31.5.04

Post It #147

Não resisto a partilhar este texto delicioso do Sérgio Faria, inspirado num termo recorrente da gíria dos arquitectos.

Acho uma gracinha o jargão dos arquitetos para justificar uma obra invasiva: eles dizem que a obra "dialoga". Já disse o carnavalesco Ohtakinho Trinta, nosso Frank Gehry, que seu Hotel Renaissance "dialoga" com as árvores da Alameda Santos [SP]. E que seu Palácio da Carambola "dialoga" com os entornos da Zona Oeste. Pois na apresentação de seu projeto, o Paulo Mendes da Rocha informou que o mondrongo da Praça do Patriarca "dialogava" com a vizinha igreja de Santo Antonio, tombada pelo Condephaat. Se "dialogava" mesmo, eu imagino o diálogo:

- E aí, Santo Antonio?
- Fala, Paulo
- Gostou do meu projeto?
- Ele esconde a minha igreja, Paulo
- Não é bem assim, ele dialoga...
- Vai tomar no seu cu, Paulo.

Post It #146



Livros grátis.

"4 canções". Com texto de innersmile e imagens (excelentes) de Mário Pires. Basta fazer o download.

Post It #145

My life in the world of books began with lunch, a menu gastronomique of mortification.

As memórias de Robert McCrum, editor de literatura do Observer. Um pequeno aperitivo para os apreciadores de autores contemporâneos de língua inglesa.

Post Scriptum # 247



CHUVISCO DE MOSCOVO
Óssip Mandelstam

Reparte avaro o friozinho
de pardal, pluma que tremeluza -
um pouquinho a nós e à folhagem,
um pouquinho às ginjas na bandeja.

E cresce o referver no escuro -
os farfalhos lentos de chá
regalam-se no verde escuro
como um formigueiro do ar.

O vinhedo de gotas frescas
na erva pinga buliçoso:
qual viveiro de frio aberto
nesta campónia Moscovo.

Tradução de Nina Guerra e Filipe Guerra.

[Imagem: Yuri Pimenov, Nova Moscovo, 1936. Respigada no Abrupto: da sua excelente série "Os Dez da Tretyakov".]

Post It # 143

TrackBack

A propósito dos excertos do manual de civilidade e etiqueta que têm surgido no Quartzo, lembrei-me de um livrinho que me ofereceram (que eu não compro porcarias destas) aqui há anos. Chama-se "Manual de Civilidade para Meninas" e tem uma capa cor-de-rosa bébé com uma borboleta - só que é da Fenda. O autor, Pierre Louÿs, nasceu em 1870 e morreu em 1925, sifilítico.

Aqui. E com mais para ler.

O Povo é Sereno # 104

A DEPRESSÃO NACIONAL



Tomei há pouco tempo conhecimento da existência em Portugal de um movimento destinado a restaurar o optimismo nacional e a elevar a estima dos portugueses, levando-os a afastar o seu "pessimismo" e a esquecer o que há de negativo em Portugal. Perante estas boas intenções, pensei: Tivemos momentos de esperança, como as revoluções de 1820, 1910 ou 1974, mas sempre que avistámos raios de luz, a inércia foi fazendo o seu trabalho, ao colocar no governo e na administração pessoas cuja competência se concretiza apenas quando governam os seus interesses e os da sua clientela política e social, institucionalizando (através da justiça e da fiscalidade, por exemplo) oligarquias corruptas, quando não autênticas plutocracias.
É difícil não se pensar assim quando se é cidadão português e não se tem barriga cheia. Infelizmente, o conjunto dos exemplos de boa conduta e de exigência social existentes em Portugal nunca poderá tranquilizar os nossos concidadãos. Quem pode estar tranquilo quando tem sobre a cabeça a ameaça de um Estado abusador e negligente? A fiscalidade sobrecarrega a classe média para aliviar os poderosos. Por todo o lado é promovida gente sem currículo nem competência, mas com mal-disfarçada vontade de "subir". O mérito é desvalorizado na administração pública. O sistema de ensino tenta camuflar o insucesso. Os direitos e ansiedades dos cidadãos são desprezados. A gestão do território em termos ambientais, urbanísticos, económicos e culturais é caótica. Há empresários que impunemente exploram o trabalho através da chantagem, que fecham ou mudam a localização das suas empresas. Sectores estratégicos da vida nacional são colocados em mãos privadas. O governo tenta diminuir a despesa pública cortando nos que já pouco têm, "esquecendo" que melhor seria aumentar a receita taxando os que mais ganham.
Os exemplos são múltiplos e variados. Claro que existem muito boas práticas nalguns locais - mas chegará tão curto lenço para cobrir a larga face de tão grande negrume?


Ruy Ventura

Post Scriptum # 246

Para os delicadinhos da silva (3ª parte)



Do "Tratado de civilidade e etiqueta", de Mireille de Gencé (1912).

(...) Quando uma pessoa exalou o último suspiro é ao seu parente mais próximo que incumbe o supremo dever de lhe cerrar as pálpebras, mas quando a dor é profunda por vezes sucede que os parentes próximos não têm a energia precisa para cumprir esse lúgubre dever, que uma pessoa amiga pode então tomar a seu cargo. Ao cerrar-se as pálpebras do falecido, convirá estender-lhe os membros antes que fiquem rijos devido à morte. Por último, a suprema toilete: veste-se-lhe o melhor fato e estende-se depois no leito.(...) Anda-se pelo quarto onde ele jaz com as maiores precauções e abafando o ruído dos passos.
(...) Se na rua uma senhora deixar cair um objecto, o cavalheiro deve apanhá-lo e entregar-lho com amabilidade. Não deve aproveitar o pequeno gesto para entabular conversa. Nunca se deve apanhar um lenço ou um pente. O excesso de obséquios é de evitar. Na igreja não se deve sorrir às pessoas que entram ou fazer comentários enquanto o sacerdote fala. Convém não esquecer que o templo não é um teatro ou sequer um salão. Se não sabemos estar como devemos, é preferível não ir lá.
Ao entrarmos numa igreja devemos descalçar as luvas (...)".


Selecção e tradução de Nicolau Saião

28.5.04

Post It #142

Quem ainda se recorda de Mikhail Sholokov?
Ou Mikail Cholokov, para usar a grafia que foi adoptada no ocidente.

O Silêncio é de Ouro #87

O que é que um músico de jazz pode fazer com um trompete? Se o seu nome for Chet Baker (1929-1988), pode fundar uma religião. Ouça-se um disco seu e está lá tudo: o prazer e a angústia, o lado mais luminoso da vida e o mais obscuro, excesso e contenção. E decorridos vários anos sobre os melhores momentos da sua carreira, o seu estilo único continua a ser um dos mais imitados do jazz. "The Legacy" foi gravado poucos meses antes da sua morte e é uma espécie de súmula da sua arte. Ora ouçam.

Raul Silva

Começou o Corta!

Vai no Batalha # 20

Mais uma achega para o debate em torno do futebol. Este texto, sugerido pelo Ricardo Carvalho.

Post Scriptum # 245

Para os delicadinhos da silva (2ª parte)



Do "Tratado de civilidade e etiqueta", de Mireille de Gencé (1912).

"(...) O homem deve tirar o chapéu com um gesto natural, sóbrio e elegante se tal for possível. Descubram-se, então, quando cumprimentarem, mas não exagerem o gesto a ponto de tocarem com o chapéu no joelho.(...) Não deve mostrar-se o forro do chapéu.
Nos chapéus de feltro duro, pega-se pela aba. Nos chapéus que sejam leves ou moles, pela parte superior da copa.(...) Nunca deverá levar-se o chapéu mais abaixo do nível do ombro.
Ao cumprimentar com a cabeça, a inclinação do busto deve ser acentuada mas natural e sem rigidez e sem a pose pretensiosa do "adesivo", que se dobra a meio deixando pender os braços num gesto perfeitamente ridículo.
Quando as senhoras entram num salão, o dono da casa curva-se com tanta deferência como se fosse ele que entrasse em casa delas. Para com os homens o seu cumprimento é simples e cheio de afabilidade.
Não se cumprimenta mais duma vez a mesma pessoa com ligeiro intervalo, pois é preferível não atrair a atenção com repetidas saudações, que podem afigurar-se importunas.


Tradução de Nicolau Saião

Post Scriptum # 244

Celso Emilio Ferreiro
(Galiza, 1914-1979)




O PROFETA

Pouco antes de morrer
disse ele ao povo:
Deus te dê ira,
que paciência tens de mais.

Tradução de Pedro da Silveira.

27.5.04

Post It #141



Para os apreciadores das teorias da conspiração, há um interessante artigo do novelista Gary Indiana, no Village Voice.

