31.10.03

Cimbalino Curto #32


Rua Morgado de Mateus, Porto.

Fotografia de Francisco Costa.

Post it #18

De costas voltadas para nós, mas de frente para Asfódelos.

Post Scriptum #60


Dois versos de Michális Ganas (n. 1943), traduzidos e convertidos em giff animado pelo Manuel Resende.

Post Scriptum #59

Voltamos hoje aos poetas metafísicos ingleses. Depois de Henry Vaughan (Post Scriptum #56), é a vez de George Herbert (1593-1633), em mais uma notável tradução, ainda inédita, de Rui Lage.





VIDA

Colhi um ramo, enquanto o dia passou:
Aqui vou exalar o perfume que sou
E atar a vida ao chão.
Mas o Tempo ali pelas flores pedia
E elas, finas, saíram ao fim-do-dia
E murcharam-me na mão.

Nelas a mão e já perto o coração:
Tive em boa conta, sem hesitação
Do tempo o gentil aviso
Que insinua da morte o gosto no ar
O dia fatal dando à mente a cheirar;
Mas turvando o juízo.

Doces flores: é gasto o tempo! Sois
Boas em vida para deleite, depois,
Só para enfeite nosso.
A direito a vida sem mágoas corto:
Seja doce meu perfume, e não me importo
Se for curto como o vosso.

Tradução de Rui Lage.


LIFE

I made a posie, while the day ran by:
Here will I smell my remnant out, and tie
My life within this band.
But Time did becken to the flowers, and they
By noon most cunningly did steal away,
And wither’d in my hand.

My hand was next to them, and then my heart:
I took, without more thinking, in good part
Times gentle admonition:
Who did so sweetly deaths sad taste convey,
Making my minde to smell my fatal day;
Yet sugring the suspicion.

Farewell deare flowers, sweetly your time ye spent,
Fit, while ye liv’d, for smell or ornament,
And after death for cures.
I follow straight without complaints or grief,
Since if my scent be good, I care not if
It be as short as yours.

Post Scriptum #58

O BARQUEIRO CIGANO

Era uma vez um gramático que queria ir passar algum tempo que tinha a andar de barco no rio. Por isso alugou um barco a um cigano cujo ofício era esse. Durante o passeio, o gramático perguntou ao barqueiro cigano:
- Sabes alguma coisa de literatura? Sabes escrever? Sabes ler?
E o barqueiro respondeu:
- Não, estou sempre a trabalhar, sempre com uma mão à frente e outra atrás, a tentar alimentar a minha família, nunca tive tempo para aprender a ler. Para mim é só uma perda de tempo. Sei do meu ofício, sei tudo de barcos e é isso que tenho que saber.
E o gramático disse:
- Que pena... Gastaste metade da tua vida nos barcos e nada sabes das coisas mais requintadas da vida.
E assim continuaram a argumentar para trás e para diante sobre a necessidade de saber ler e de conhecer a literatura e as coisas mais requintadas da vida. De súbito, apareceu um grande remoinho e as coisas ficaram feias. O barqueiro perguntou ao gramático:
- Olha lá, sabes nadar?
- Não.
Oh, que pena... Gastaste metade da tua vida a estudar gramática e literatura e a arte de escrever e nunca aprendeste a nadar? Pois se não aprendes a nadar agora será o fim da tua vida.

Contos Populares Ciganos, recolha de Diane Tong, Teorema, 1998. A tradução é de Telma Costa.

30.10.03

Post it #17

É talvez a melhor revista literária que actualmente se publica em Portugal. A revista Ficções é dirigida por Luísa Costa Gomes e é um dos raros exemplos de rigor e excelência nesta área da edição. Publica exclusivamente contos e acaba de sair o número 8, relativo a este Outono, com textos de Ramalho Ortigão, Elizabeth Bishop, Ray Bradbury, Villiers de l'Isle-Adam, Doris Lessing, Augusto Abelaira e José Rodrigues Miguéis.
Os contos de Ramalho Ortigão e Villiers de l'Isle-Adam podem ser lidos on line. O texto deste último intitula-se "A Tortura pela Esperança", e tem a particularidade de ter sido traduzido pelo nosso Manuel Resende.

Post Scriptum #57

"Esperando os Bárbaros." Este é indubitavelmente um dos melhores poemas do século XX. Foi escrito por Konstantínos Kaváfis (ou Constantin Cavafy, segundo Jorge de Sena), talvez o maior escritor grego contemporâneo, que viveu entre 1863 e 1933. Esta é a versão do nosso estimado tradutor Manuel Resende.




ESPERANDO OS BÁRBAROS

- Mas que esperamos nós aqui n'Ágora reunidos?

É que os bárbaros hoje vão chegar!

- Mas porque reina no Senado tanta apatia?
Porque deixaram de fazer leis os nossos senadores?

É que os bárbaros hoje vão chegar.
Que leis hão-de fazer os senadores?
Os bárbaros que vêm, que as façam eles.

- Mas porque tão cedo se ergueu hoje o nosso imperador,
e se sentou na magna porta da cidade à espera,
oficial, no trono, co'a coroa na cabeça?

É que os bárbaros hoje vão chegar.
O nosso imperador espera receber
o chefe. E certamente preparou
um pergaminho para lhe dar, onde
inscreveu vários títulos e nomes.

- Porque é que os nossos dois bons cônsules e os dois pretores
trouxeram hoje à rua as togas vermelhas bordadas?
E porque passeiam com pulseiras ricas de ametistas,
e porque trazem os anéis de esmeraldas refulgentes,
por que razão empunham hoje bastões preciosos
com tão finos ornatos de ouro e prata cravejados?

É que os bárbaros hoje vão chegar.
E tais coisas os deixam deslumbrados.

- Porque é que os grandes oradores como é seu costume
não vêm soltar os seus discursos, mostrar o seu verbo?

É que os bárbaros hoje vão chegar
e aborrecem arengas, belas frases.

- Porque de súbito se instala tal inquietude
tal comoção (mas como os rostos ficaram tão graves)
e num repente se esvaziam as ruas, as praças,
e toda a gente volta a casa pensativa?

Caiu a noite, os bárbaros não vêm.
E chegaram pessoas da fronteira
e disseram que bárbaros não há.

Agora que será de nós sem esses bárbaros?
Essa gente talvez fosse uma solução.

Tradução de Manuel Resende.

Post It #16



O amor e o sexo explicados às criancinhas. Vale a pena ler os excertos deste livrinho, editado pela Verbo, que a Cláudia Caetano fez o favor de publicar no Tempo Dual.

29.10.03

Cimbalino Curto #31


Rua Morgado de Mateus, Porto.

Fotografia de Francisco Costa.

Ilha dos Amores #14

A Fernanda Alves, nossa habitual colaboradora, sugere-nos a publicação de uma das mais belas telas de Dórdio Gomes (1890-1976), presente na colecção do Museu Nacional de Soares dos Reis. Falamos de "Casas de Malakoff", de 1923.


Dórdio Gomes, Casas de Malakoff, 1923.

Mais Dórdio Gomes, na página do MNSR.

Post It #15

Lucas Baldus e Vicente Gunz, com a sua habitual amabilidade, enviaram-nos a relação dos livros editados a semana passada em Belo Horizonte.

"Aparelhos holográficos para medição do espírito das épocas", ensaios filosóficos, de Esbelta Nunes; "A genética das poéticas marginais", ensaios literários, de Lineu Portovalho; "Poemas assados a 180 graus", poesia, de Miléia Souto Menor; "Mil trovas concretistas", poesia, de Rando Pantagruel; "O bambu que falava japonês", infanto-juvenil, de Dona Lindéia Andorinha; "A espingarda e a bússola", contos, de Morena Trivel; "Meu celular amarelo", contos, de Vasco Colombino; "Quase estive onde nunca teria estado", romance, de Juvenal Jorge Maromba; "As varandas do apocalipse", romance, de Shirley Noraldina; "Meia-noite na alma dos elefantes", contos, de Laine Madalena Savalah; "O pão de queijo terrorista", infanto-juvenil, de Corália Rafaela Pôncio, e "Maravilhosas histórias do meu avô Atanásio", romance, de Gerald Francis Silva.

Para mais informações, visitem a sua livraria.

