)
Versão da Isa Mara Lando
Para a voz de Alceu Valença –
Um trovador de presença
Que sabe cantar chorando,
Ou p’rum velho repentista
Que lá no Nordeste exista
E saiba triste cantar
As angústias do Edgar.
1
Meia-noite, noite escura
Hora de sombra e loucura
Estou eu meditabundo,
Em devaneio profundo
Velhos papéis a estudar
De sono cabeceando
E já quase dormitando
Quando alguém me bate à porta
— Bate, bate, bem de leve —
Com batidas repetidas
Quem será, nessa hora morta
Que veio me procurar?
Deve ser visita breve
— Bate, bate, bem de leve —
Uma visita de paz
Deve ser visita breve
É só isso, nada mais.
2
Eu me lembro, bem me lembro
No triste mês de dezembro
Cada brasa da lareira
Uma sombra projetava
E seu fantasma lançava
Pelo chão a se arrastar.
Esperando o amanhecer
Em vão eu tentava obter
Nos livros da minha estante
Consolo pra minha dor
A dor de perder Leonor
A jovem bela, radiante
Que os anjos chamam Leonor
Jóia rara, tão fugaz
Leonor, pra nunca mais.
3
Cortinas de seda roçavam
E minh’alma ameaçavam
Com fantásticos terrores
Temores que nunca senti.
Pra parar meu coração
Que batia feito louco
Fiquei repetindo um pouco:
"É uma visita que chega
Esperando ali na porta,
Chegou nessa hora morta
Mas visita mal não faz
É só isso, nada mais."
4
Ganhei coragem e disse,
"Meu senhor — minha senhora?
Queira me desculpar
Eu dormitava inda agora
Suas batidas tão leves
Não consegui escutar.
Apesar da hora morta
Vou lhe abrir a minha porta
Vamos ver o que me traz."
Fui e escancarei a porta —
Escuridão, nada mais.
5
Espiei a noite escura
Curioso, temeroso
Tomado por devaneios
Que ninguém ousou sonhar.
Só o silêncio me encarava
E a única palavra
Que ali foi sussurrada
Bem de leve murmurada
Foi um nome: "Leonor?"
Foi o que eu disse baixinho
A resposta o eco traz —
Disse o eco, "Leonor!"
Foi só isso, nada mais.
6
Voltei então para o quarto
Dentro de mim tudo ardia
Logo alguém bateu à porta
Mais forte agora batia.
Com certeza é a janela
O vento na gelosia
Vamos ver o que há lá fora
Que ameaça vem agora
Calma, meu coração
Não bate tanto assim não
Vou explorar esse mistério
Esse mistério tenaz
Vou explorar esse mistério —
É o vento, nada mais.
7
Abro a janela e ouço
Um esvoaçar de asas —
De súbito entra um Corvo
Solene pássaro antigo
Negro viandante arribado
Lá do fundo do passado
E sem dar nenhum sinal
De querer falar comigo
Feito ilustre cavalheiro
— ou talvez fosse uma dama —
Voou — eu levei um susto —
Passou por cima da cama
Chegou no alto da porta
E foi pousar bem no busto
Da deusa Palas Atena —
— Deusa da sabedoria
Que os meus atos vigia
A que não dorme jamais
Acima da minha porta
Pousou ali, nada mais.
8
Negro pássaro de ébano
Um sorriso me arrancou
Ancião de terno preto
Com jeito de professor
"Tu não és nenhum covarde,
Corvo antigo que chegaste
Do reino da Noite escura
Nessa hora negra, tão tarde
Hora de sombra e loucura
Hora sem sono e sem paz
Qual é o teu nome, pergunto,
Teu nome de grão-senhor
Como é que eles te chamam
Lá na Terra de Ninguém
De onde todo corvo vem?"
Disse o Corvo, "Nunca Mais".
9
Fiquei pasmo, aturdido
Ouvindo um bicho tão feio
Falar com tanta clareza
Mesmo sem fazer sentido
Pois qual é a criatura
Um mortal entre os mortais
Que já viu, em noite escura
Um animal, uma ave
Chegar em hora tão morta
Voar pra cima da porta
Pousar em cima de um busto
E se chamar "Nunca Mais"?