Post It #140

Ontem, a festa também foi verde.
O Blog far niente, outro dos nossos blogues de leitura diária, fez um ano. Parabéns.

Agenda

Seamus Heaney está hoje em Lisboa, na Casa Fernando Pessoa. E também está aqui e aqui.

Post Scriptum # 243



Falavam as duas amigas:
- Para quê andar com tantas seduções? Com muitas seduções [os homens] assustam-se... Parecia que íamos enforcá-los com os nossos cabelos compridos - dizia Marien.
- Mas acreditas mesmo que eles temem a serpente da nossa trança? - expunha Sophie.
- Claro que sim... Julgavam-na a serpente do paraíso... Nós assustámos-los. Tem de se entrar na batalha com eles e fazê-los saber que temos a silhueta dos seus amiguinhos, e além disso, temos o que eles não têm...
Sophie riu-se com vontade e depois disse do alto da sua opulência de mulher de exuberância e macieza ostentosas:
- Mas não compreendes que eu não posso dissimular que sou mulher?
Realmente a macia e opulenta Sophie não podia dissimular a sua feminilidade.
- Eu, se cortasse o cabelo, pareceria uma menina dessas que robusteceu e fez crescer o tifo desesperadamente...
Marien olhou-a pensativa, e depois disse:
- Tu estás bem... Tu atrais francamente os homens. Mas eu sou apenas mais uma dessa multidão de mulheres de forma esbelta e sóbria, corria mais o perigo de não ser compreendida. Assim poderei dar-lhes batalha [vestindo-me como um homem]. É tão fácil transformar-se em homem, e tão difícil ser mulher!

A Mulher Vestida de Homem
Ramón Gómez de la Serna, 6 Falsas Novelas.

Post Scriptum # 242

Para os delicadinhos da silva (1ª parte)



O mais célebre livro de boas-maneiras é, provavelmente, o "Tratado de civilidade e de etiqueta" que sua autora, a Sra. Condessa de Gencé - chamada em solteira Mireille de Bernalle - deu à luz no ano da graça de 1912, em Paris.
A nossa Mireille, que enquanto moça parece que era um pedaço de madame, para além de ser daquel'arte tinha também muito jeito para a afectuosa frequentação de fidalgos, pelo que apanhou em voo o garboso Henry de Gencé, se calhar no fim de um passeio a cavalo pelas coutadas do excelente titular, que como perfeito "sportsman" era grande apreciador de garranos, potros e éguas.
E como comprava tudo já feito - como se diz na minha região - para ocupar o tempo que lhe sobrava e em que o seu prezado consorte estaria entretido noutras cavalgadas, escrevicou o renomado tomo, que é uma delícia de leitura principalmente para quem goste de humor negro e, aqui entre nós, me custou os olhos da cara num alfarrabista do Quartier Latin.
A excelente condessa, inteiramente a sério, debruça-se com propriedade sobre temas tão excitantes como "o lenço de algibeira, o bocejo, o espirro, o cumprimento com a cabeça, com o chapéu, o aperto de mão" - e estes encorajadores itens fazem parte só dos preliminares, como refere com candura e juro que não estou a ser brejeiro - porque o que vem lá p'ra diante ainda é mais... mavioso: as "segundas núpcias, o enlace de uma senhora já com alguma idade" (como ela diz numa expressão "politicamente correcta" "avant la lettre"), "maneiras de proceder para com um morto", entre muitas outras vigorosas iguarias. Um delírio!
Nas próximas duas edições desta sub-rubrica dar-vos-ei inteiramente de borla alguns fragmentos das lucubrações da prezada Mireille, não só tendo em vista melhorar as vossas maneiras, que poderão estar precisadas, mas também para que os mais traquinas se possam divertir com proveito.
E, já agora, saibam que também o Jules Morot aqui há anos se debruçou sobre a etiqueta, tendo feito vir a lume um ramalhete de suculentas reflexões de que, lá para o Verão, também vos ofertarei algumas florzinhas.
Mas como o Jules é surrealista, preparemo-nos para esperar o pior...


Nicolau Saião



LENÇOS BRANCOS PARA MOURINHO.
Agora, sim. Já pode ir embora.

26.5.04

Cimbalino Curto #89



O PORTO TEM UM VEREADOR DA CULTURA. Esta é a principal conclusão de um exaustivo trabalho de investigação que o Quartzo, Feldspato & Mica levou a cabo ao longo dos últimos três anos. De facto, e embora os elementos de que dispomos sejam muito escassos, estamos em condições de assegurar que o vereador existe e chama-se Marcelo Mendes Pinto. Mais: de acordo com fontes próximas do executivo, e que obviamente solicitaram o anonimato, o dito vereador utiliza um gabinete no edifício da câmara. Infelizmente, e mau grado todos os esforços nesse sentido, não conseguimos identificar a natureza da sua actividade. Estamos perante um verdadeiro profissional. Pinto não deixa pistas.

25.5.04

Post It # 138



Finalmente. A Assírio & Alvim já tem um sítio. E, como é óbvio, vale bem uma visita. Destaque para o arquivo da Phala, com pequenos excertos de alguns números seleccionados da mítica publicação criada por Hermínio Monteiro.

(Via A Outra Voz)

Agenda

Quinta-feira, dia 27 de Maio, a não perder.

20h30: Sessão de abertura do Corta! Festival de Curtas Metragens do Porto, no Auditório da Biblioteca Almeida Garrett, Palácio de Cristal, no Porto.

22h30: Noite de poesia no Café Pátio, em Vila do Conde. Com a intervenção do performer António Pedro Ribeiro e de Armando Ramalho.

Post It # 137 (atrasado três dias)

No Mil Folhas, texto de Rui Catalão dedicado ao livro "Contos", de Franz Kafka, acabado de editar pela Assírio & Alvim, e com tradução do nosso Manuel Resende, com Álvaro Gonçalves e José Maria Vieira Mendes. Um dos contos incluídos neste livro é "Na Galeria", que aqui pré-publicámos, em Outubro de 2003.

Umbigo # 34

Foi por pouco. Graças a um compromisso inadiável com a construção civil, escapámos a um quase atentado à bomba, num café da Ribeira do Porto. Se Deus existe, ele está nestes pequenos detalhes.

Post Scriptum # 241



Muita gente deveria ler e digerir esta frase de Pessoa, retirada do seu "Heróstrato", livro muito perigoso e, por isto, tão pouco citado:

"A função da arte não é descarregar os nossos sentimentos: a arte não é um escoadouro, nem um esgoto."


Ruy Ventura

24.5.04

Post Scriptum # 240



Não à América de Bush, Rumsfeld, Condolessa, Colin Power e Cheney.

Sim à América de Walt Whitman, peito amplo, voz fraterna, poesia imensa, querendo amar o mundo inteiro nos seus versos.

Não à América que fez de cada americano um refém dentro de sua própria casa e fez do mundo inteiro refém do medo, por achar que a força resolve tudo.

Sim à América da imponderável Emily Dickinson, dos jogos verbais de Cummings ou da poderosa voz de Carl Sandburg falando da perplexidade do povo diante da História e num poema lembrou que houve um tempo em que o Czar tinha oito milhões de homens com fuzis e baionetas, que achava que nada poderia lhe acontecer e, no entanto, em 1914 e em 1917?


"A América que amamos." Excelente texto de Affonso Romano de Sant'anna, no jornal "O Globo" (disponível após registo).

Post It # 136

Se pensa que a poesia não serve para nada, pense de novo.

Cimbalino Curto #88

O Ricardo Carvalho sugere a leitura deste texto do DN dedicado a dois estudos recentes efectuados junto das populações do Porto e Gaia sobre qualidade de vida. As conclusões pouco surpreendem. Mas há alguns dados curiosos que vale a pena conhecer. Por exemplo, de acordo com um dos documentos, há apenas quatro domínios em que o Porto obtém vantagem em relação a Gaia: espaços de lazer, infra-estruturas desportivas, oferta cultural e animação de rua. Em todos os outros indicadores, nomeadamente espaços verdes, praias, água, transportes, oferta comercial, limpeza, segurança, habitação e até, imaginem, urbanismo, os portuenses estão muito mais insatisfeitos. Sabendo que Gaia é o que é em termos de qualidade de vida, dá que pensar. Ou não?

Post Scriptum # 239

COMO NAS LIMPEZAS DA PRIMAVERA.