O Silêncio É de Ouro #8

O Raul Silva, um dos mais eméritos apreciadores de jazz que eu conheço, enviou-nos uma sugestão musical que agradecemos. Trata-se da grande obra-prima de Eric Dolphy, "Out to Lunch".
Editado em 1964, este disco representa um dos momentos mais extraordinários da história do jazz.
Caro Raul, ficamos à espera de mais.




Mais detalhes sobre este disco aqui.

Post Scriptum #56

Rui Lage editou o seu primeiro livro de poesia, "Antigo e Primeiro", através da editora Quasi, em 2002. É o director da revista literária "Águasfurtadas", editada pelo Jornal Universitário do Porto. Traduziu a única antologia de poemas de Paul Auster, "Poemas Escolhidos" (Quasi, 2002), que se encontra disponível no nosso país. E é o nosso mais recente colaborador na área da tradução.

Para começar Rui Lage oferece-nos o poema "O Aguaceiro", de Henry Vaughan (1622-1695), um dos maiores representantes da chamada escola metafísica inglesa do século XVII, da qual fizeram parte, entre outros, John Donne, Andrew Marvell e George Herbert. A tradução respeita rigorosamente a métrica e a rima.

Este poema deverá ser editado em breve no novo número da revista "Águasfurtadas" que se encontra em preparação.



Rembrandt, Philosopher in Meditation, 1632.



O AGUACEIRO


Foi assim, vi-te nascer: o fatigado
Lago despediu-te, fraco, dorido
Das águas do seu colo adormecido.
Cai da tarde o véu,
Pesas já, no céu
E agora em lágrimas cais enganado.


Ah! Assim é comigo: fui bafejando
O céu com ar lasso e não tive ingresso;
Pode só o amor com rápido acesso
Caminho abrir,
E o resto cobrir
Pode o fumo do peito revoando.


Mas, se como tu descendo, teu lençol
De gotas beijando a terra, chorassem
No coração meus olhos, e o lavassem,
Talvez então Deus
(aguaceiros meus
depois) pudesse após a chuva abrir o sol.

Tradução ainda inédita de Rui Lage.


THE SHOWRE

‘Twas so, I saw thy birth: That drowsie Lake
From her faint bosome breath’d thee, the disease
Of her sick waters, and Infectious Ease.
But, now at Even
Too grosse for heaven,
Thou fall’st in teares, and weep’st for thy mistake.

Ah! It is so with me; oft have I prest
Heaven with a lazie breath, but fruitless this
Peirc’d not; Love only can with quick accesse
Unlock the way,
When all else stray
The smoke, and Exhalations of the brest.

Yet, if as thou dost melt, and with thy traine
Of drops make soft the Earth, my eyes could weep
O’re my hard heart, that’s bound up, and asleep,
Perhaps at last
(Some such showres past,)
My God would give a Sun-shine after raine.

A Gerência Agradece #14

Obrigado ao Lugar da Incerteza pela referência feita a este blog.

28.10.03

Cimbalino Curto #30


Rampa da Escola Normal, Porto.

Fotografia de Francisco Costa.

Post Scriptum #55

Senhoras e senhores, meninas e meninos, pela primeira vez em português, Monsieur Paul Nougé.
A apresentação e tradução são de Manuel Resende.

Paul Nougé (1895-1967). Um dos mais importantes surrealistas belgas. O surrealismo belga diferencia-se do francês por um pendor mais experimentalista. Prova disso são estes poemas que se afirmam como publicidade desviada. Um deles (ESTA avenida...) foi mesmo passeado em Bruxelas em 1927 em cima de um carro; os surrealistas pretendiam interpelar o público, mas a tentativa saiu frustrada: o público pensou que se tratava mesmo de um reclame a um espectáculo. Os outros, de 1925, fazem parte de um conjunto apresentado num concerto com ambiente sonoro de André Souris (percussões). Do surrealismo belga (juntamente com um grupo holandês e outro dinamarquês) havia de sair o movimento Cobra; alguns dos membros deste último aderiram à Internacional Situacionista.
(Manuel Resende)









A propósito de Paul Nougé, vale a pena visitar a página de José António Chagas Machado, que é um enorme centro de recursos dedicado ao Surrealismo.

O Povo é Sereno #16

Ao longo dos últimos dias, o Manuel Resende e o Ricardo Carvalho mantiveram um interessante diálogo nas nossas caixas de comentários a propósito da distribuição das verbas do PIDDAC, que aparentemente beneficiam o distrito do Porto.
Entretanto, surgiram novas achegas, nomeadamente dois artigos no Público (artigo de opinião de Manuel Carvalho, na edição local de sábado, e artigo sobre o Programa de Promoção do Emprego, na edição local de domingo) que poderão contribuir para esclarecer alguns pontos importantes do debate.
Uma vez que não existem links para esses textos – lá estão os tipos de Lisboa a boicotar o nosso trabalho -, destaco apenas algumas notas:

1. O facto de o Porto ser o distrito que deverá receber mais dinheiro do PIDDAC não significa que esta região saia mais beneficiada em relação às outras. É preciso analisar o contexto em que isso sucede.

2. Em termos reais, o orçamento global do PIDDAC é menor do que no ano anterior. O Porto, por exemplo, perde mais de 27%.

3. Metade da verba destinada ao Porto será canalizada directa e exclusivamente para o Metro.

4. O rendimento "per capita" do Porto é substancialmente menor do que o dos habitantes da região mais rica do país. Na verdade, com a entrada em vigor do III QCA, Lisboa deixou de ter acesso aos fundos comunitários porque o seu rendimento "per capita" ultrapassou a média dos 75% da União Europeia.

5. O Porto foi a cidade portuguesa que mais competitividade perdeu nos últimos anos.

6. O desemprego no Porto tem crescido a um ritmo imparável, tendo já ultrapassado a fasquia dos 100.000 desempregados.

E, no seu texto do Público, Manuel Carvalho conclui: "De facto, não houve este ano qualquer discriminação positiva para o distrito. O que aconteceu foi a confluência das exigências da política estrutural da União Europeia com as necessidades de financiamento de uma obra [o Metro do Porto] que segue o seu curso normal."
Por outras palavras, quanto aos gravíssimos problemas de ordem social que afectam a região, deverá continuar tudo na mesma: zero.

27.10.03

Mensagem da Gerência #6

O sitemeter não engana. O Quartzo, Feldspato & Mica atingiu hoje o notável número de 123.567.987.097 pageviews. Para assinalar o acontecimento, este blog vai oferecer livros aos primeiros 45.786 leitores que clicarem aqui*. Uma excelente oferta dos nossos patrocinadores da área editorial. Entretanto, aguardamos novidades do nosso patrocinador exclusivo da área automóvel. Fiquem atentos.


* Esta oferta é ilimitada ao stock existente e não seria possível sem a inestimável generosidade da Cristina Fernandes e da Janela Indiscreta.

Post Scriptum #54

Ainda a propósito de escritores polacos (Post Scriptum #53), Wislawa Szymborska pronuncia-se mais ou menos assim: "vissuava ximborsca."

Cimbalino Curto #29


Rua de Passos Manuel, Porto.

Fotografia de Francisco Costa.

Post Scriptum #53

Poeta, dramaturgo e ensaísta, Zbigniew Herbert foi talvez o maior autor polaco do século XX. Nasceu em 1924, em Kviv (ex-Lwow, na Ucrânia ocidental, à época território polaco) e tornou-se conhecido sobretudo depois da publicação da sua obra-prima "Pan Cogito". Teve numerosos problemas com o regime comunista polaco até se exilar em França, em 1982. Depois da repressão ao Solidariedade, Herbert recusou a publicação de todas as suas obras na Polónia, onde regressou apenas em 1992, depois da queda do comunismo. Morreu em Varsóvia, aos 73 anos, em 1998.
Apesar da extraordinária beleza da sua obra, Herbert não teve a mesma fortuna de outros autores polacos como Wislawa Szymborska (Nobel da Literatura em 1996) ou Czeslaw Milosz (naturalizado americano e Nobel da Literatura em 1980). Se exceptuarmos a inesquecível tradução do poema "Sobre Tradução de Poesia" feita por Herberto Helder, que abre o seu livro Ouolof (Assírio & Alvim, 1997), e a breve prosa poética incluída na Rosa do Mundo (Assírio & Alvim, 2001), não se conhecem outras versões de Herbert editadas em Portugal (corrijam-me se estiver enganado).
No Brasil, porém, existe uma antologia de poetas polacos, editada pela Secretaria de Estado da Cultura do Paraná (Quatro Poetas Poloneses - Czeslaw Milosz/Tadeusz Rózewicz/Wislawa Szymborska/Zbigniew Herbert, organização e tradução de Henrik Siewierski e José Santiago, Secretaria de Cultura do Paraná, 1995), da qual conheço apenas a referência bibliográfica e que, suponho, não terá gozado de larga publicidade. (Se tivéssemos um leitor brasileiro que nos pudesse falar desse livro…)
Miguel Gonçalves, nosso colaborador, traduziu este poema de Zbigniew Herbert a partir da versão inglesa feita por Czeslaw Milosz e Peter Dale Scott (Selected Poems, Ecco Press, 1986).