10
Mas o Corvo ali sozinho
É só isso que falava
Como se toda a sua alma
Coubesse numa palavra
Numa palavra cabia
Pois mais nada ele dizia
E nem uma pena negra
Aquele bicho mexia.
Até que eu falei baixinho,
"Outros amigos partiram
Se foram cedo demais
Este vai partir na aurora
Qual meus sonhos de rapaz,
Que também já foram embora."
Disse o Corvo: "Nunca Mais!"
11
Espantado com a resposta
— Só ela quebrava o silêncio —
Com certeza, pensei eu,
Ele só fala de cor
Com outro mestre aprendeu —
— Alguém que muito sofreu
Destino amargo demais
E já morta a Esperança
Só lhe restou na lembrança
Uma triste litania
Feita de melancolia,
Feita só de "Nunca Mais".
12
Mas o Corvo, sério e grave
De novo me fez sorrir
Puxei cadeira e almofada
Sentei diante da porta,
Da porta, do busto e da ave.
Recostado no veludo
Pensei bem naquilo tudo
O que ele queria dizer?
Qual a intenção desse bicho
Tão negro, tão magro, tão feio
Triste e solene demais,
Ave de mau agouro
Que entrou no meu devaneio
Grasnando seu "Nunca Mais"?
13
E fiquei ali pensando
Só pensando, sem falar.
Os olhos do bicho, em brasa,
No peito me penetravam
E o meu mais fundo queimavam.
Mergulhei num devaneio
A cabeça para trás
Reclinada, a descansar
No macio da almofada —
Roxo veludo brilhante
Com seu reflexo cambiante,
Roxo veludo brilhante
Que ela não vai mais tocar
Não tocará nunca mais!
14
Nisso o ar ficou pesado
Com o incenso perfumado
De serafins que entravam
E bem de leve pisavam
No meu quarto atapetado.
Gritei "Desgraça! O teu Deus
Com esses anjos mandou
Um santo remédio pra dor
Alívio do sofrimento
O bendito esquecimento
Pra não lembrar de Leonor!
Bebe logo esse remédio
E não penses nela mais
Esquece tua Leonor!"
Disse o Corvo, "Nunca Mais!"
15
"Profeta, bicho ruim!
Mas profeta mesmo assim
Sejas pássaro ou diabo
Se o Tentador te mandou,
Ou se alguma tempestade
Nestas plagas te jogou
Ave noturna, soturna
Mensageiro do Terror
Aqui nessa terra deserta
Nessa terra enfeitiçada
Nesse lar mal-assombrado
Mal-assombrado de Horror
Te imploro, diz a verdade!
Um bálsamo ali existe?
Fala comigo, ave triste!
Responde, se és capaz!"
Disse o Corvo, "Nunca Mais!"
16
"Profeta, bicho ruim!
Mas profeta mesmo assim
Se és pássaro ou diabo,
Pelo Céu que contemplamos
E pelo Deus que adoramos
Responde a esta pobre alma
Carregada de pesar!
Existe um lugar no mundo
Mesmo no abismo profundo
Mesmo distante demais
Onde minh’alma cansada
Doente de tanta dor
Um dia volte a enlaçar
A jovem santificada
A donzela bem-amada
Que os anjos chamam Leonor?"
Disse o Corvo, "Nunca Mais".
17
"Seja este o nosso adeus,
Pássaro, ou inimigo!"
Gritei eu me levantando,
"Volta pra tempestade
Pras negras margens da Noite
Sem deixar nenhum sinal
Nenhuma pena, nem sombra
Dessa mentira, esse mal
Que a tua alma falou!
Deixa a minha solidão!
Deixa o busto de Minerva!
Solta meu coração!
Sai fora da minha porta
Vai embora daqui, ave torta
Vai sem olhar pra trás!
Disse o Corvo, "Nunca Mais!"