O mundo podia ficar bem melhor se efectuássemos umas varridelas no seu perímetro psicológico, no imaginário quotidiano, na verdade muito palpável. À guisa daquela limpeza de Primavera que mais ou menos por esta altura do ano as donas-de-casa operosas costumavam/costumam levar a efeito no "home sweet home".
Pois. E para que o dito imaginário comece a escarolar-se e a recompor-se, é preciso entre outras coisas:
- que ao princípio deixe de ser apenas o Verbo; junte-se alguma música; de preferência um pouco de flamenco
- que os egípcios deixem de andar de lado
- que o Brel largue a sujeita de vez; já não se aguenta aquele contínuo miado do "ne me quitte pas"
- e, já agora, que volte à vida, que faz muita falta nestes tempos inóspitos
- que o pão deixe pela manhã de ser comido com manteiga; o queijo de Nisa e a pasta de fígado de La Serena merecem uma oportunidade
- que a Feira do Livro do Porto se realize em Lisboa e a de Lisboa no Porto
- que os filmes lusitanos passem a ser filmados em Neptuno, com excepção dos do João Canijo e duma senhora cujo nome não me ocorre de momento
- já agora, excepcione-se também o M. de Oliveira e o Martin Scorsese apesar de não ser um homem do norte
- que o tal das escritas fenomenais (será necessário nomeá-lo?) se ponha a levitar
- que a política portuguesa seja encerrada para obras
- que os portugueses passem a ser espanhóis seis dias na semana; e que o inverso também seja verdadeiro
- que os poetas americanos finalmente consigam ser tão bons como os ingleses
- e, finalmente, que o Brel se reconcilie, mas desta vez deixe de ser titaúcha.


Nicolau Saião

Post Scriptum # 238

Paul Fort
(França, 1872-1960)




SONHO DE UMA NOITE DE VERÃO

A rosa livre dos outeiros saltou de júbilo esta noite, e logo as rosas dos canteiros, pelos jardins, umas às outras:

"Saltemos, com joelho ligeiro, por cima da grade, irmãs. O regador do jardineiro não vale a névoa das manhãs."

E eu vi, na noite de Verão, de mil jardins saltando a grade, as rosas indo em procissão atrás da rosa em liberdade!

Tradução de Pedro da Silveira.

Adenda:
Mais Paul Fort no blogue do Rui Almeida.

21.5.04

Post Scriptum # 237

Terceiro e último poema de "Spoon River", a obra-prima de Edgar Lee Masters (E.U.A., 1869-1950).



DOUTOR MEYERS

Nenhum homem, a não ser o doutor Hill,
fez mais do que eu pela gente desta vila.
Todos os doentes, os feridos, os incautos
e aqueles que não podiam pagar vinham sempre ter comigo.
Eu era caridoso, o complacente doutor Mayers.
Tinha saúde e rendimentos confortáveis;
tinha a bênção de uma boa esposa, filhos crescidos,
todos casados e bem na vida; era feliz.
Então, certa noite, Minerva, a poetisa,
veio até mim com o seu problema, a chorar.
Tentei ajudá-la, mas ela morreu.
Fui processado, os jornais caíram-me em cima,
a minha mulher morreu de coração despedaçado,
e uma pneumonia acabou comigo.

Tradução de José Miguel Silva.

Post It # 135

"Iraque: uma novela policial". De Gerhard Schröder.
Em breve, numa livraria perto de si.

O Silêncio é de Ouro # 82

O século XX está recheado de grandes intérpretes e virtuosos do jazz. Mas poucos pertencem a esse restrito grupo de músicos que efectivamente mudaram a sua história. Thelonious Monk (1917-1982) é seguramente um deles. Considerado por muitos como um pianista muito difícil, Monk foi um dos pioneiros do bebop, juntamente com Parker e Gillespie. Gravou poucos discos, razão pela qual este "Big Band and a Quartet" é absolutamente imprescindível. Gravado ao vivo no Philharmonic Hall, de Nova Iorque, em Dezembro de 1963, é uma autêntica antologia de momentos memoráveis, a solo, com o seu quarteto ou acompanhado pela big band. Sem dúvida, um dos grandes.

Raul Silva

Post It # 134

Ninguém é perfeito. Incluindo o Super-Homem.

For America's multimillion-dollar Superman industry, it's a serious problem. He debuted in the 1930s, when Americans liked their heroes like they liked their steaks: tough, thick and all-American. Nowadays we prefer our heroes dark and flawed and tragic.

20.5.04

Post Scriptum # 236



Roberto Juarroz é um poeta que nos assombra com as suas propostas, que nos mergulha no silêncio com a sua voz, para melhor olharmos o mundo que nos faz crescer interiormente. Quando, por exemplo traduzimos as suas máximas. Assim:

"Desbaptizar o mundo,
sacrificar o nome das coisas
para ganhar a sua presença."

"Entre a vida e a morte
há umas plantas pisadas
por onde ninguém caminhou nunca."

"Talvez todo o diálogo
não seja mais que a aprendizagem
ou quiçá o eclipse de um monólogo."

"(...) toda a oração é autónoma do seu destinatário
e pode dirigir-se até a uma pedra do caminho."


Ruy Ventura

O Povo é Sereno #99

Imagens sobre imagens. Caudais de imagens. Mercadorias. Homens-mercadoria. O consumo é a ilusão da escolha. O consumo é o fim da História. Prova, mastiga, deita fora. Mercadoria. Tu és a mercadoria. Compra e vende-te. Estás à venda no mercado global.
Imagens sobre imagens. Fazes parte do espectáculo. The show must go on. Consomes e és consumido. Nos bares, no autocarro, no emprego, na escola, na televisão. Cinco minutos de fama a bater palmas sentado na décima fila do "talk-show". Dás o cu por aparecer no ecrã. O mediático substitui o real.
Consome, corre atrás da imagem, do quadro idílico que a propaganda vende. Da gaja boa do anúncio de automóveis. Da felicidade televisiva. Consome, prova, mastiga, deita fora e torna a provar. É o ciclo da mercadoria, do produto supérfluo. Faz amor com a TV. A aldeia global a teus pés. O Grande Irmão vela por ti. O grande capital factura e avança. O noticiário vomita tricas politiqueiras. A bola rola no Estádio. É disto que o povo gosta. É isto que o povo come. É isto que o povo consome. São as tetas da alienação, como diz a canção dos Mão Morta.


António Pedro Ribeiro

Señor Tallon #57

Corrigenda

No texto anteriormente dado a lume - a carta do Sr. Dr. H.P.Lovecraft - havia um erro grosseiro de que nos penitenciamos e que vamos já emendar: o dr. Santana Lopes não se chama, obviamente, Segismundo Santana Lopes e sim Benvindo Santana Lopes, como o mesmo aliás não se esqueceu de apor num cartaz sobre o Euro recentemente emitido pela Câmara a que dignamente preside.
Aqui fica, respeitosamente, o esclarecimento que se impunha.


Nicolau Saião

19.5.04

Señor Tallon #56

Uma viagem pelos espaços de sociabilidade ao longo da história. Uma lição de Zé Povão, hoje, na caixa que mudou os blogues.

Post It # 133

Repito. Se há um blogue que merece ter 100 milhões de leitores, esse blogue é este.

Agenda

Hoje à noite, a partir das 21h30. Debate no Auditório Municipal de Vila do Conde em torno do tema "20 anos de poesia, gerações perdidas, gerações achadas". Participações de João Luís Barreto Guimarães, Inês Lourenço, Ana Luísa Amaral, Jorge Melícias e João Rios. O debate será moderado por Rui Lage.

Cimbalino Curto #87

Começa hoje mais uma edição da Feira do Livro do Porto. O costume: tantos e tantos pavilhões, tantos e tantos volumes (convém quem sejam números bem sonantes), numa "grande celebração do livro" e do ridículo desconto de 10%.

Post Scriptum # 235

Recordando Jorge Luís Borges, nos seus 105 anos.



No seu célebre ensaio "O jogo dos possíveis", onde analisa a diversidade do mundo vivo, diz-nos a dada altura François Jacob que "é provavelmente uma exigência do espírito humano ter uma representação do mundo que seja unificada e coerente. Na sua falta aparecem a ansiedade e a esquizofrenia". Em seguida, referindo que neste campo a explicação mítica geralmente ultrapassa a científica, Jacob esclarece que tal se deve ao facto de que os sistemas religiosos ou mágicos englobam tudo, ao passo que a Ciência só opera localmente, através duma experimentação pormenorizada sobre fenómenos que consegue circunscrever e definir. Mas o espírito humano tem exigências de outra ordem, que não se inscrevem na explicação científica nem na fideísta.
É geralmente aceite, tanto pelos escritores como pelos leitores devotados, que Borges estará indubitavelmente entre os maiores autores do nosso tempo. Do nosso tempo vivo, apesar de ele estar fisicamente morto. A Academia Sueca, que já provou por variadas vezes ter da arte e da literatura uma visão que só a ela envergonha e define, nunca concedeu a J.L.Borges o Prémio Nobel, apesar de o escritor ter sido, durante anos, uma espécie de candidato perpétuo. Não lhe perdoava o desassombro de algumas observações - e convenhamos que o Nobel nenhuma falta fazia a Borges. É que nisto de prémios, os nobeis passam e os génios ficam.
Mas "le poète a toujours raison", como canta Jean Ferrat. Serve dizer: escreve direito por linhas tortas. Pois não fora o mesmo Borges que muitos anos antes, numa entrada da Enciclopédia editada na sua querida Buenos Aires, propusera como hipótese de cenário para a sua morte a mesma Genebra onde veio a falecer? É que as explicações míticas, ouço dizer-me ao bichinho do ouvido Roger Bacon, por vezes coincidem com a realidade. Porque, como François Jacob oportunamente se demanda noutra parte do seu livro, talvez o mito, a realidade e a ciência tenham articulações comuns - e os reais criadores aí estão, falando nelas de vez em quando.
O que nunca conseguirão os galardoados de pacotilha que nos atarantam o quotidiano.