EU QUERIA DESCREVER

Eu queria descrever a mais simples das emoções
alegria ou tristeza
mas não como outros o fazem
invocando raios de sol ou chuva

Eu queria descrever a luz
que cresce dentro de mim
mas que não se assemelha
a nenhuma estrela
porque não é tão brilhante
nem tão pura
e é incerta.

Eu queria descrever a coragem
sem arrastar um leão de pó atrás de mim
e a ansiedade
sem agitar um copo cheio de água

dito de outro modo
daria todas as metáforas
em troca de uma só palavra
do meu peito arrancaria uma costela
por uma só palavra
sufocada dentro das fronteiras
da minha pele

mas aparentemente isso não é possível

e para dizer apenas – eu amo
ando às voltas como um louco
apanhando pássaros e pássaros com as mãos
e a minha ternura
que afinal não é feita de água
pergunta à água por um rosto

e a raiva
diferente do fogo
pede ao fogo
uma língua eloquente

e nada é nítido
e nada é inteiramente nítido
em mim
cavalheiro de cabelos brancos
separação de uma vez para sempre
e disse
isto está no poema
isto é o objecto

caímos no sono
com uma mão debaixo da cabeça
e a outra numa pilha de planetas

os nossos pés abandonam-nos
e provam a terra
com as suas raízes subtis
que despedaçamos dolorosamente
na manhã seguinte

Tradução de Miguel Gonçalves.

Post It #14

Também este blog se junta à onda de assombro que percorre a blogosfera. Tudo porque a poesia vai acabar. Ainda são poucos os detalhes. Mas o que se sabe está aqui.

A Gerência Agradece #13

Obrigado ao Blog Far Niente e ao Murmúrios do Silêncio pelas referências feitas a este blog.

Entretanto, estamos em falta com a Natureza do Mal e o mestre Walser. Em breve, será reposta a normalidade.

Post Scriptum #52

UM CONTO DE KAFKA.

É mais uma tradução inédita de Manuel Resende. Trata-se de um texto que deverá integrar o primeiro volume de contos de Franz Kafka (1883-1924), a editar em breve pela Assírio & Alvim. Esta edição está a ser preparada pelo Manuel Resende em conjunto com outros tradutores, como o José Maria Vieira Mendes e o Álvaro Machado. A esclarecedora introdução é também da sua responsabilidade.

Este pequeno texto é um autêntico poema com duas "estrofes". A segunda nega a primeira, mas estão construídas em paralelo: um crescendo sem pontos que termina pela reacção de um hipotético espectador de circo (na primeira, um berro, na segundo, um silêncio e um choro). O paralelismo, porém, nega a própria negação, apontando ironicamente para a violência que se esconde por detrás dos sorrisos do segundo parágrafo e cuja verdade poderá estar no primeiro, só que escondida (daí a impotência do choro). Não posso deixar de pensar que isto é uma alegoria do regime de servidão voluntária em que vivemos na nossa sociedade.




NA GALERIA

Se alguma débil e enfraquecida amazona de circo se visse obrigada por um cruel director a girar ininterruptamente durante meses à volta da pista, à força de chicote, sobre um ondulante cavalo diante dum público insaciável, voando em cima do cavalo, lançando beijos, dobrando-se pela cinta numa saudação, e se essa representação se prolongasse até ao acinzentado horizonte de um futuro cada vez mais distante, sob o incessante estrépito da orquestra e dos ventiladores, acompanhada por ondas de aplausos que fluem e refluem, mas na realidade são como martelos de vapor... então, talvez algum jovem visitante do paraíso descesse rudemente o amplo anfiteatro, cruzasse todos os estrados, irrompesse na pista e gritasse através das fanfarras da orquestra que a tudo se amolda: Basta!

Como assim não é, como se trata de uma bela dama rosada, a qual rompe quase voando por entre os cortinados que os orgulhosos serventes abrem diante dela e como o director, buscando ansiosamente o seu olhar, se acerca como um manso animal e a alça, com sumo cuidado, para o cavalo malhado, como se se tratasse da sua neta predilecta que fosse empreender uma perigosa viagem, não se decide a dar a chicotada inicial, mas finalmente e dominando-se a si mesmo, opta por dá-la, ressoante, corre junto ao cavalo de boca aberta e com penetrante olhar segue os saltos da amazona; mal compreendendo a sua destreza artística, aconselha-a com gritos em inglês, e enfadado exorta os moços de estrebaria que seguram os arcos a prestarem mais atenção; antes do grande Salto Mortal ordena com os braços erguidos à orquestra que se faça silêncio e finalmente, ergue a pequena e desmonta-a do temeroso corcel, beija-a na face e nenhuma ovação do público lhe parece suficiente; e ela, pelo seu lado, sustentada por ele, erguida na ponta dos pés, envolta em pó, com ambos os braços estendidos e a cabecita deitada para trás, deseja compartilhar a sua felicidade com todo o circo... como isto é o que sucede, o visitante da galeria apoia o rosto na balaustrada e sumindo-se na marcha final como num penetrante pesadelo, chora sem dar por isso.

Tradução ainda inédita de Manuel Resende.

Entretanto, e ainda a respeito de Kafka, a New Republic publica hoje um extenso artigo de Zadie Smith dedicado ao grande escritor de Praga.

E há ainda o Kafka que se passeia pelas ruas de Belo Horizonte.

24.10.03

O Povo é Sereno #15

O Ricardo Carvalho enviou-nos esta pequena provocação:

Um bom exemplo de uma cidade centralista está aqui.
Não vos parece que o discurso do centralismo lisboeta anda a esconder qualquer coisa?

O Povo é Sereno #14

Ao longo das últimas semanas, esperei encontrar nos blogs que habitualmente leio alguma referência aos erros grosseiros registados este ano no processo de colocação de professores contratados. Surpreendentemente, o resultado foi nenhum.

Recorde-se que o Ministério da Educação pretendia, com o novo sistema de colocação, tornar o concurso mais rápido, justo e transparente. A verdade é que, em poucas horas, o sistema revelou-se totalmente permeável às mais aberrantes perversões e injustiças. Foram desrespeitadas as posições dos professores nas listas graduadas, ignoraram-se as preferências regionais, entre muitas outras irregularidades, provavelmente tantas quantos os professores contratados que aguardavam ou ainda aguardam colocação.

Conheço bem o caso de uma professora cujo contacto telefónico, constante na lista graduada do ministério, já não era actualizado pelos serviços há pelo menos três anos, apesar dos professores contratados fornecerem os seus dados actualizados nos boletins anuais de candidatura. Resultado: a professora não foi colocada porque o número de telefone não existia e, por isso, não estava contactável. E este, seguramente, não terá sido um caso isolado.

Ora, afinal houve pelo menos um blog que procurou insistentemente denunciar toda esta trapalhada. Trata-se do Pedra no Charco.
Lamentavelmente, só o descobri hoje.

Post It #13

Crepe doce com gelado

- Não comes mais?
- Não me apetece.
- Então pega no talher.
- Para quê?
- Para fingir que comes.

Cimbalino Curto #28


Rua de Passos Manuel, Porto.

Fotografia de Francisco Costa.

Post Scriptum #51




FAUSTO:

- Ai! Afinal!, Filosofia,
Medicina, Jurisprudência
E até a própria Teologia
Aprofundei com consciência.
Mas, pobre tonto, sou agora
Tão sábio como outrora.

Goethe, Fausto, Primeira Cena da Tragédia.
Tradução de A. Herculano de Carvalho.

Post Scriptum #50

Quando Paul Gerhardt escreveu "A Santa Face", há muito que tinha perdido a fé.

