Post Scriptum # 235
Recordando Jorge Luís Borges, nos seus 105 anos.
No seu célebre ensaio "O jogo dos possíveis", onde analisa a diversidade do mundo vivo, diz-nos a dada altura François Jacob que "é provavelmente uma exigência do espírito humano ter uma representação do mundo que seja unificada e coerente. Na sua falta aparecem a ansiedade e a esquizofrenia". Em seguida, referindo que neste campo a explicação mítica geralmente ultrapassa a científica, Jacob esclarece que tal se deve ao facto de que os sistemas religiosos ou mágicos englobam tudo, ao passo que a Ciência só opera localmente, através duma experimentação pormenorizada sobre fenómenos que consegue circunscrever e definir. Mas o espírito humano tem exigências de outra ordem, que não se inscrevem na explicação científica nem na fideísta.
É geralmente aceite, tanto pelos escritores como pelos leitores devotados, que Borges estará indubitavelmente entre os maiores autores do nosso tempo. Do nosso tempo vivo, apesar de ele estar fisicamente morto. A Academia Sueca, que já provou por variadas vezes ter da arte e da literatura uma visão que só a ela envergonha e define, nunca concedeu a J.L.Borges o Prémio Nobel, apesar de o escritor ter sido, durante anos, uma espécie de candidato perpétuo. Não lhe perdoava o desassombro de algumas observações - e convenhamos que o Nobel nenhuma falta fazia a Borges. É que nisto de prémios, os nobeis passam e os génios ficam.
Mas "le poète a toujours raison", como canta Jean Ferrat. Serve dizer: escreve direito por linhas tortas. Pois não fora o mesmo Borges que muitos anos antes, numa entrada da Enciclopédia editada na sua querida Buenos Aires, propusera como hipótese de cenário para a sua morte a mesma Genebra onde veio a falecer? É que as explicações míticas, ouço dizer-me ao bichinho do ouvido Roger Bacon, por vezes coincidem com a realidade. Porque, como François Jacob oportunamente se demanda noutra parte do seu livro, talvez o mito, a realidade e a ciência tenham articulações comuns - e os reais criadores aí estão, falando nelas de vez em quando.
O que nunca conseguirão os galardoados de pacotilha que nos atarantam o quotidiano.
Nicolau Saião
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