5.5.04

Post Scriptum # 221

"Felicidade". Mais um conto de Vincenzo Quillici (França, n. 1967), traduzido por Nicolau Saião.

FELICIDADE

Em certo dia, o senhor Jacquemard pôs-se a pensar. Tinha entrado na sala depois de vir da rua, atravessado o vestíbulo sem reparar em nada e, ao acender a luz, viu os tigres. Olhou de novo. Um estava ao pé da mesa, com um ar de expectativa e o outro, maiorzinho, acomodado no sofá.
O senhor Jacquemard, depois de ter tirado o maço de “Gauloises” da estante ao pé da televisão, apagou a luz e fechou a porta mansamente. Desceu as escadas, fez um gesto feio nas costas da porteira e saiu para o frio de Março. O senhor André, o ronha reformado do Estado, bastante mais velho que Jacquemard e perito em electricidades, estava como sempre na sua mesa por detrás da montra do cafézinho da esquina e olhou-o suspeitosamente. O senhor Jacquemard foi andando, pensando como um homem a quem tivesse saído a lotaria sem estar à espera. No seu peito algo ronronava com ternura. Jacquemard começou a recordar-se da sua infância no Poitu: os regatos correndo entre bosques de avelaneiras, o fumo sobre os telhados das casas da quinta, o tilintar dos chocalhos das vacas da courela de mestre Paupel, o seu boné de abas quando era Inverno. “Jacquemard”, pensou de si para si, “há coisas na vida que não podemos explicar. Tomemo-las como ofertas do mundo misterioso. Não esperar mais do que a nossa conta...isso é que é saudável!”.
Em vista disso, foi andando para a tasca onde costumava fazer as suas refeições desde que a mulher falecera, resolvido a destroçar uns belos linguados salteados com batatinhas. Um dos seus pratos favoritos, ainda que não fosse um comilão.
Ia cheio de paz, mas um bocado intrigado. Disse com os seus botões: ”Logo, quando me for deitar, espero bem que também lá estejam umas avestruzes”. O senhor Jacquemard sempre fora, e isto desde pequeno, um homem de espírito aberto, curioso até mais não. Lá na loja, por causa disso, os colegas até lhe atiravam às vezes, de raspão, piadas que lhe entravam por um ouvido e saíam pelo outro.

in “Contos do parque”

Mais Vincenzo Quillici, aqui .