Post Scriptum #49

Hoje há Brecht.

É um pequeno excerto da peça "Eduardo II" que Manuel Resende traduziu para a Cotovia, no âmbito da edição das obras completas de Brecht, e cuja publicação está para breve.
O excerto diz respeito ao momento em que Mortimer procura convencer o rei Eduardo a ceder às pretensões dos nobres, invocando as desgraças que decorrem da guerra. Por isso, relata a guerra de Tróia à sua maneira.

O que tem interesse é a forma como Brecht utiliza o verso livre para desvalorizar a versão tradicional do mito (note-se que muitas passagens da peça mantêm a versificação tradicional com versos de dez ou doze sílabas). Interessante pois este exercício é uma reflexão em acto sobre a História e as histórias que se contam sobre a História, fazendo-a servir os interesses do momento. Particularmente saboroso é este verso: "Terminou com um cavalo", que reduz a uma alusão a conhecida astúcia de Ulisses.
(Manuel Resende)





MORTIMER

Quando Páris comia o pão e o sal de Menelau
Na casa deste, dormia com ele - assim
Contam as antigas crónicas -
A mulher de Menelau, e ainda a levava,
Ao navegar para Tróia, na sua cama de rede.
Tróia ria. Risível parecia a Tróia
E justo para a Grécia, dar de volta,
Ao marido grego, já que era uma puta,
Esta carne dócil de nome Helena.
Só Lord Páris, compreensivelmente,
Se punha com rodeios, alegava
Que ela estava indisposta. Entretanto, vieram barcos
Gregos. Os barcos multiplicavam-se
Como pulgas. Uma manhã entraram uns gregos
Pela casa de Páris, para levarem consigo
A puta grega. Páris gritou
À janela, que esta era a sua casa,
A sua fortaleza, e os Troianos, ponderando
Que não deixava de ter razão,
Romperam em irónicos aplausos.
Os gregos seguiram pescando com as velas
Baixadas, até que numa cervejaria
No bairro do porto, alguém pôs
O nariz de outro a sangrar, com o pretexto
De o fazer por Helena.
E, quando menos se esperava, nos dias seguintes,
As mãos de muitos se atiraram a muitos pescoços.
Muitos que caíam dos barcos despedaçados,
A afogar-se, eram arpoados como atuns. No quarto crescente,
Faltavam muitos nas tendas, e nas casas
Muitos eram encontrados sem cabeça. Nesse ano,
Os caranguejos do rio Escamandro estavam
Muito gordos, mas ninguém os comia. Manhã cedo,
Estavam todos farejando o tempo,
Apenas cuidando se o peixe à tarde ia picar
Mas ao meio-dia dominava-os a confusão
E um intento.
Às dez horas ainda tinham
A figura humana,
Mas pelas onze,
Esquecendo o falar da sua terra, deixavam
Os Troianos de sentir Tróia, e os gregos, Grécia.
Além disso, sentiam os seus lábios transformar-se
Em beiços de tigre. E, ao meio-dia, fincavam
Os dentes no flanco do animal do lado,
Que gemia.
Ainda se, nas muralhas assaltadas,
Houvesse um homem sábio que
Os chamasse pelo nome da sua espécie
Talvez algum se detivesse, estarrecido. Seria bom
Que desaparecessem, lutando ainda e sempre,
Num barco de súbito velho
Que se afundasse sob os seus pés, antes de cair a noite,
Sem nome.
Mataram-se de forma atroz.
E assim a guerra durou dez anos
E foi chamada de Tróia e
Terminou com um cavalo.
Não fosse pois dos mais o entendimento
Desumano, os ouvidos moucos -
Tanto fazia que aquela Helena fosse puta
Ou avó da mais subida linhagem -,
Ainda hoje existiria Tróia, que era quatro vezes
Maior que a nossa Londres, não teria Heitor
Apodrecido com as vergonhas em sangue, e nem teria
O velho cabelo molhado de Príamo sido
Cuspido pelos cães, não teria toda essa
Geração morrido no meio-dia da sua virilidade.

Tradução de Manuel Resende.

Cimbalino Curto #27

Hortelãos.
Jardineiros.
Impressores, imprensadores e inquiridores.

Thomas Russel Gordon, Diccionario dos Officios da Cidade do Porto, Guillard, Aillaud e Cª, 1783.
(Profissões começadas pelas letras H, J e I)

23.10.03

A Gerência Agradece #12

Obrigado ao Mundo Imaginado pelas simpáticas palavras que dedicou a este blog.

Cimbalino Curto #27


Praça dos Poveiros, Porto.

Fotografia de Francisco Costa.

Post Scriptum #48

Hoje há poesia dos Países Baixos e da Flandres na Casa Fernando Pessoa. Para assinalar a realização das Jornadas de Cultura Neerlandesa (Lisboa, 10 a 26 de Outubro de 2003), de que este blog aceitou ser o patrocinador exclusivo, publicamos um belíssimo poema do poeta holandês Hans Warren (1921-2001).




CLARO

Claro que o moço na duna teve de notar
que eu o olhava intensamente.
Claro que depois passou por perto de mim
com muitos movimentos dispensáveis
mesmo fazendo como quem diz que não me via.
Claro que começou um ballet de primavera
com um miúdo amigo e uma bola,
claro que se fartou, em jeito demasiado à menina,
de passar a mão pelos longuíssimos cabelos
e olhou por cima do ombro ao fazê-lo,
dentes brilhando num rosto escuro.
Claro que mais tarde se deitou
mastigando indolente um pé de erva
naquele tocante calção de banho desbotado
sozinho numa quente concavidade da duna.
Claro que me afastei sem barulho e despercebido
e claro que passo o dia a arrepender-me disso.

Uma Migalha na Saia do Universo, Antologia da Poesia Neerlandesa do Século Vinte, Selecção de Gerrit Komrij, Tradução de Fernando Venâncio, Assírio & Alvim, 1996.

Post Scriptum #47

Já aqui publicámos um poema da poeta grega Kiki Dimoulá (n. 1931). Hoje trazemos outro. A tradução, mais uma vez, é da responsabilidade de Manuel Resende.



COMO QUEM ESCOLHE

É sexta-feira hoje vou à praça do mercado
dar uma volta nos jardins decapitados
a ver o perfume dos orégãos
cativos nos molhos.

Vou ao meidia quando caem as cotações
encontra-se fácil o verde
entre feijões abóboras malvas e lírios.
Ouço ali com que coragem falam as árvores
com a língua cortada dos frutos
oradoras empilhadas as laranjas e as maçãs
e alguma convalescença começa a ganhar cor
nas faces amareladas
de uma mudez interior.

Raramente compro. É que nos dizem escolhe.
Isso é facilidade ou problema? Escolhemos e depois
como levantar o peso insustentável
que tem a nossa escolha?
Ao passo que aquele aconteceu, que pluma! No princípio.
É que depois as consequências põem-nos de rastos.
Também insustentáveis. No fundo é como quem escolhe.

Quando muito compro um pouco de terra. Não para flores.
Para me ir habituando.
Nisto não há escolhe. Nisto, é de olhos fechados.


Tradução inédita de Manuel Resende.

Cimbalino Curto #26

Gaiteiros, galegos carretões e gaioleiros.

Thomas Russel Gordon, Diccionario dos Officios da Cidade do Porto, Guillard, Aillaud e Cª, 1783.
(Profissões começadas pela letra G)


Mais detalhes no Cimbalino Curto #25

22.10.03

Post It #12

Valdemar Cruz.

Cimbalino Curto #24


Rua de Santa Catarina, Porto.

Fotografia de Francisco Costa.

A Gerência Agradece #11

Obrigado ao Geopolítica pela referência feita a este blog.

Post Scriptum #47

Em complemento ao Post Scriptum #46 dedicado ao poeta Eino Leino, publicamos hoje a versão de Manuel Resende de "Vou Beijar um Pinho Velho", um notável poema tradicional finlandês.





VOU BEIJAR UM PINHO VELHO

Minha mãe meu pobre pai
já que não me dais marido
antes desta quinta-feira
até esta terça-feira
vou sozinha procurá-lo.
Minha blusa queima a pele
vão murchando as ervas novas
sinto como lã na cona
que precisa aquela coisa!
Já que não me dais marido
vou à aldeia de mansinho
apalpar a vizinhança.
Como não achei ninguém
vou beijar um pinho velho
açoitá-lo com a língua.