Nicolau Saião

18.5.04

Umbigo #30

Esta noite devo ter sonhado com magnólias. Passei a manhã a tossir pólen.

Cimbalino Curto #86

O Porto é um sarilho terrível. Nem os geógrafos nem os historiadores sabem a que se ater. Mas um novelista tem a obrigação de saber o que é um portuense e o que não é um portuense, e poder fazer uma novela portuense.
O Porto é uma cidade para novelistas, e eu bem sei que numa pequena pensão do Porto, vendo pôr toalhas nas mesas e mulheres típicas, se poderia escrever a novela mais novelesca das novelas.
- Porto! Porto!
Eu conheci-o num dia azul, depois de passar o rio Douro.

Primeiras linhas de "Os Dois Marinheiros (Falsa Novela Portuense)", do livro "6 falsas novelas", de Ramón Gómez de la Serna, com tradução de José Colaço Barreiros.

Post Scriptum # 234

Diálogos interiores



Tem sido fecunda a ligação entre a poesia de Amadeu Baptista e a pintura de Rogério Ribeiro. Desde 2000, têm sido vários os títulos do primeiro que dialogam com a pintura do segundo. Nesta linha, recordamos duas obras de verdadeira comunhão: "Vocação do Fascínio" (in "Rogério Ribeiro: O Atelier do Pintor", Coimbra, 2001) e "O Som do Vermelho - Tríptico poético sobre a pintura de Rogério Ribeiro" (Porto, 2003).
No livro mais recente de Amadeu Baptista, "O Claro Interior" (Edições Íman) o pintor surge a interpretar os poemas do autor desse outro livro belíssimo que é "Paixão" (Porto, 2003). Treze aguarelas originais sobre papel (50 x 60 cm) iluminam a beleza perturbadora dos textos, construídos em torno de uma reflexão intimista e filosófica sobre os mundos de dentro e de fora.
Cores vivas e traços densos ficam na memória. Anjos rilkeanos e outros seres, entre a matéria e o inefável, caminham sobre as palavras, fazem-se rodear pelas palavras de Amadeu Baptista - como se o Verbo fosse o único alicerce a que o Homem se pode agarrar, na angústia e na transcendência. Os poemas, dialogando entre si numa discursividade que nos agarra, dissecam a nossa alma, esquadrinhando a face interna de quem os enuncia e de quem os lê, revelando - como epifanias - clarões nascidos nas entranhas do pensamento. Li com especial emoção o poema final - representação pirogravada e amarga ("há marcas evidentes de tortura no meu rosto") dum terreno luminoso ("a beleza"), com uma luz tão intensa que quase cega e "asfixia" (como a sarça ardente aos olhos de Moisés), em que o sujeito lírico se interroga na angústia provocada pela ausência.
Estamos, assim nos parece, perante uma tocante elegia. Uma elegia em que a consciência da perda é sublimada pela instável certeza das virtualidades da memória que, trazida ao presente e representada, projecta o Homem enraizado e vertiginoso.

Ruy Ventura

A propósito desta relação entre Amadeu Baptista e Rogério Ribeiro, leia-se também a referência de Rui Almeida .

Post It # 132

Na cama com Michaux.

17.5.04

Post Scriptum # 233

Um livro editado recentemente na Alemanha lança uma nova luz sobre um dos grandes temas tabu da Igreja: as crianças que são filhas de padres. Segundo Annette Bruhns, autora do livro ("Gottes heimliche Kinder: Töchter und Söhne von Priestern erzählen ihr Schicksal" ou "As crianças secretas de Deus: Filhas e filhos de padres falam sobre o seu destino"), citada por Graça Magalhães-Rüether, correspondente em Berlim do Jornal Globo (disponível em linha após registo), muitas das crianças que nascem destas ligações proibidas não suportam o trauma de viver às escondidas, sem poder revelar a sua própria identidade, e acabam por cometer suicídio. De acordo com os cálculos da autora, 9000 dos 17.000 padres existentes na Alemanha têm uma parceira sexual, sendo que 3000 crianças surgiram dessas ligações.
O estudo feito com base em depoimentos de muitos jovens, também inclui entrevistas com padres. Um dos religiosos ouvidos pela jornalista alemã diz que "50% dos padres do mundo inteiro não conseguem viver sem sexualidade". Para as mulheres, por outro lado, os padres exercem uma atracção maior do que os homens normais. O homem alemão do campo, diz Annette Bruhns, interessa-se apenas por carros e futebol e as mulheres costumam ficar sensibilizadas quando conversam com padres sobre outros assuntos, como arte, filosofia ou emoções.
Segundo parece, o livro está a suscitar uma intenso debate na Alemanha.

Post Scriptum # 232

Mais um poema de "Spoon River", a fabulosa antologia de Edgar Lee Masters (E.U.A., 1869-1950), com uma composição exclusiva de Francisco Costa.



CHASE HENRY

Em vida eu fui o bêbado da vila;
quando morri o padre negou-se a enterrar-me
em solo sagrado.
E isso acabou por ser para mim uma sorte,
pois os Protestantes compraram este lote
e enterraram aqui o meu corpo,
junto à campa de Nicholas, o banqueiro
e de Priscilla, a sua mulher.
Considerai, ó almas prudentes e piedosas,
como a vida, contra a corrente,
traz honras funerárias a quem viveu na humilhação.

Tradução de José Miguel Silva.

Umbigo #29

Às segundas-feiras, no caminho para o escritório, não consigo evitar duas ou três violentas discussões matinais comigo próprio.

O Povo é Sereno #98

Subsídios para um contentamento ou Vamos dar-lhes um bigode



Como nestes tempos bravios não custa imaginar, vamos imaginar um pouco. Vamos supor Clark Gable sem bigode. Robert Taylor sem bigode. Indo um pouco mais longe, David Niven sem bigode. E, horror dos horrores, Errol Flynn sem bigode.
Mas, ainda mais horrível, cume supremo da apoquentação metafísica, eu mesmo sem bigode!
O mundo ficaria uma errata, um erro de estrutura, uma estruturação desconchavada, não era?
Mas passemos agora para o outro lado da cena, do espelho, da paisagem. E mesmo da exemplaridade teatral: passemos para o campo contrário da política doméstica...
Imaginemos, por um profícuo esforço, Cavaco e Silva... de bigode. E Marques Mendes ostentando um poderoso bigode à mexicana (embora este, e sem acinte e com ternura o digo, seja mais fácil imaginá-lo de calções num fatinho à maruja). E o nosso Durão com um bigode tipo escova, à inglesa londrina. E - mas o exercício é quase cruel, quase místico - o estimado dr. Portas com um formoso bigode à Jorge Gonçalves (esse mesmo, o ex-presidente do Sporting!). E, quase exagerando na nobre ironia, o dr. Santana Lopes com um bigodinho à John Gilbert. Como ficaria catita, não é verdade?
Mas... não pensem que me passei dos carretos. Que ensandeci, que ultrapassei os meus próprios limites de... fantasia.
Porque isto é mais que viável! É, digamos, alcançável. E belamente admirável!
No dia 13 de Junho, amigos e amigas que me esquadrinhais a prosa, vamos já começar a dar-lhes um bigodão?


Nicolau Saião

Post It # 131

Um dos grandes blogues portugueses faz hoje um ano de vida. Muitos parabéns.

