4.12.03

Post Scriptum #91

O Manuel Resende está de regresso aos poemas. Com uma extraordinária sequência de dois textos de Yorgos Seféris (1900 – 1971), traduzidos directamente do grego e reunidos sob o título de Gymnopedías. Este é o primeiro poema dessa sequência.
De Seféris existe já em português uma conhecida antologia da responsabilidade de Joaquim Manuel Maglhães e Nikos Pratisinis, editada pela Relógio D’Água (1993). Estes poemas porém não entraram nesse livro e, presumo, continuavam inéditos na nossa língua.
As notas são também de Manuel Resende.



GYMNOPEDÍAS


"Geologicamente, Santorini é uma combinação de pedra-pomes e caulino, de cujo golfo... foram surgindo ilhas, que nele voltavam a mergulhar. Foi berço de antiga religião, de cujos ritos faziam parte certas danças líricas de ritmo austero e pesado, a que chamavam gymnopedías."

Guia da Grécia


I.
SANTORINI


Debruça-te, podendo, sobre o escuro mar, esquecendo
O som de uma flauta sobre passos nus
Que pisaram o teu sono na outra vida, submersa.

Escreve, podendo, na tua derradeira concha
O dia, o nome, o lugar;
E lança-a ao mar, para que se afunde.

Vimo-nos nus sobre a pedra pomes
Fitando as ilhas que emergiam,
Fitando as ilhas rubras que mergulhavam
No seu sono e nosso sono.
Aqui nos vimos nus, segurando
A balança que descaía para o lado
Da injustiça.

Calcanhar do poder, querer sem sombras, amor medido,
Ao sol do meio-dia, planos que amadurecem,
Estrada do destino com o toque de moça mão
Sobre o ombro;
Na terra que se vai dispersando e não resiste,
Na terra que já foi nossa,
Afundaram-se as ilhas, em cinza e ferrugem.

Altares demolidos
E amigos olvidados,
Folhas de palmeira na lama.

Deixa, podendo, que as tuas mãos viajem
Aqui na curva do tempo com o barco
Que aflorou o horizonte.
Quando o dado embateu na lousa,
Quando a lança embateu na couraça,
Quando o olhar conheceu o estrangeiro
E o amor secou
Em perfuradas almas[1];
Quando olhas em redor e encontras
A toda a volta, só pernas vindimadas;
A toda a volta, só mãos mortas,
A toda a volta, só olhares escurecidos.
Quando já não te resta sequer escolher
A morte que buscavas para ser tua
Escutando um grito

Mesmo que fosse o do lobo,
O teu direito;
Deixa, podendo, que as tuas mãos viajem
Desprende-te do tempo infiel
E soçobra:
Soçobra quem ergue as grandes pedras.


[1] Sócrates, no Górgias de Platão diz que as almas dos intemperados são
furadas e deixam escapar o seu conteúdo (NT).


Santorini é uma ilha vulcânica, e é um dos locais onde se diz que se situava a Atlântida. A ilha foi submersa por uma erupção, mas voltou a reaparecer. Seféris que nasceu em Esmirna e teve de se exilar para a Grécia devido à expulsão pelos turcos da população helénica da Ásia Menor, e, mais tarde, da própria Grécia devido à ocupação alemã, fala muito destes mundos desaparecidos.


Tradução inédita de Manuel Resende.