Retirado de "The Great Bear (A Thematic Anthology of Oral Poetry in the Finno-Ugrian Languages)", Suomalaisen Kirjallisuuden Seuran Toimituksia/ Finnish Literature Society Editions, 1993, p. 306.
Tradução inédita de Manuel Resende.

A imagem que ilustra o texto é uma tela de Magnus Von Wright: "View from Kaukola Ridge", 1865.

Cimbalino Curto #23

Fabricantes de cordas de instrumentos musicais, de aletria e macarrão, de polvilhos, de pomada, de oleados, de cal, de refinar açucar, ferradores, ferreiros, fiadeiras, fiteiros, fogueteiros, formeiros, fundidores, funileiros e fuseiros.

Thomas Russel Gordon, Diccionario dos Officios da Cidade do Porto, Guillard, Aillaud e Cª, 1783.
(Profissões começadas pela letra F)

21.10.03

Post It #11

Dylan Thomas: a new life, de Andrew Lycett, é a mais recente biografia dedicada a um dos mais influentes e apreciados poetas de língua inglesa. Mais detalhes aqui.

Cimbalino Curto #22


Rua de Sá da Bandeira, Porto.

Fotografia de Francisco Costa.

Post Scriptum #46

Depois da Grécia, seguimos para a Finlândia. Manuel Resende ressuscita para nós um dos grandes poetas locais: Eino Leno (1878-1926). A tradução e a nota biográfica são da sua responsabilidade.



EINO LEINO (1878-1926); poeta neo-romântico e simbolista finlandês que influenciou sobremaneira toda a evolução da poesia e da língua do seu país. Inspirou-se na épica nacional, o «Kalevala», espécie de Odisseia colectiva construída por Elias Loonröt a partir da recolha de poemas cantados pelos bardos das aldeias, e também na poesia tradicional. Os seus poemas mantêm o ritmo tradicional popular dos quatro troqueus por verso, que se reproduz em português.
Mais informações sobre Eino Leino aqui.



CÁ E LÁ

Inda um dia hei-de falar
co'os meninos do sol claro,
filhos dessas terras férteis,
filhos do abundante sul,
eles, que têm alma e chama,
bocas prenhes de palavras,
plumas como chispas, cantos
vastos como voos de aves.

Gostaria de dizer-lhes:
uma coisa é essa música
que tocais entre os vinhedos,
entre as flor's do mês de Abril,
sob o alegre sol a pino,
e outra é cantar poemas,
acender os fogos santos,
na Páscoa, nas rudes neves,
no cinzento chão de gelo.

Mal se funde alguma neve,
já gelou um palmo em torno.


Tradução inédita de Manuel Resende.

Señor Tallon #9

A imagem romântica do escritor tocado pela luz negra do sofrimento e da angústia, própria dos grandes génios criadores, continua a gozar de boa saúde. Veja-se as fotografias que acompanham o dossier que o suplemento Mil Folhas do Público dedica a Mafalda Ivo Cruz. Olhando para estas imagens profundamente comovedoras, não posso deixar de dar graças a todos os santos por não ter sido amaldiçoado pelo terrível dom da poesia.

Cimbalino Curto #21

Engomadeiras, entalhadores, enxambeladores, escrivães nos juízos eclesiástico, cível e crime, escreventes, escultores, espadeiros, espartilheiros, espingardeiros, estalajadeiros, estampistas, estanqueiros, esteireiros.

Thomas Russel Gordon, Diccionario dos Officios da Cidade do Porto, Guillard, Aillaud e Cª, 1783.
(Profissões começadas pela letra E)

A Gerência Agradece #10

Obrigado ao A Oeste pela referência feita a este blog e com um pedido de desculpa pelo atraso.

20.10.03

Post It #10

Se os editores dizem que poesia não vende, que poesia não rende, que ninguém compra poesia, que poesia não se negocia nas bolsas de valores, então, Senhores do Conselho de Sentença, dizei-me vós, por que cresce cada vez mais o número de poetas sobre a terra? Se a poesia não serve para nada, e se "lutar com palavras é a luta mais vã", porque milhões de poetas recomeçam essa luta "mal rompe a manhã"?

Uma resposta, entre muitas outras possíveis, pode encontrar-se aqui.

Ilha dos Amores #12


José de Almada Negreiros, Bailarina, não datado.


Esta imagem foi-nos sugerida pela Fernanda Alves.
Mais Almada aqui.

A Gerência Agradece #9

Obrigado ao Letra Blog e ao Mephistopheles pelas referências feitas a este blog.

Post Scriptum #45

A MOSCA

Sentava-se num caixote de munições
a ver
parte da batalha de Crecy,
os gritos,
os suspiros,
os gemidos,
o ruído dos passos caindo no chão.

Durante a décima quarta carga
da cavalaria francesa
acasalou
com uma mosca-macho de olhos castanhos
de Vadincourt.

Friccionava as patas uma na outra
enquanto, sentada em cima de um cavalo estropiado,
meditava
acerca da imortalidade das moscas.

Mais descansada foi aterrar
na língua já roxa
do Duque de Clervaux.

Quando o silêncio caiu
e só o murmúrio da decadência
ficava a pairar levemente sobre os corpos

e apenas se viam
uns quantos braços e pernas
contorcendo-se ainda sob as árvores

ela começou a pôr os ovos
no olho que restava
de Johann Uhr,
o armeiro real.

E assim
acabou comida por um gavião
que vinha fugido
do tiroteio de Estrées.


Este poema foi escrito pelo grande criador checo Miroslav Holub (1923-1998). A tradução é de Helder Moura Pereira, a partir da tradução inglesa, e encontra-se no livro "O Fazer da Poesia", de Ted Hugues (Assírio & Alvim, 2002).

Cimbalino Curto #20

Dançarinos, dançarinas, dentistas, douradores, droguistas.

Thomas Russel Gordon, Diccionario dos Officios da Cidade do Porto, Guillard, Aillaud e Cª, 1783.
(Profissões começadas pela letra D)

18.10.03

Post Scriptum #44

O Quartzo, Feldspato & Mica prossegue a publicação de traduções inéditas de autores gregos contemporâneos realizadas por Manuel Resende. Desta vez, apresentamos quatro poemas que são quatro pequenas obras-primas. O seu autor é praticamente desconhecido entre nós. Trata-se de Michális Ganas. A breve nota biográfica é também de Manuel Resende.

Michális Ganas (n. 1943). Poeta grego do pós-guerra e, como muitos da sua geração virado para o quotidiano e a sombra da infância, mas, no seu caso, tendo sempre presente o peso do trágico passado histórico. Também é autor de canções.

NAUFRÁGIO

A casa é velha cai caliça
Medem-se os flancos da parede.
Lá dentro a mãe
cá fora o polegar de deus,
que há-de destruí-la.
Vás para que canto vás,
as coisas voltam-se para te fitar,
vacas com sede.

Por detrás dos armários da cozinha
há outros armários
e por trás destes, ainda outros
até ao velho frigorífico.
Aqui adormecem as suas mãos artríticas
a senhora Lena e a senhora Maria...

A velha casa, que muito viajou,
de repente faz memórias, naufraga.


M. G.

Porta cheia de nós
remorsos da nogueira.
Gravas as tuas iniciais a canivete,
vais para a escola atrasado.
O professor que bata,
tens na boca
o gosto da imortalidade.

Diz-me se encontraste o canivete.
A porta, sei que a mudaram.


PERPLEXIDADE

Passas junto aos outros,
Medes-te às ocultas,
Dão-te por cima da tola.
Onde escondem eles
o corpo ajoelhado?
Na mala de couro
ou na alma de palha?

Disparam baixo as metralhadoras
ou te esquivas ou levantas voo.


PANCADAS SURDAS

É obra conhecer as nossas dificuldades
articular a alma
num problema difícil de palavras-cruzadas,
umas vezes na vertical, outras na horizontal,
passando a cada passo
por uns grandes quadrados negros,
tropeçando em amigos esquecidos.
Circunspectos habitualmente
por vezes insinceros
cheios de marcas de pancadas surdas.
Perguntamos como foi
e uns dizem
que escorregaram na banheira
e outros dizem
que escorregaram na rua,
esta terra anda cheia de cascas de banana.


Da recolha «Akáthistos Deipnos», Atenas, 1985. Tradução inédita de Manuel Resende.