14.5.04

O Povo É Sereno #97

UMA CARTA VINDA DE LONGE



Com pedido de publicação, enviou o Dr. Howard Philips Lovecraft uma carta em que se refere a alguns comentários que a imprensa tem produzido acerca da actualidade lusitana, nomeadamente a mais escalofriante.
O Dr. Lovecraft, que é actualmente o cônsul de Portugal em Providence (Rhode Island), além do seu trabalho universitário e público, prefaciou a edição estrangeira do último livro de Aguinaldo Rebelo de Sousa, primo do deputado Idalino Rebelo da Silva, o autor de relatos de análise política como "O caso de Charles Dexter Ward" e teoria económica como "A sombra sobre Innsmouth".
Segue a missiva, a que não modificámos uma vírgula:

"Solicito publiquem esta minha carta, ainda que ela pareça apenas um relato provindo da imaginação mais desatada e sem regras apoiadas na realidade dos factos a que um espírito são estaria votado
E é assim que alguns, levados talvez por um hausto de confusão ou de ensandecimento, dizem que os recentes aumentos da gasolina, as palhaçadas da célebre lista de professores colocados ao deus dará e outros sucessos ominosos tais como as tricas do futebol financiado, são fruto não do destino perverso mas sim dum destrambelhamento de governantes, nomeadamente daqueles que, numa região mais ou menos fora das rotas normais, perplexamente dão ao coiro lusitano razões para se sentir atingido não pelos caprichos dos deuses mas pela aterrorizadora acção dos homens. E isto o repudio com todas as veras do meu ser mortal!
Também vejo com inquietação que num solar vetusto das redondezas, vulgo São Bento, diferentes presenças estranhas se congregam entre si para levarem a cabo não se sabe bem que estarrecedoras acções, que a memória dos antigos tinha como desafiando a própria lei da vida, realizando numinosos conciliábulos que nem me atrevo a descrever.
Também considero inquietante que se continue a tentar perverter a acção produtiva do meu particular amigo Segismundo Santana Lopes, um senhorão da política com paralelo apenas em Abdul Alahzred, o do "Necronomicon" ou em Joseph Frankenstein, neste momento presidente da Câmara de Aylesbury, onde existe um ambiente muito mais tenebroso - e apelo ao espírito são dos que ouvem o meu relato - que a simples cidade de Lisboa, onde as coisas, admito-o democraticamente, nem sempre serão as menos funestas.
Ou até mesmo, vá lá, no Porto, terra às vezes de solertes asserções dum senhor Pinto del Rio de assombrada, conforme rezam os cânones, memória e tradição.
Mas isso seriam contos largos, dignos da pena horrificada de um outro novelista do empíreo.

Com os melhores cumprimentos, senhor cronista, fico assustada e atentamente

Howard Philips Lovecraft

Economista e Analista Político, cônsul luso em Providence"


Nicolau Saião

O Silêncio É de Ouro #79

Gravado nos dias 18 e 19 de Março de 1963, em Nova Iorque, com António Carlos Jobim no piano e Astrud Gilberto nas vocalizações, este álbum tornou-se dos mais populares da história do jazz. Representa um momento chave nas experiências de fusão entre o jazz e a bossa nova. De resto, a partir deste disco, as peças mais conhecidas da bossa nova passaram a integrar o repertório clássico norte-americano. De Frank Sinatra a Elvis Presley, passando por quase todos os grandes músicos de jazz, nenhum resistiu ao novo som vindo do Brasil. E João Gilberto transformou-se num ícone da cultura ocidental.

Raul Silva

Post It # 130

1 igual: hoje, também eu descobri um blogue formidável. Portanto, estamos empatados.

Post Scriptum # 231

Edgar Lee Masters
(E.U.A., 1869-1950)



HOD PUTT

Aqui jazo eu junto à campa
do velho Bill Piersol,
que enriqueceu no comércio com os índios e que
depois tirou proveito da Lei das Falências
para emergir mais rico do que nunca.
Eu, cansado de trabalhos e miséria,
ao ver o velho Bill, e outros, cada vez mais ricos,
ataquei certa noite um viajante, junto a Proctor's Grove,
para o roubar, e matei-o sem querer,
pelo que me condenaram a morrer na forca.
Foi esta a minha maneira de declarar falência.
Nós os dois, que aproveitámos, cada um a seu modo, a lei das falências,
dormimos agora em paz, lado a lado.

Tradução de José Miguel Silva.

13.5.04

Post Scriptum # 229

Ainda a propósito das comemorações do 30º aniversário do 25 de Abril, foi publicada pelas Edições Garça (Peso da Régua) uma colectânea poética intitulada "Na Liberdade", coordenada por Nuno Rebocho, Jorge Velhote e Nicolau Saião. Com textos de diversos autores, provenientes quer de Portugal quer dos país de língua portuguesa (excepto do Brasil), e com diversos níveis de qualidade, nela podemos encontrar poemas assinados por nomes tão conhecidos quanto os de Mário Cesariny, António Ramos Rosa, Eugénio de Andrade, Sophia de Mello Breyner, entre outros. Merece uma leitura atenta.
Houve entretanto um poeta que ficou de fora, por circunstâncias alheias à coordenação, segundo sei. Fernando Correia Pina, autor recentemente galardoado com o Prémio Revelação de Poesia APE, enviou a sua colaboração para o volume, a qual se perdeu - sendo apenas encontrada depois de o livro ter sido dado à estampa. O poema, intitulado "Saldo Negativo", está disponível nos "Arquivos de Renato Suttana", uma Página, aliás, que vale a pena visitar regularmente.


Ruy Ventura

Press Release #12

Hoje é dia de "palavras ditas", na galeria-bar Souk (Rua Marechal Saldanha, 6, em Lisboa), a partir das 22h30. Sessão de leitura de poemas, a cargo de Rosa Azevedo e João Santos. A entrada é livre.

Post It # 129



Qual é a diferença entre literatura e lixo?
Algumas achegas no Guardian, a propósito da edição do mais recente ensaio de Dubravka Ugresic.

Post Scriptum # 228


"O Forasteiro", poema de Jorge Luís Borges, incluído na "Nueva antologia personal", livro de 1968, numa tradução inédita de Nicolau Saião.


O FORASTEIRO

Despachadas as cartas e o telegrama
caminha pelas ruas indefinidas
e nota leves diferenças a que não dá importância
pois pensa em Aberdeen ou em Leyden,
para ele mais vívidas que este labirinto
de linhas rectas, não de complexidade
aonde o leva o tempo de um homem
cuja vida verdadeira está bem longe.
Numa habitação numerada
fará depois a barba ante um espelho
que não voltará a reflecti-lo
e parecer-lhe-á que esse rosto
é mais inescrutável e mais firme
do que a alma que o habita
e que ao longo dos anos o vai lavrando.
Cruzar-se-á contigo em qualquer rua
e tu só notarás que é alto e grisalho
e que olha para as coisas.
Uma mulher indiferente
a tarde lhe dará e o que sucede
do outro lado de umas portas. O homem
pensa que esquecerá a sua cara e irá lembrar
anos depois, perto do mar do Norte,
a persiana ou a lâmpada.
Nessa noite, os seus olhos contemplarão
num rectângulo de formas passageiras,
o cavaleiro e a épica pradaria,
porque o Far West abarca o planeta
e espelha-se nos sonhos dos homens
que jamais o pisaram.
Na intensa penumbra, o desconhecido
crer-se-á na sua cidade
e surpreender-se-á ao sair numa outra
de uma outra linguagem e outro céu.

Antes da agonia
o inferno e a glória nos estão dados:
andam agora por esta cidade, Buenos Aires,
que para o forasteiro do meu sonho
(o forasteiro que fui sob outros astros)
é uma série de imagens imprecisas
feitas para o esquecimento.


Nota: Curioso é verificar que Borges, cego, encena aqui um retrato onírico extremamente visual e indicativo. E não resistimos a interrogar-nos: será que JLB, a exemplo do que sucederia com Buñuel, sonhava a cores?

Tradução e nota de Nicolau Saião.

12.5.04

Press Release #11

A organização do "Corta! Festival Internacional de Curtas Metragens do Porto" (Biblioteca Almeida Garrett, dias 27, 28 e 29 de Maio) continua a aceitar inscrições para os seus vários workshops. Mais informações no sítio do festival.

Umbigo #28

Era uma vez e não era um gato que sonhava ter um blogue. Um dia conheceu e não conheceu um rato que desejava muito ser um post. Os dois ficaram tão amigos que, a partir desse dia, passaram a dedicar todo o seu tempo a brincar ao gato e ao rato. E o gato passava o tempo a correr e a correr atrás do rato. E o rato passava o tempo a fugir e fugir do gato. E viveram felizes para sempre. Mas nem sempre.

11.5.04

Post Scriptum # 226



NOITES BRANCAS
Paul Auster (E.U.A., n. 1947)

Ninguém aqui,
e o corpo diz: o que se diz
não é para ser dito. Mas ninguém
é também um corpo, e o que diz o corpo
ninguém ouve
senão tu.

Noite e queda de neve. A repetição
de um homicídio
por entre as árvores. A caneta
move-se através da terra: já não sabe
o que vai acontecer, e desapareceu
a mão que a segura.

