Post Scriptum # 220
Há alguns dias e vários posts atrás, fizemos uma referência aos 30 anos da morte de Pedro Oom (1926-1974). Hoje, e ainda em jeito de homenagem a um dos principais representantes do movimento surrealista em Portugal, publicamos uma carta inédita de Pedro Oom a Nicolau Saião e três poemas praticamente inéditos que acompanhavam essa missiva. Estes textos foram-nos amavelmente cedidos por Saião e pertencem ao seu acervo pessoal.
CARTA DE PEDRO OOM PARA NICOLAU SAIÃO
“Sacavém, 24. 3. 73
Caríssimo Nicolau
Não consigo tratar-te por Francisco – muito menos por Garção, pois tendo havido já um na literatura e na poesia, aliás muito chato, parece-me que 2 serão de mais.
Acabado este preâmbulo tenho a dizer-te o seguinte: a ideia “exposição Carlos Martins e Lud”(1) aí parece estar em marcha. No dia da inauguração poderia fazer-se o recital (2). Esta ideia já está a ser posta por mim em marcha. Falei à Júlia Chaves. Concordou com a estadia num fim-de-semana e os 500 paus que darão somente para a gasolina. Ela tem um carro “ultra bright”.
Terás de ajudar um pouco:
1º Manda “Balada de Portalegre” do Régio, se possível com nota biográfica.
2º Diz para quando é possível esta manifestação (nunca antes de um mês).
Agora outro assunto: pediram-me no “& etc” que te contactasse para o seguinte: pretendem expôr colecções dos números do “& etc” em várias sociedades de recreio, juntamente com os boletins de inscrição para sócios (3). Como presidente ou influente do Clube local, podes escrever para o “& etc” propondo exactamente o que foi dito atrás.
Espero que o faças sem grande demora pois estão muito interessados nesta espécie de promoção.
Manda também (para mim) um poema teu que te pareça o melhor para o recital. Igualmente do nosso amigo daí, cujo nome me esquece sempre.
Espero notícias breves.
Um abração do
Pedro”
Notas:
(1) A exposição Carlos Martins/Lud não se realizou, uma vez que o Governo Civil desaconselhou a presença do segundo, cujos desenhos eram tidos por muito “controversos e até provocatórios” (sic). Foi substituída por uma mostra Carlos Martins/Nicolau Saião, tendo estes exposto poemas-colagens anteriormente proibidos em Coimbra...
(2) No decorrer da mostra foram lidos poemas de Régio, Carlos Garcia de Castro, Nicolau Saião e Pedro Oom (ausente, pois acabara por não se deslocar a Portalegre). Finda a função, Saião e o vice-presidente da colectividade, o hoje sindicalista Manuel Bagina Garcia, entre vigorosos protestos, foram detidos pela polícia “para averiguações”, tendo sido postos em liberdade seis horas mais tarde.
Os dois primeiros poemas seriam, depois do 25 de Abril, dados a lume numa publicação portalegrense.
(3) Exporem-se números da revista “& etc” foi impossibilitado por decisão do mesmo Governo Civil, de que era titular o dr. Mário Marchante.
TRÊS POEMAS DE PEDRO OOM
POEMA
Há um ar de espanto
no teu rosto em silêncio pequenas pausas
entre nós e as palavras
que desfiamos
Quando o silêncio (pausa mais longa
que nos contrai o peito)
cai bruscamente
duas mãos agitam-se meigamente as nossas
e os mendigos, todos os mendigos
espreitam ao postigo do teu pequeno apartamento
coroados de rosas e crisântemos
É o momento
em que afirmamos a realidade das coisas
não a que vemos na rua
e que sabemos fictícia
mas a outra
aurora cintilante
que põe estrelas no teu sorriso
quando acordas de manhã
com um sol de angústia na garganta
acredita
nada nos distingue
entre a multidão anónima a que pertencemos
embora
o fotógrafo teime sempre
em nos oferecer uma esperança
- fluido imaterial que nem mil anos
poderão condensar -
O nosso rasto
mal se apercebe na areia
condenados ao fracasso
pequena glória dos pequenos heróis deste tempo
ainda aspiramos
no entanto
a ser o índice deste século
único sinal humano, florescente e salubre
de contrário
seremos apenas
um halo de vento
arco-íris de luto
ou estrada para sedentários
É ocioso
preparar a objectiva
que nos vai condenar a um número
nesta cidade onde cada homem
é escravo de uma arma
Ocioso
avivar as flores do cenário
encher de luar o jardim do nosso afecto
Só um acaso
nos poderá revelar
por isso
fechemos o rosto
meu amor
POEMA
Os camaradas
saíram para a rua
com os bolsos cheios de serpentinas
(o calendário
estava trocado
e de Entrudo
nicles
nem um só cabeçudo
ou máscara
até o polícia de giro
com a dignidade sui generis
dos pequenos autocratas
participou na patuscada
depois do jogo
- o Benfica foi eliminado)
Os camaradas
compraram fatos novos
nos alfaiates dernier-cri
e botaram as serpentinas
no lixo
para não deformar
os bolsos (novos).
HISTÓRIA DO MEU BONECO
Cresceu comigo
neste espaço que se diz português
e neste tempo (histórico)
Maricas (era de esperar)
mas rebelde como um felino
ninguém se lhe pôs inteiro
porque rangia a dentadura.
Depois de 45
afundou-se na continuidade
farfalhou o bigode, à guarda nacional antigo
e esperto como um corisco
instalou-se então decidido
à mesa do orçamento.
Sacavém, Março de 1973
PS - Agradeço a Ruy Ventura a ajuda na re-descoberta física dos poemas...
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