Cimbalino Curto #19

Cabeleireiros, cabouqueiros, caixeiros, caixoteiros, calafates, caldeireiros, caminheiros, canastreiros, capadores, capelistas, carapuceiros, cardadores, carreiros, carreteiros, carniceiros, carpinteiros, carteiros, caiadores, coveiros, cerieiros, chineleiros, cirurgiões, colchoeiros, comediantes, confeiteiros, conserveiras, conteiros, contrastres de prata e ouro, cordoeiros, curtidores de sola e couros, cravadores, coronheiros, curandeiras, costureiras, cutileiros, cozinheiros.

Thomas Russel Gordon, Diccionario dos Officios da Cidade do Porto, Guillard, Aillaud e Cª, 1783.
(Profissões começadas pela letra C)

17.10.03

O Povo é Sereno #13

"Tenho um filho no 4º ano do ensino privado, a conselho de vários professores do Ensino Público."

Carta de um leitor publicada no Aviz.

Cimbalino Curto #17

A propósito do Cimbalino Curto #16, dedicado às profissões do Porto setencentista com nomes começados pela letra B, recebemos vários pedidos de esclarecimento quanto à natureza e objectivos da profissão de "Boceteiro". Leia-se, por exemplo, as questões extremamente pertinentes colocadas pelo Francisco Costa na caixa de comentários do dito post. O número de mails recebidos justifica então um outro cimbalino curto dedicado exclusivamente a este assunto.
Boceteiro era aquele que fabricava e/ou vendia bocetas, que eram pequenas caixas de papel ou madeira, de forma oval, usadas geralmente para guardar objectos de valor. Ora, uma das bocetas mais famosas é justamente a "Boceta de Pandora": "mal se viu a boceta de Pandora aberta em nosso dano… abriu as penas e se ergueu do mundo" (Filinto Elísio, Versos, Vol. II, p. 161) E, se bem estão recordados, uma das passagens mais célebres do "Amor de Perdição", é aquela em que se pode ler esta belíssima frase de fino recorte camiliano: "Guardou o seu ouro numa boceta, e deu a bolsa ao pai" (Cap. 8, p. 138, se não me falha a memória).
No Brasil, a boceta também designa uma determinada variedade de tangerineira. Mas este é um campo que não domino. Por isso, remeto-vos para os especialistas.

Ilha dos Amores #11

O Francisco Costa enviou-nos mais uma sugestão de imagem. Trata-se de uma tela de Paula Rego, "Joseph’s Dream", concebida durante a sua estadia na National Gallery de Londres, em 1990. Desta vez a sugestão do Francisco traz consigo uma originalidade: além da tela, publicamos também o estudo que esteve na sua origem. Clique nas imagens para aceder a uma versão mais ampliada.





Paula Rego, Joseph’s Dream, 1990

Post Scriptum #43

Como prometido, hoje publicamos mais dois poemas de Giórgios Seféris (1900-1971), vertidos para português por Manuel Resende. Embora o autor dispense apresentações, há uma breve nota bio-bibliográfica em Post Scriptum #41.




CALIGRAMA

Barcos sobre o Nilo
Aves sem canto de uma asa só,
Procurando em silêncio a outra,
Tacteando na ausência do céu
O corpo de um efebo de mármore;
Com tinta simpática escrevem no azul
Um grito desesperado.


ÚLTIMA ESTAÇÃO

Poucas foram as noites de luar de que gostei.
O a-bê-cê dos astros que se soletra
Tal como o traz o penar do dia que se fina,
Dele se tirando novos sentidos e novas esperanças, mais claramente pode ler-se.
Agora que aqui estou desocupado a meditar, poucas luas me ficaram na memória;
As ilhas, a dorida cor da Virgem, o lento declinar
Do luar nas cidades do norte, que por vezes lança
Nas ruas agitadas, nos rios, nos membros dos homens,
Um pesado torpor.
No entanto, ontem à noite, neste nosso último cais
Onde aguardamos que amanheça a hora do regresso
Como uma antiga dívida, uma moeda que ficasse durante anos
No cofre dum avarento, e por fim
Chegasse o momento de pagar e se ouvissem
Os cobres a tilintar na mesa,
Nesta aldeia tirrena, por detrás do mar de Salerno
Por detrás dos portos do regresso, no fim
Duma borrasca de Outono, a Lua furou as nuvens
E as casas na encosta da outra margem fizeram-se esmalte.
Silêncios que a lua ama.

Também isto é um rosário de pensamentos, um modo
De começarmos a falar de coisas que se confessam
Dificilmente, quando já não se aguenta mais, a um amigo
Que se escapou às ocultas e traz
Novas das casas e dos companheiros,
E nos apressamos a abrir–-lhe o coração,
Não vá o exílio alcançá-lo e mudá-lo.
Viemos das Arábias, do Egipto, da Palestina, da Síria;
O Estado de Comagena, que se apagou como uma pequena lanterna
Muitas vezes volta ao nosso espírito,
E grandes cidades que viveram milhares de anos,
Delas só restando pastagens de búfalos,
Campos de cana-de-açúcar e de milho.
Viemos da areia do deserto, do mar de Proteu,
Almas maculadas de públicos pecados,
Cada um com seu cargo, como o pássaro na gaiola.
O outono chuvoso nesta fossa
Inflama a ferida de cada um de nós
Ou, por outras palavras talvez, o destino fatal
Ou simplesmente os maus hábitos, a fraude e o embuste,
Ou ainda a cobiça do sangue dos outros.
Facilmente se tritura o homem na guerra
O homem é frágil, é um molhe de ervas,
Lábios e dedos que desejam branco peito,
Olhos semi-cerrados no esplendor do dia
E pernas que correriam, mesmos tão cansadas,
Ao mais pequeno assobio do lucro.
O homem é frágil e sedento como a erva,
Insaciável como a erva, e seus nervos são raízes que alastram.
Quando é tempo de colheita,
Prefere que as foices silvem em seara alheia,
Quando é tempo de colheita,
Uns gritam para esconjurar o demónio,
Outros perdem-se nas riquezas, outros peroram;
Mas, esconjuros, riquezas e retórica,
Quando os vivos estão longe, de que servem?
Talvez o homem seja outra coisa?
Talvez não seja isto que transmite a vida?
Há um tempo para semear, há um tempo para colher.

De novo e sempre o mesmo, dir-me-ás, amigo.
Contudo, o pensamento do exilado, o pensamento do prisioneiro, o pensamento
Do homem que também se viu reduzido a mercadoria
Tenta mudar-lho, que não consegues.
Queria, se calhar, ser rei dos antropófagos
Desbaratar forças que ninguém procura
E passear por campos de agapantos
E ouvir os batuques debaixo dos bambus
Enquanto os cortesãos dançam com máscaras grotescas.
Mas a terra que massacram e queimam como um pinheiro e que vês,
Ou no vagão escuro, sem água, partidas as vidraças, durante noites e noites,
Ou no barco incendiado que há-de naufragar como ensinam as estatísticas,
Tudo isso criou raízes no espírito e não muda,
Tudo isso floriu imagens parecidas às árvores
Que lançam na floresta virgem seus ramos
Que voltam a cravar-se na terra e a florir
E lançam ramos e voltam a florir e galgam léguas e léguas,
Uma floresta virgem de folhas mortas é o nosso espírito.
E se te falo por fábulas e parábolas,
É porque assim são mais doces ao teu ouvido e porque do terror
Não se fala, que é coisa viva,
Que é coisa muda e avança sem parar;
Goteja todo o dia, goteja durante a noite
A dor das recordações.

Falemos de heróis, falemos de heróis: o Michális
Que fugiu com feridas abertas do hospital
Talvez estivesse a falar de heróis, na noite
Em que, arrastando os pés pela cidade velada,
Gritava e tocava a nossa dor: "Pela escuridão
É que vamos, pela escuridão avançamos..."
Os heróis avançam na escuridão.

Poucas são as noites de luar de que gosto.


Tradução inédita de Manuel Resende.

Cimbalino Curto #16

Bainheiros de espadas e facas, barbeiros, barreteiros, barristas, barqueiros, bate-folhas, batoqueiros, biscoteiros, boceteiros, bolseiros de bolsas de cabelo, bombardeiros, bordadeiras, boticários, botequins, botoeiros, botoeiras.