E no entanto, escreve.
escreve: no princípio,
por entre as árvores, um corpo veio
caminhando da noite. Escreve:
a brancura do corpo
é a cor da terra. É terra,
e a terra escreve: tudo
é a cor do silêncio.

Já não estou aqui. Nunca disse
o que dizes
que eu disse. E no entanto, o corpo é um lugar
onde nada morre. E todas as noites,
pelo silêncio das árvores, sabes
que a minha voz
vem caminhando para ti.

Tradução de Rui Lage.
O original pode ler-se nas Torneiras de Freud.

Post It # 128

As piores capas de livros de 2003, segundo a organização All About Romance. Provavelmente, por uma questão de equilíbrio na distribuição de prémios, os livros de algumas editoras portuguesas não foram incluídos no concurso.

Post It # 127

No princípio era o verbo.
Mas só no princípio.

Post It # 126

Poema do dia.

Pausa para publicidade.


À venda nas melhores mercearias.

10.5.04

Post Scriptum # 225

Um poema raro de Mário Botas, com uma legenda de Nicolau Saião.

SETEMBRO

"Seldom we find" says Solomon Don Dance
"Half ann idea in the profoundest sonnet"
E.A.Poe


A fisionomia, o carinho das coisas impalpáveis,
o balbuciar, todo em amarelo, dos limões...
Cintura na pedra,
correio subtil de Lesbos para Marte.

Antinous visitou-me. Deixou a casa desarrumada
e um projecto em mim demasiadamente longo.
No frágil da memória eu durmo e sou eu
deuses de papelão sentando-se a meu lado.

No leito fluvial por onde dorme o cisne
chamam por mim os outros príncipes. Todos
irmãos.

Escuridão nova na velha escuridão,
efeito de luz nas janelas do poema...
O meu cão dorme. He is a poet, isn't he?

(1980)


Nota: Oferecido a Nicolau Saião no decorrer de uma turbulenta sessão surrealista acontecida no Salão de Bailes dos Bombeiros do Bairro Alto, onde este participava com Mário Cesariny, numa palestra abrilhantada pelo Grupo de Teatro Mandrágora, e no decorrer da qual se esboçaram amoráveis cenas de pugilato e outras danças a caracter iniciadas por espectadores situacionistas de leste. O poema (talvez intimidado com estes sucessos) esteve desaparecido durante 22 anos entre, calculava-se, a papelada do poeta alto-alentejano - ou seja cá o meco. Descoberto, afinal, por um dos seus filhos entre as folhas de um livro de C.W. Ceram, foi publicado em Maio de 2002 no suplemento cultural "Fanal", hoje suspenso por imperativos do destino e que era também co-coordenado por Ruy Ventura e João Garção.
Perdido sem apelo nem agravo por entre os eflúvios da zaragata ficou um desenho aguarelado do pintor - o que a ninguém dói mais que a mim, seu feliz proprietário durante o melhor de aí uns vinte minutos.

Cimbalino Curto #84



Fotografia de Francisco Costa.

Post It # 125

Parabéns atrasados. Quero dizer, apenas um pouco tarde.

Post It # 124

Novas Ficções.
Com contos de Prosper Mérimée, Sacher-Masoch, Cesare Pavese, Fernando Sorrentino, Robert Coover e Óscar de Sá (n. 1969), engenheiro do Porto e exímio contista.


Pequena efeméride do dia.
Em Maio de 1910, não exactamente a 10 de Maio, mas talvez um pouco antes ou um pouco depois, o poeta croata Arvid Gorovitch assiste, em Paris, à prisão de um tal Liabeuf, sapateiro e rufia, condenado à morte pelo assassínio de um polícia e ferimentos em vários outros. Anarquistas e socialistas revolucionários manifestaram-se no dia da execução da sentença. Liabeuf morre a gritar "Viva a anarquia! Morte à bofia!"
Mas deixemos isso agora e passemos a outro assunto.

7.5.04

Bem-vindo ao Quartzo, Feldspato & Mica.
É favor não desligarem os telemóveis e bips, durante a visita. É permitido o uso de câmaras, gravadores e máquinas fotográficas. São igualmente permitidos furtos, cópias e estupros de textos e imagens. O consumo de tabaco é aconselhável.

O Silêncio É de Ouro #74

É difícil evitar os adjectivos quando se pretende falar de Spiritual Unity. Mesmo que seja apenas para dar algumas pistas. Editado pela ESP, em 1964, é provavelmente o melhor disco de Albert Ayler. Gravado em trio, com Gary Peacock (contrabaixo) e Sunny Murray (bateria), é uma das obras fundamentais do free jazz. Uma espécie de declaração de liberdade, com muitas revoluções por dentro. Profundamente espiritual, como sugere o título, mas igualmente carnal. Mais carnal, aliás, seria impossível. Poucos conseguiram ir tão longe na exploração dos territórios do jazz como Ayler. Obrigatório.

Raul Silva

O Povo É Sereno #96

A tese e a antítese do dia.

Uma sugestão de leitura do Ricardo Carvalho.

Fauna & Flora #6

Revelação choque!
Roman Abramovitch, proprietário do clube de futebol inglês Chelsea, escreve, obviamente sob um nome falso, à secção de dúvidas sexuais da revista Maria.




Com um agradecimento ao Amor e Ócio.

Post Scriptum # 224

AO VIVO É MAIS BONITO

Mal me sentara na “Cervejaria da Praça” depois de ter mandado vir um Ice Tea de pêssego, eis que o vi assomar do lado da “Rua da Cadeia”, onde os espanhóis vão comprar os “amarelos” que é como quem diz os objectos de cobre com que se fazem no matrimónio com as carmencitas.
“Lemmy! – chamei eu com um gesto o senhor Lemmy Caution, que com o seu metro e oitenta e sete e o ar façanhudo à Eddie Constantine fazia um vistão no centro da cidade de Elvas naquele princípio de tarde caliente, fronteiriça, enquanto as senhoras na esplanada falavam das suas idas ao Lidl e ao Pagapouco e cortavam com afecto na casaca das ausentes, no linguajar cantante que lhes é próprio.
O grande detective chegou e sentou-se, esparramando os noventa quilos na cadeira subitamente frágil, lusitanamente dolorida. Ergueu o dedo displicentemente e o criado acorreu com um copázio já repleto de “bourbon”, que ele arrebatou com a sua apreciada falta de cortesia. “O Philip já está lá dentro, informei-o. Está a tomar um “calvados” à Maigret com o Poirot...”. O Lemmy sorriu, fazendo com que o coração duma jovem que passava se pusesse a palpitar: “O Marlowe está a levar p’rá má vida o pobre do belga..., disse com o seu sotaque duro e arrastado de novaiorquino. Sabes se a miss Marple vai demorar?”. Não lhe respondi, tanto mais que naquele momento, dos lados da Igreja da Nossa Senhora da Assunção, bem equilibradinha nos saltos altos e bamboleando-se como uma leoa, vinha chegando a Effie Perine, a mais que competente secretária do Mike Hammer, que como sempre iria chegar atrasado e com um cheiro a pólvora. Levantei-me cavalheirescamente e a Effie fez um muchocho na direcção do Lemmy, que apenas a considerou de alto a baixo com o olhar número seis. Mas ela pareceu gostar. “Sai uma Sagres!”, clamei para o empregado magrito e com óculos escuros, vocês sabem, aquele que se abanica um tanto. E quando a Effie se sentou, cruzando meu deus as gâmbias envoltas em seda de primeira, chegaram o Marlowe e o Poirot vindos da sala do bar. O belga desbastando ainda uns restos de tremoços ou de amendoins.
E foi então que reparei que o Marlowe tinha um ricto na face. Olhava para o lado da praça, o cigarro pendente do lábio taciturno e o peito arquejando ao de leve com alguma preocupação.
Era um carro da Polícia que vinha a chegar. E que parou em frente da esplanada. Apeou-se um par de chuis: um deles, de quase pequena estatura, usava o cabelo airosamente penteado e um bigodinho como uma linha preta retinta. Sapatinho de tacão alto, o uniforme justo ao cabedal. Parecia a caricatura de um galã das fitas do Totó.
Energicamente, repuxou os lábios donairosos e disse para o Lemmy, mas olhando para todos: “Vamos a circular... Desabelhem já daqui. Dentro de um minuto quero vê-los na alheta. Vá, ponham-se a andar!”. A Effie ainda tentou uma frase qualquer. Os outros tal como eu, nem isso. O Poirot, via-se, engolia em seco. O Lemmy perdera a rijeza. O Marlowe deixou cair o cigarro do lábio.
Pusemo-nos no andor. Que remédio! Evidentemente: é o que acontece quando estamos a contas com um polícia a sério.