18
E ali está o Corvo, parado
Sempre quieto, só pousado
No busto de Palas Atena
Acima da minha porta.
Pelos olhos mais parece
Um demônio ali sonhando.
A lâmpada alumiando
A sua sombra me traz,
E a minha alma da sombra
Que se arrasta pelo chão
Não se erguerá — nunca mais!
Tradução de Isa Mara Lando
* Esta é a versão integral do texto de apresentação desta tradução, da autoria de Isa Mara Lando:
Poe-tando o "Corvo"
No início de 2001 o prezado colega Haroldo Netto lançou um desafio na lista Litterati, de tradutores literários, da qual eu participava: fazer uma nova tradução do famoso poema "The Raven" de E. A. Poe. Minha vontade de tentar foi imediata: amo Poe desde a adolescência, já traduzi outros poetas, como Baudelaire, Emily Dickinson e John Lennon, com resultados razoáveis, e como todo o mundo, também cometi meus poemas de juventude. Além disso já traduzi dois contos de Poe, A Carta Roubada e Os Assassinatos da Rua Morgue (em edição bilingüe, Imago/Alumni). Estas traduções me pareceram bastante satisfatórias, mostrando que minha afinidade com Poe me permitia, pelo menos, tentar. Como disse Chico Buarque, "A melhor inspiração é a encomenda"...
Comecei relendo as consagradas traduções de Fernando Pessoa e Machado de Assis**. São belas, claro, sobretudo a de Fernando Pessoa, fiéis ao tom erudito do original, com belos momentos como "Noite, noite e nada mais" (FP). Mas por serem já antigas, e ambas de dicção lusitana, achei-as duras, dificultosas, com palavras e frases que para um leitor brasileiro de hoje causam espécie e distanciamento, como:
(FP) "Tens o aspecto tosquiado"
"Por certo", disse eu, "aquela bulha é na minha janela."
"Libertar-se-á... nunca mais!"
(MA) "Vou sentar-me defronte ao Corvo magro e rudo"
"Onde as tranças angelicais / De outra cabeça outrora ali se desparziam / E agora não se esparzem mais."
Já foi dito que cada geração traduz de novo os clássicos, e é bom que assim seja. E ao constatar que circulam não só estas como diversas outras traduções do poema, em verso e prosa, decidi fazer uma tentativa.
* * *
Alguém já disse que o primeiro verso de um poema é dado pelos deuses, ou soprado pelas musas. E de fato, ao mergulhar em "Once upon a midnight dreary..." ouvi distintamente,
Meia noite, noite escura
Hora de sombra e loucura...
Um bom começo – sonoro, evocativo, e em redondilha maior, ritmo tão natural e familiar aos ouvidos brasileiros. Já estava dado o tom, o diapasão, o rumo da coisa toda. Outros versos logo surgiram:
Bate, bate bem de leve
Com batidas repetidas
(Era o Corvo, com certeza, batendo à minha porta, com batidas decididas, numa aliteração quase onomatopéica.)
Entrando na segunda estrofe ganhei outro presente das musas: de bandeja, a rima remember /december, aliás aproveitada em muitas traduções:
Eu me lembro, bem lembro,
No triste mês de dezembro...
Um bom clima! O ritmo era hipnótico, e o espírito de Poe, nobre e solene, começava a respirar e ganhar vida. Surgia diante de mim a noite negra, o quarto atapetado, o poeta sofredor, a sombra da Casa de Usher, o gato emparedado, o coração delator. Fui ficando empolgada. E foi então que comecei a ouvir os versos na voz de Alceu Valença, e também dos geniais repentistas nordestinos que certa vez assisti num desafio, numa feira no Ceará. Foi Alceu Valença quem me soprou,
Jóia rara, tão fugaz,
Leonor, pra nunca mais!
"Leonor" – eis uma solução simples e eufônica para "Lenore", mais maleável do que a "Lenora" de Machado. (Fernando Pessoa – que curioso! – deixa a donzela sempre "nameless" – "sem nome aqui jamais".) "Leonor", um nome curto, rima com dor, horror, terror – tudo que eu precisava.