Thomas Russel Gordon, Diccionario dos Officios da Cidade do Porto, Guillard, Aillaud e Cª, 1783.
(Profissões começadas pela letra B)

16.10.03

Mensagem da Gerência #5

Depois de Manuel Resende e do jovem Miguel Gonçalves, o Quartzo, Feldspato & Mica tem o orgulho de anunciar o nome do seu mais recente colaborador na área da tradução: JORGE DE SOUSA BRAGA.
Jorge de Sousa Braga (n. 1957) é um dos criadores mais apreciados da moderna poesia portuguesa. O essencial da sua obra poética encontra-se reunido na antologia "O Poeta Nu" (Fenda, 1999), tendo entretanto publicado mais dois livros com poemas inéditos: "Balas de Pólen" (Quasi, 2001) e "A Ferida Aberta" (Assírio & Alvim, 2001).
O seu notável trabalho como tradutor está disperso por diversas antologias que ele próprio organizou, como "Sono de Primavera - Poemas Chineses" (Litoral, 2ª Ed., 1986), "O Vinho e as Rosas" (Assírio & Alvim, 1995) e "A Religião do Girassol" (Assírio & Alvim, 2000), ou em livros extraordinários que revelaram ao público de língua portuguesa autores como Matsuo Bashô, Guillaume Apollinaire ou Leonard Cohen.
Jorge de Sousa Braga foi ainda um dos principais colaboradores da grande antologia "Rosa do Mundo" (Assírio & Alvim, 2001), onde nos ofereceu excelentes versões de poetas antigos de origens tão diversas como a China ou a Índia.

Post Scriptum #42

A primeira tradução inédita de Jorge de Sousa Braga para este blog é a do poema "Felicidade", do escritor norte-americano Raymond Carver (1938-1988), conhecido sobretudo pelos seus excepcionais livros de contos.
A obra poética de Carver, de uma qualidade absolutamente magistral, e de que este poema é um bom exemplo, continua inédita entre nós.




FELICIDADE

De manhã muito cedo está ainda escuro lá fora
Estou à janela a beber café
E com aquele ar matinal
Que passa por pensativo

Um rapaz e um amigo
Caminham pela rua fora
Para entregarem os jornais da manhã

Usam bonés e camisolas
E um deles traz uma mochila aos ombros
Parecem tão felizes
Embora não digam nada

Penso que se pudessem teriam dado
As mãos
É de manhã cedo
E caminham juntos

Vêm aí lentamente
O céu está a clarear
Embora uma lua pálida esteja ainda suspensa sobre a água

Que beleza. Por um minuto
A morte e ambição, até o amor
Estão arredados disto

Felicidade. Ela chega
Inesperadamente. E passa em frente
Qualquer dia de manhã muito cedo fala acerca disso


Tradução de Jorge de Sousa Braga

A Gerência Agradece #8

Obrigado ao Alexandre Andrade pelas amáveis palavras que usou para classificar este blog.

Post Scriptum #41

Giórgios Seféris (1900-1971) Prémio Nobel de 1963. Nascido em Esmirna (cidade turca com uma grande comunidade de origem grega que foi obrigada a exilar-se) e diplomata de carreira, viveu toda a vida vários exílios, o que na sua poesia se reflecte pela constante referência à distância e ao «outro mundo». Pertenceu à chamada «geração de trinta» e o seu primeiro livro (Strofí, que significa estrofe e esquina, ou curva, ou viragem), publicado em 1931, é muitas vezes indicado como ponto de partida dessa viragem na literatura grega, a viragem para o exterior, para a Europa. O poema escolhido foi escrito no exílio durante a segunda guerra mundial.

Mais uma tradução de Manuel Resende.



UM VELHO NA MARGEM DO RIO

E, no entanto, há que pesar como avançamos,
Não basta que sintas, nem que penses, nem que te movas,
Nem que arrisques o corpo na antiga ameia,
Quando o azeite a ferver e o chumbo líquido riscam a muralha.
E, no entanto, há que pesar para onde avançamos,
Não como quer a nossa dor, e as nossas crianças famintas,
E o abismo do convite dos nossos companheiros na outra margem;
Nem o que murmura a luz obscura do hospital improvisado,
Mas de outro modo; talvez queira eu dizer como
O longo rio que vem dos grandes lagos fechados de uma profunda África
E já foi Deus e depois se fez estrada e dom e juiz e delta;
Que nunca é o mesmo, como ensinam os antigos letrados,
Mas é sempre o mesmo corpo, o mesmo curso, o mesmo sítio,
E o mesmo norte.
Mais não quero que falar de modo chão, que me seja dada tal graça,
Pois a canção, tanto a carregámos de músicas que se vai afundando
E a nossa arte, tanto a decorámos, que os ouros lhe devoram a face
E é tempo de dizermos as nossas palavras poucas, pois a alma
Amanhã vai soltar o pano.
Se é humana a dor, não somos homens apenas para sofrer
E, por isso, tanto tenho meditado no grande rio;
Este sentido que avança por entre plantas e ervas
E bichos que pastam e matam a sede e homens que semeiam e ceifam
E grandes túmulos e até pequenas habitações dos mortos,
Esta corrente que abre o seu caminho não é diferente do sangue dos homens
E do olhar dos homens quando olham em frente sem medo no coração,
Sem o quotidiano temor das pequenas coisas nem até das grandes;
Quando olham em frente como o caminheiro que se afeiçoou a medir o caminho pelas estrelas,
Não como nós no outro dia olhando o jardim fechado na casa árabe adormecida,
Por trás da cerca, o jardinzinho fresco, mudando de forma, crescendo e minguando;
Mudando enquanto olhávamos, também nós, a forma do nosso desejo e do nosso coração,
Ao orvalho do meio-dia, nós, a paciente massa de um mundo que nos expele e nos molda,
Presos na rendada renda de uma vida que estava certa e se fez pó e se afundou na areia,
Deixando atrás de si apenas o indistinto balançar de uma pequena palmeira que nos deixou tontos.

Tradução de Manuel Resende

(Amanhã publicaremos mais dois textos de Seféris que pertencem a esta série de "poemas do exílio".)

Cimbalino Curto #15

Abridores de armas, estampas, etc., açafateiros, adelas, advogados, afinadores de cravos, pianos fortes e manicórdios, aguadeiros, aguardenteiros, albardeiros, alfaiates, algibebes, alugadores de sedas e galões, de cavalgaduras, de liteiras e seges, apontadores de lancetas, arrieiros, armadores de igrejas, assedadeiras.

Thomas Russel Gordon, Diccionario dos Officios da Cidade do Porto, Guillard, Aillaud e Cª, 1783.
(Profissões começadas pela letra A)

15.10.03

Post It #9

Caro Almocreve,

Reserve-me, por favor, um quilo e meio de cada um destes: Nacionalidade Portuguesa de Cristovam Colombo, de Patrocínio Ribeiro, 1927; Manual do Viajante em Portugal, de Mendonça da Costa, 1924; A Vida Sexual, de Egas Moniz, s/d; Primeiro Esboço duma Biblioteca Musical Portuguesa, de Bertino Daciano R. S. Guimarães, 1947; e Os Grandes Males, de Thomaz da Fonseca, 1903.

Obrigado pela atenção.

Post It #8

Segundo parece, os defensores dos direitos dos animais acabam de ganhar um nobel.

Post It #6

Em pleno Outubro, o Pedro está no Janeiro.

A Gerência Agradece #7

Obrigado ao Encapuzado Extrovertido e ao Bloco-notas pelas referências feitas a este blog.

Post Scriptum #40

Mais dois poemas de Nikos Engonópoulos (1910-1985), na tradução de Manuel Resende. A nota bio-bibliográfica do autor encontra-se em Post Scriptum #38.




ROMÃS = SO4H2

Escutai as lágrimas a correr
como árvores imóveis
mudas
e
calmas
quando cai a noite

e contudo o jardim
- digo -
com as incontáveis janelas
era infinito
e os seus relvados
chegavam lá abaixo junto ao mar
precisamente ali onde começa
o areal amarelo

sobre este amarelo
areal
dissemos
- acho -
as nossas mais belas canções

e contudo ali
apedrejaram-nos
com pedras
e seixos
aos punhados

e os seixos eram
os brancos
eróticos dentes
das mulheres
que amámos



POESIA 1948

Esta época
de guerra civil
não é época
para poesia
e coisas do género:
quando vamos
para
escrever
é
como se
escrevêssemos
nas costas dum
anúncio
de enterro

por isso é que
os meus poemas
são tão amargos
(e quando - de resto - o não foram?)
e são
- sobretudo -
também
tão
raros

Tradução de Manuel Resende.