Nicolau Saião

6.5.04

O Povo é Sereno # 94

Mais uma achega, de Ruy Ventura, a propósito do concurso de docentes 2004-2005, com um dado novo que, a confirmar-se, revela até que ponto pode chegar a negligência deste Ministério da Educação.


Ao imprimir a lista do concurso de professores, tendo em vista verificar a minha graduação, reparei ontem que na capa da mesma existe uma menção curiosa: “Portugal em Acção”. Portugal em acção? Mas que acção?
Tendo em conta a dimensão dos enganos aí surgidos, estamos, pelos vistos, perante uma acção lesiva da dignidade de milhares de professores, tantos e tão bizarros os erros contidos nas listas agora publicadas, das quais dependerá a sua vida profissional, pessoal e familiar. Não vale a pena enumerar esses erros. Foram divulgados pela comunicação social com bom número de pormenores.
A gerência justiniana do Ministério da Educação promete agora refazer as listas... Antes de tomar esta decisão tratou porém de avisar os professores de que o único protesto admissível seria a reclamação escrita - ameaça velada que substancia uma rejeição do democrático usufruto e da legítima expressão do “direito à indignação”. Nada que venha a ser feito poderá devolver aos docentes deste país a tranquilidade perdida. Nem vale a pena Justino imputar a responsabilidade ao programa informático. Por detrás das teclas estão seres humanos neste caso incompetentes – de que o Ministro é a face visível. Fosse o governo uma empresa credível – e o responsável pelo que aconteceu teria sido imediatamente despedido.

P.S.: Já depois de escrito este texto, recebi de Nuno Matos Duarte o seguinte esclarecimento, que merece ser conhecido, pois revela bem a que ponto pode chegar o economicismo do governo: "Cometeu-se no processo de introdução dos dados dos professores no ‘tal programa informático’ um problema, já muito antigo, que tem sucedido também, por sistema, no processo dos “Censos”. No ano de 1991, e segundo os cálculos de um docente da FAUP, os Censos teriam uns escandalosos 40% de erro. Se pensarmos na quantidade de estudos e investigações que se baseiam naqueles dados e nas implicações dessa falta de rigor ficamos em pânico. Um dos grandes problemas deste tipo de processos em Portugal é o uso de trabalhadores não qualificados mas, pior, EXTREMAMENTE MAL PAGOS E EM CONDIÇÕES DE TRABALHO PRECÁRIO E/OU TEMPORÁRIO. Estas pessoas são normalmente contratadas pelas chamadas empresas de recrutamento que, no fundo, são empresas especializadas em fazer chantagem com pessoas que se sujeitam a um trabalho qualquer para conseguirem ganhar umas miseráveis coroas. Na sorte destas pessoas tanto pode sair a distribuição de panfletos publicitários à chuva no meio do trânsito como a introdução dos dados dos
professores num sistema informático. Foi isso que se passou: o Ministério da Educação pensou (burros) que podiam poupar dinheiro usando pessoas desesperadas por conseguirem trabalho. (...)O dito “trabalho” demorou cerca de duas semanas e foi, claro está, a contra-relógio. Segundo um familiar meu que trabalhou no processo, uma em dez pessoas tinha cuidado com o que estava a fazer. Os outros talvez preferissem estar a vender camisas na Mango do Centro Comercial Colombo. Bons trabalhos só se fazem com equipas motivadas. Máxima antiga, velha, gasta e ainda assim justíssima."


Ruy Ventura

O jovem Pacheco Pereira faz hoje um ano. A gerência deseja-lhe um bom dia de aniversário.

Post Scriptum # 222


Todas as pessoas honestas gostam, na verdade, de ser tidas por tratantes, uma vez que ser honesto está ao alcance de qualquer palerma irresponsável. Ser tido por honesto não é mais, afinal, do que ser considerado ridículo. (…) Ora acontece que os honestos enfastiam-se de ser permanentemente honestos. Tem de se ter sido mau, para se sentir vontade de ser bom. E tem de se ter tido uma vida desordenada, para se desejar pôr a sua vida em ordem. Portanto, ser ordenado leva à desordem, ser virtuoso leva ao vício, ser monocórdico conduz à eloquência, ser mentiroso leva à sinceridade, os últimos são os primeiros e o mundo e a vida das nossas qualidades têm forma redonda, não é verdade, monsieur, e esta pequena história é uma espécie de entrementes.

Robert Walser, O Salteador. Tradução de Leopoldina Almeida.

Post It # 123

Sexo fraco.

5.5.04

Post Scriptum # 221

"Felicidade". Mais um conto de Vincenzo Quillici (França, n. 1967), traduzido por Nicolau Saião.

FELICIDADE

Em certo dia, o senhor Jacquemard pôs-se a pensar. Tinha entrado na sala depois de vir da rua, atravessado o vestíbulo sem reparar em nada e, ao acender a luz, viu os tigres. Olhou de novo. Um estava ao pé da mesa, com um ar de expectativa e o outro, maiorzinho, acomodado no sofá.
O senhor Jacquemard, depois de ter tirado o maço de “Gauloises” da estante ao pé da televisão, apagou a luz e fechou a porta mansamente. Desceu as escadas, fez um gesto feio nas costas da porteira e saiu para o frio de Março. O senhor André, o ronha reformado do Estado, bastante mais velho que Jacquemard e perito em electricidades, estava como sempre na sua mesa por detrás da montra do cafézinho da esquina e olhou-o suspeitosamente. O senhor Jacquemard foi andando, pensando como um homem a quem tivesse saído a lotaria sem estar à espera. No seu peito algo ronronava com ternura. Jacquemard começou a recordar-se da sua infância no Poitu: os regatos correndo entre bosques de avelaneiras, o fumo sobre os telhados das casas da quinta, o tilintar dos chocalhos das vacas da courela de mestre Paupel, o seu boné de abas quando era Inverno. “Jacquemard”, pensou de si para si, “há coisas na vida que não podemos explicar. Tomemo-las como ofertas do mundo misterioso. Não esperar mais do que a nossa conta...isso é que é saudável!”.
Em vista disso, foi andando para a tasca onde costumava fazer as suas refeições desde que a mulher falecera, resolvido a destroçar uns belos linguados salteados com batatinhas. Um dos seus pratos favoritos, ainda que não fosse um comilão.
Ia cheio de paz, mas um bocado intrigado. Disse com os seus botões: ”Logo, quando me for deitar, espero bem que também lá estejam umas avestruzes”. O senhor Jacquemard sempre fora, e isto desde pequeno, um homem de espírito aberto, curioso até mais não. Lá na loja, por causa disso, os colegas até lhe atiravam às vezes, de raspão, piadas que lhe entravam por um ouvido e saíam pelo outro.

in “Contos do parque”

Mais Vincenzo Quillici, aqui .

Ilha dos Amores # 46

O Saramago está na rua.


Fotografia de Francisco Costa.

Cimbalino Curto #83

Corunha 0, Porto 1.
Moral da história: desta vez, o rei saiu nu.

O Povo é Sereno # 93

População com ensino secundário completo (%):

Média da UE15: 42,4%
Portugal: 11,7%;
Estónia: 75,4%
Letónia: 79,1%
Lituânia: 84,4%;
Polónia: 80,4%
República Checa: 86,3%;
Eslováquia: 84,9%;
Hungria: 75,4%;
Eslovénia: 86,1%;
Malta: n.d.
(Fonte: Público)

Claro que isto não tem nenhuma relação com isto.

O Povo é Sereno # 92

Ainda a propósito das graves irregularidades ocorridas no concurso de docentes 2004-2005 de que aqui demos conta ontem, recebemos esta contribuição de Susana Ribeiro, professora do secundário.

Nós somos os excedentes, os restos, as sobras, os substitutos, os suplentes, os permutáveis, a aceitação, o consentimento, a conformação, os pedintes, os pobres, os supervenientes, os servis, os flexíveis, os contratados. Nós somos os 20.000 excluídos do concurso de docentes 2004-2005.

Susana Ribeiro, professora contratada há 9 anos e excluída do concurso de docentes por erro do DGRHE (Direcção-Geral dos Recursos Humanos da Educação)


Há outros textos sobre este assunto no Tempo Dual, no Sous les pavés, la plage! e no Blasfémias.

4.5.04

Post Scriptum # 220

Há alguns dias e vários posts atrás, fizemos uma referência aos 30 anos da morte de Pedro Oom (1926-1974). Hoje, e ainda em jeito de homenagem a um dos principais representantes do movimento surrealista em Portugal, publicamos uma carta inédita de Pedro Oom a Nicolau Saião e três poemas praticamente inéditos que acompanhavam essa missiva. Estes textos foram-nos amavelmente cedidos por Saião e pertencem ao seu acervo pessoal.