O poema ia assim ganhando forma, com dicção marcadamente brasileira. Acolhi essa vertente de braços abertos: o terror não tem pátria, e pode-se sentir em qualquer lugar, seja no Rio (foi no Rio), em Londres, Baltimore ou Fortaleza, o pavor de ver entrar pela janela – meia-noite, noite escura, hora sem sono e sem paz – uma negra criatura que só fala "Nunca Mais".
Continuei assim num semi-transe, meio que servindo de "cavalo", como dizem na umbanda, para os repentistas cearenses, mais Fagner, Chico Buarque, Chico César... No final da estrofe 4 Alceu Valença soltou um nítido grito, pontuado por um forte acorde dissonante do violão de doze cordas:
"Escuridão – nada mais!"
O poema bradava, abria as asas, ganhava força, vigor, vida própria. Enquanto a madrugada avançava eu ouvia, mentalmente, as vozes brasileiras. E sobretudo, lá no fundo da mente, o ritmo constante de um poema que amo muito, "A Morte de Madrugada", de Vinícius de Morais:
Uma certa madrugada
Eu por um caminho andava
Não sei bem se estava bêbado
Ou se tinha a morte n’alma....
...Com o peito de dor rompido
Me quedei, paralisado.....
Prossegui embalada pelas redondilhas, dando-me liberdade, sem acompanhar o esquema original das rimas, rimando como dava e quando dava, procurando captar o clima, a dramaticidade que sobe num crescendo incessante, até chegar à estrofe 15, onde de novo a voz de Alceu Valença lança outro brado de angústia:
Profeta, bicho ruim –
Mas profeta mesmo assim!
– chegando ao clímax na 17, onde o poeta solta esses gritos dilacerados,
Deixa a minha solidão!
Deixa o busto de Minerva!
Solta meu coração!
Sai fora da minha porta
Vai embora daqui, ave torta
Vai sem olhar pra trás!
São os célebres versos de Poe -
Leave my loneliness unbroken! – quit the bust above my door!
Take thy beak from out my heart, and take thy form from off my door!
A solução de Fernando Pessoa é sonora, mas nela não se vê bico ou garra:
(FP) Minha solidão me reste! Tira-te de meus umbrais!
Tira o vulto de meu peito e a sombra de meus umbrais!
Machado de Assis aqui foi menos afortunado, pelo menos para o gosto brasileiro moderno:
(MA) Tira-me ao peito essas fatais
Garras que abrindo vão a minha dor já crua.
* * *
Depois dessa memorável noite – que no meu caso não foi escura, mas iluminada por uma bela lua cheia entrando pela janela – passei uns bons quinze dias obcecada, burilando os versos sem parar. Já desligada do original, sentia o poema em português ganhando corpo e adensando a alma – uma alma vibrante, inteira, própria, que já se revelara desde as primeiras palavras que me foram sopradas.
Fiquei, enfim, passavelmente satisfeita com o resultado, como acredito que deva estar também Mr. Poe, na excelsa nuvem em que hoje habita. Declamado em voz alta o poema em português funciona, faz bom efeito. A maior crítica que lhe faço é que, bem ao contrário do original, as rimas que consegui são pedestres – porta, torta, morta; nunca mais, demais, jamais. Há também algumas licenças poéticas – dois acréscimos ao original e um verdadeiro erro conceitual, que deixo por conta do leitor descobrir, mas que a meu ver não atrapalham, só ajudam.
Enfim, na frase de Cícero, "Feci quod potui, faciant meliora potentes" – "Fiz o que pude, faça melhor quem puder".
Aqui vai, então, meu Corvo, "que cobri de redondilhas" numa noite de luar. Espero que bata as asas, entre por muitas janelas e assombre várias casas.
** Essas e outras traduções do poema se encontram facilmente na internet mediante as palavras-chave "poe corvo". As ilustrações de Gustave Doré, uma para cada estrofe, também estão disponíveis em vários sites.