O Povo é Sereno #24
Era mais do que previsível. O texto que escrevi sobre a questão do financiamento dos escritores, na sequência de um post de Pacheco Pereira, no Abrupto, gerou vários comentários, a favor e contra. Esta é a contribuição de Manuel Resende.
Entretanto, também há reflexões sobre este assunto em A Natureza do Mal, no Aviz, no Desejo Casar, no Respirar o Mesmo Ar e no Blogue de Esquerda.
Mais opiniões serão bem-vindas. Usem, por favor, a grande caixa de comentários: quartzo@sapo.pt.
"Não acredito em génios que precisam de dinheiro público para criar. Não acredito em escritores que precisam de um cheque para escreverem uma página inesquecível. Não acredito em escritores camarários. Não acredito em poetas do regime. Não acredito em escritores que preenchem formulários de candidatura para criar um livro de poemas. Não acredito num país que tem que pagar para ter bons escritores. Na maioria dos casos, e estou plenamente consciente do que estou a dizer, estamos a subsidiar livros banais ou sofríveis."
Primeiro: nem só génios escrevem; a maior parte da literatura é constituída por obras medianas ou medíocres, por pequenos talentos e talentozinhos, imitadores e aparentados e nem isso; ora, também disto é feita. Se estamos à espera dos génios, não há literatura (bem, também se calhar não se perdia nada).
Segundo: só conheces os génios que escreveram e publicaram livros; quantos não o puderam fazer pelas cruéis condições em que viveram? Só para lembrar um que me é muito caro ao coração: António Maria Lisboa, que nos deixou meia dúzia de versos fulgurantes, o que não nos teria deixado se não tivesse morrido de tuberculose?
Terceiro: a questão do cheque é muito importante na nossa sociedade. Chateaubriand escreveu as "Mémoires d'Outre-Tombe" à custa dos cheques de uma sociedade anónima que se constituiu para o financiar, ficando-lhe com os direitos. Etc.
Quarto: quanto aos poetas camarários; Adília Lopes, Nuno Moura, Al Berto, J.E. Agualusa, M de Carvalho são-no?
Quinto: os poetas de regime. Onde estão? Só o estão se considerarmos que mais de metade seguramente dos escritores já levou com uma bolsa em cima ou outra espécie de subsídio. São todos bolsados, e como tal bolsaram os seus livros. Assim, deve haver entre eles algum escritor de regime.
Sexto: obras banais ou sofríveis. Meu caro, a maior parte das coisas que se publicam são obras banais ou sofríveis, menos as da Rita Ferro, eh eh, que essa não precisa de bolsas. Mas não creio que esta frase tua seja muito feliz. Voltanto aos mesmos exemplos, Adília Lopes, Nuno Moura, Al Berto, escreveram obras banais ou sofríveis?
Pessoalmente, nunca tive subsídios, nem bolsas, porque não quero, mas por ferocidade contra uma sociedade que é inimiga da poesia; ela não quer nada de mim, eu não quero radicalmente nada dela, a não ser para lhe torcer o pescoço. Temo-nos dado bem os dois neste entendimento.
Não consigo é tragar certa gente que, demagogicamente, quer insinuar que toda a intervenção do Estado reduz os intervindos a funcionários públicos, esquecendo que nos países que tomam como modelo (essencialmente os anglo-saxónicos) existe essa coisa inenarrável que são os poetas laureados, encarregados de fazer versos à rainha, na Inglaterra, e à república, nos EUA (aqui não há só os poetas laureados federais, mas também os estaduais).
Depois, nesse tipo de regimes, há todo um esquema de conferências e cursos fictícios nas universidades para dar dinheiro aos coisos líricos. E, last but not least, esta é a mesma gente que achará muito bem o mecenato, porque são privados a dar o cacau: ora, donde vem o cacau? Dos impostos não pagos pelos mecenas: numa palavra, estes apropriam-se privadamente dos dinheiros públicos para escolherem a seu bel-prazer, sem qualquer tipo de controlo, a arte que querem apoiar; ao menos nas bolsas, há comissões responsáveis, constituídas por pares escritores, saídos de organizações por assim dizer profissionais, há regras do jogo que as instituições representativas podem fixar ou alterar.
Num país que dá milhões para estádios de futebol ("indústria" onde correm rios de dinheiro), é indecoroso protestar contra as migalhas distribuídas aos vates e correlativos. Dir-me-ão que também esses subsídios devem ser cortados, e fazem bem dizer, porque preciso de me rir um bocado: eu sempre queria ver, no país de fátima, futebol e fado alguém cortar subsídios aos futebóis que, como diz o director do Público, faz falta para estimular a "nossa" deles auto-estima.
E não é só o futebol, são os desportistas de alta competição, a quem "devemos" (bem, eu não devo nada) duas medalhas de ouro olímpicas e outras tantas de cortiça, são as zonas francas, são, eu sei lá.
E um país que não consegue ter literatura sem bolsas não é para acreditar? Isto merecia um grosso tomo de análises. Mas limito-me ao seguinte: quem escreve em português, tem um mercado muito restrito, que não se pode comparar com o da língua inglesa. Meio por cento da população dos EUA é ainda mais de um milhão de pessoas; se meio por cento lesse poesia, as tiragens seriam fabulosas. Em Portugal, nunca haverá um mercado como este, mas os livros têm os mesmos custos de fabrico. Se deixarmos os mecanismos de mercado funcionar por si, estamos bem tramados.
(Manuel Resende)
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