CARTA DE PEDRO OOM PARA NICOLAU SAIÃO

“Sacavém, 24. 3. 73

Caríssimo Nicolau

Não consigo tratar-te por Francisco – muito menos por Garção, pois tendo havido já um na literatura e na poesia, aliás muito chato, parece-me que 2 serão de mais.
Acabado este preâmbulo tenho a dizer-te o seguinte: a ideia “exposição Carlos Martins e Lud”(1) aí parece estar em marcha. No dia da inauguração poderia fazer-se o recital (2). Esta ideia já está a ser posta por mim em marcha. Falei à Júlia Chaves. Concordou com a estadia num fim-de-semana e os 500 paus que darão somente para a gasolina. Ela tem um carro “ultra bright”.
Terás de ajudar um pouco:
1º Manda “Balada de Portalegre” do Régio, se possível com nota biográfica.
2º Diz para quando é possível esta manifestação (nunca antes de um mês).
Agora outro assunto: pediram-me no “& etc” que te contactasse para o seguinte: pretendem expôr colecções dos números do “& etc” em várias sociedades de recreio, juntamente com os boletins de inscrição para sócios (3). Como presidente ou influente do Clube local, podes escrever para o “& etc” propondo exactamente o que foi dito atrás.
Espero que o faças sem grande demora pois estão muito interessados nesta espécie de promoção.
Manda também (para mim) um poema teu que te pareça o melhor para o recital. Igualmente do nosso amigo daí, cujo nome me esquece sempre.
Espero notícias breves.
Um abração do
Pedro”


Notas:
(1) A exposição Carlos Martins/Lud não se realizou, uma vez que o Governo Civil desaconselhou a presença do segundo, cujos desenhos eram tidos por muito “controversos e até provocatórios” (sic). Foi substituída por uma mostra Carlos Martins/Nicolau Saião, tendo estes exposto poemas-colagens anteriormente proibidos em Coimbra...
(2) No decorrer da mostra foram lidos poemas de Régio, Carlos Garcia de Castro, Nicolau Saião e Pedro Oom (ausente, pois acabara por não se deslocar a Portalegre). Finda a função, Saião e o vice-presidente da colectividade, o hoje sindicalista Manuel Bagina Garcia, entre vigorosos protestos, foram detidos pela polícia “para averiguações”, tendo sido postos em liberdade seis horas mais tarde.
Os dois primeiros poemas seriam, depois do 25 de Abril, dados a lume numa publicação portalegrense.
(3) Exporem-se números da revista “& etc” foi impossibilitado por decisão do mesmo Governo Civil, de que era titular o dr. Mário Marchante.

TRÊS POEMAS DE PEDRO OOM

POEMA

Há um ar de espanto
no teu rosto em silêncio pequenas pausas
entre nós e as palavras
que desfiamos
Quando o silêncio (pausa mais longa
que nos contrai o peito)
cai bruscamente
duas mãos agitam-se meigamente as nossas
e os mendigos, todos os mendigos
espreitam ao postigo do teu pequeno apartamento
coroados de rosas e crisântemos

É o momento
em que afirmamos a realidade das coisas
não a que vemos na rua
e que sabemos fictícia

mas a outra

aurora cintilante
que põe estrelas no teu sorriso
quando acordas de manhã
com um sol de angústia na garganta

acredita
nada nos distingue
entre a multidão anónima a que pertencemos
embora
o fotógrafo teime sempre
em nos oferecer uma esperança
- fluido imaterial que nem mil anos
poderão condensar -

O nosso rasto
mal se apercebe na areia
condenados ao fracasso
pequena glória dos pequenos heróis deste tempo
ainda aspiramos
no entanto
a ser o índice deste século
único sinal humano, florescente e salubre
de contrário
seremos apenas
um halo de vento
arco-íris de luto
ou estrada para sedentários
É ocioso
preparar a objectiva
que nos vai condenar a um número
nesta cidade onde cada homem
é escravo de uma arma
Ocioso
avivar as flores do cenário
encher de luar o jardim do nosso afecto
Só um acaso
nos poderá revelar
por isso
fechemos o rosto
meu amor

POEMA

Os camaradas
saíram para a rua
com os bolsos cheios de serpentinas

(o calendário
estava trocado
e de Entrudo

nicles
nem um só cabeçudo
ou máscara
até o polícia de giro
com a dignidade sui generis
dos pequenos autocratas
participou na patuscada
depois do jogo
- o Benfica foi eliminado)

Os camaradas
compraram fatos novos
nos alfaiates dernier-cri
e botaram as serpentinas
no lixo
para não deformar
os bolsos (novos).

HISTÓRIA DO MEU BONECO

Cresceu comigo
neste espaço que se diz português
e neste tempo (histórico)

Maricas (era de esperar)
mas rebelde como um felino
ninguém se lhe pôs inteiro
porque rangia a dentadura.

Depois de 45
afundou-se na continuidade
farfalhou o bigode, à guarda nacional antigo
e esperto como um corisco
instalou-se então decidido

à mesa do orçamento.


Sacavém, Março de 1973

PS - Agradeço a Ruy Ventura a ajuda na re-descoberta física dos poemas...

O Povo é Sereno # 91

Eu, confesso, já não sei como classificar a actuação do Ministério da Educação nos concursos de docentes. Termos como “incompetência”, “negligência”, “irresponsabilidade” serão suficientemente duros para caracterizar o péssimo trabalho deste ministério? Os erros sucedem-se a um ritmo absolutamente incompreensível. Depois das incontáveis irregularidades cometidas ainda há poucos meses na colocação dos professores em horários supervenientes, ontem o ministério excluiu cerca de 20.000 docentes do concurso de 2004-2005, por causa de um pequeno “erro”. Mas se situações destas infelizmente já quase não surpreendem, o que é preocupante é a posição dos sindicatos e, sobretudo, da Fenprof em relação a mais este caso. Se durante a tarde de ontem aquela organização sindical exigira, com toda a justiça, a demissão dos responsáveis políticos por mais esta trapalhada, hoje já não pensa assim. De acordo com um comunicado oficial, a Fenprof “entende que a sua reivindicação central está satisfeita, (publicação de novas listas graduadas com novo período de reclamação), pelo que (…) desconvoca a concentração marcada para o dia 4 de Maio no Ministério da Educação”. Mas que raio de organização sindical é esta? O facto de o ministério ter assumido mais este erro grosseiro é motivo suficiente para esquecer tudo? De facto, se há alguém que se deve demitir rapidamente são os actuais responsáveis da Fenprof. Coitados dos professores deste pobre país.

Post Scriptum # 219

"Satanás Diz", livro de poemas da autora norte-americana Sharon Olds (n. 1942), será lançado durante o próximo mês de Junho, pela Antígona. A tradução é de Margarida Vale de Gato. Aqui, aqui e aqui há alguns poemas que constam desse livro e que foram pré-publicados, em exclusivo, neste blogue.

3.5.04

Post Scriptum # 218

O último livro de poemas de Ruy Ventura, "um pouco mais sobre a cidade", será lançado amanhã, dia 4 de Maio, a partir das 21h00, no café La Regenta, em Badajoz. O livro, em edição bilingue, é editado nos Cuadernos Literarios Porticus, de Villanueva de La Serena.
A apresentação será feita por Antonio Sáez Delgado, presidente da Associação de Escritores Extremenhos.

Post Scriptum # 217

Homenagem a Thom Gunn
(1929-2004)



PEÇA NOCTURNA

O nevoeiro vagueia lentamente pelo monte abaixo
E à medida que subo torna-se ainda mais denso,
Encerra-me dentro de si, faz-me seu
Como roupa de cama na pedra da calçada.

Aqui se situam as últimas poucas ruas que falta escalar,
Galerias, atravessam veias de tempo,
Quase familiares, onde rastejo
Para o sono como nevoeiro, através do nevoeiro como sono.

Tradução de Cecília Rego Pinheiro

Mais poesia de Thom Gunn aqui e aqui.

Thom Gunn morreu. A notícia chegou via Alexandra Barreto. Os mortos que se cuidem: o homem vai a caminho.

Post It # 122

A Penguin jura que durante os próximos meses vai tornar os homens mais atraentes para as mulheres. Como? Através dos livros. Finalmente, uma oportunidade para aqueles que não nasceram com a cara voltada para a lua. Eu já estou na fila.

Post It # 121

Atenção. Este blogue pode estar a ser alvo de espionagem. Mais pormenores aqui.

Press Release #10

O prazo de inscrição de filmes para a segunda edição do Festival Internacional de Curtas Metragens do Porto foi prolongado até 14 de Maio. Também ainda estão abertas as inscrições para a participação nos workshops. Mais informações no sítio do costume.