Cimbalino Curto #14

Todos os dias [na Real Fábrica do Tabaco do Porto], excepto nos feriados, coze-se a folha de tabaco em quatro fornos, que algumas vezes não bastam. Fazem-se tabacos das seguintes qualidades: cidade, simonte verde, simonte amarelo, esturro de cor, esturro preto.
(…) A causa de ser geralmente mais reputado o tabaco do Porto que o de Lisboa procede de que no Porto cozem-se fornadas mais pequenas e a lenha para os fornos não é de pinho, mas de mato, cuja flor e rama comunica ao tabaco um cheiro suavíssimo.

Agostinho Rebelo da Costa, Descrição Topográfica e Histórica da Cidade do Porto, 1789.

Post Scriptum #39

HAMM: que horas são?
CLOV: as de sempre.
HAMM: viste?
CLOV: sim.
HAMM: e quê?
CLOV: zero.
HAMM: era bom que chovesse.
CLOV: não vai chover.

Samuel Beckett, Fim de Partida, 1957.
Tradução de Manuel de Seabra

14.10.03

O Silêncio é de Ouro #5

Morreu Eugene Istomin.

Ilha dos Amores #10

Há pelo menos três leitores que têm colaborado espontaneamente connosco na selecção de imagens. A Fernanda Alves, o Francisco Costa e a Teresa Rebelo têm feito o favor de nos enviar sugestões, dicas, endereços, altamente recomendáveis e que têm tornado o nosso blog bastante mais interessante. Os nossos agradecimentos a estes "colaboradores de estimação", para usar a belíssima expressão dos nossos vizinhos.
Aguardamos mais sugestões destes e doutros leitores.


A sugestão de hoje recai no Amadeo de Souza Cardoso (1887-1918) e foi-nos enviada pela Fernanda Alves.



&qoute;Saut du Lapin&qoute, 1911, óleo sobre tela, The Art Institut of Chicago, Chicago, E.U.A.


Mais imagens de Amadeo aqui.

Post Scriptum #38

Nikos Engonópoulos (1910-1985) Poeta importante do surrealismo grego, autor de "Bolívar, um Poema Grego" já publicado em português na revista "DiVersos"; inventor de uma geografia mágica em que os mais diversos continentes se misturam.

Mais uma tradução inédita de Manuel Resende.




É PROIBIDO FALAR COM O GUARDA-FREIO

I
Uns dançarinos albaneses estão a pensar voltar os seus esforços para novas direcções, de forma a que a rapaziada não se aperceba de nenhuma das amarguras e das desilusões da vida. Não se aperceba de nada antes de chegar a sua hora. De qualquer forma, os pensamentos destes albaneses não vão além dos toletes das janelas. E isto porque um italiano de entre eles, que dava pelo nome de Guiglielmo Gigi, de profissão afinador de órgãos de vento, procurou ludibriar os futuros noivos, adaptando a uma velha máquina de cozer Singer quatro funis, dois dos quais de vidro e os outros dois feitos de um qualquer metal. Que ninguém se perturbe: esta imagem é a única que ajudou o defunto faroleiro cego a descobrir o segredo dos poços.


II
(dos ventos e das águas)

Eterna a memória do nobilíssimo otomano Ali Khantzar efêndi, que foi funcionário superior do Império, o qual muito beneficiou a humanidade, auxiliado por aquele italiano, de nome Guiglielmo Giggi. Aliás, tal é também a opinião da Sra. Ártemis. A confirmação da "Sra. Ártemis" sossega as almas inquietas e contribui enormemente para os esforços dos poetas franceses do séc. XVI no sentido de congregarem um nova escola sob a designação de "Plêiade". Aliás, nenhum de nós esquece que o monge Schwartz descobriu a pólvora. E assim por diante...

(Tradução de Manuel Resende)

13.10.03

Post It #5

Em 1993 em Nîmes (França) havia uma exposição com outra cópia do urinol de Duchamp, e segundo Nathalie Heinich eles a limpavam e a guardavam com o mesmo carinho que se dedica a "Guernica". No entanto, um artista chamado Pierre Pinoncelli desencadeou uma performance: urinou no urinol fazendo-o voltar à sua função original. E a seguir destruiu-o a marteladas. Desconstruiu Duchamp ao seu modo. Isto virou caso de polícia e o ministro da Justiça francês entrou na questão alegando que "houve a degradação voluntária do monumento ou objeto de utilidade pública" no valor de 300 mil francos. Aquele artista conceitualista contra-argumentou que ele, como um autêntico duchampiano, exigia que o urinol não fosse restaurado, nem fosse tratado como objeto vandalizado, mas como nova obra de arte, que a ele agora pertencia. Enfim, nesse círculo vicioso, alegava que havia se apropriado da apropriação.

Mais detalhes sobre a importância do urinol de Duchamp, pela mão agudíssima de Affonso Romano de Sant'anna, aqui.

Post It #4

Em São Paulo, um conhecido músico troca arte por alimento.

Ilha dos Amores #9

A Teresa Rebelo enviou-nos uma nova sugestão: Roy Lichenstein. Para começar a semana de forma pop.


M…Maybe de Roy Lichenstein (1923-1997).

Mais Roy Lichenstein aqui.

Post Scriptum #37

UM SONETO DE CECCO ANGIOLIERI

Se fora fogo, eu abrasava o mundo,
Se fora vento eu o arrasaria,
Se eu fora a água então o afogaria,
Se fora Deus, mandava-o prò profundo.

Se fora papa, em delírio jucundo
A todos os cristãos eu prenderia,
Se fora imperador, o que faria?
Golpeava a todos o pescoço, fundo.

Se fosse a morte, ao meu pai procurava,
Se fosse a vida, o não queria mais
E coisa igual com a minha mãe se dava.

Se fosse Cecco, como o sou de mais,
As mais lindas mulheres pra mim guardava
E deixaria as feias para os mais.

Cecco Angiolieri da Siena (1258-1300)

(Tradução de A. Herculano de Carvalho, "Oiro de Vário Tempo e Lugar", O Oiro do Dia, 1983).

Cimbalino Curto #13

Depois ficou-se recordando, por instantes, como o som da água o aborrecia nas noites chuvosas do Porto.

Nicola Vaptsarov, No Porto, Editora Bansko, 1933.

Señor Tallon #8

Não ter nada para dizer. Isso não é o pior. O pior é não saber como aproveitar essa espécie de silêncio. O vazio é assustador para o escritor banal. E é uma dádiva para o grande poeta.

A Gerência Agradece #6

Obrigado à Natureza do Mal e ao Rui Almeida pelas simpáticas referências feitas a este blog.

10.10.03

Post it #3

Confirmado. Schwarzenegger declarou hoje que não será mais ator enquanto for governador. A humanidade agradece ao povo da Califórnia e faz votos de que Schwarzenegger seja reeleito para todo o sempre, per omnia secula seculorum, ad eternum e o escambau. Amém.
(Sérgio Faria)

Ilha dos Amores #8

Recebemos mais uma sugestão de imagem do Francisco Costa. Uma gravura de Joan Miró (1893-1983): Le Matador, de 1969.



Joan Miró, Le Matador, 1969


Entretanto, e ainda no que respeita às artes plásticas, há dois bons artigos recentes sobre o livro de Robert Hughes dedicado a Goya. Podem encontrá-los aqui e aqui.

A Gerência Agradece #5

Obrigado ao Vidro Azul pela referência feita a este blog.

Post Scriptum #36

O Quartzo, Feldspato & Mica tem o prazer de anunciar mais uma colaboração na área da tradução. Miguel Gonçalves é um jovem e promissor tradutor que traz até nós um poema de John Berryman (1914-1972).
Berryman foi um dos mais admirados e influentes poetas americanos do século XX. A sua obra mais conhecida, "77 Dream Songs", foi publicada em 1964 e constitui um dos momentos altos da história da literatura americana mais recente. Até à data ainda não foi traduzido em Portugal e, tanto quanto me é possível saber, o mesmo se deverá passar no Brasil.



SONETO 117

Estávamos cheios de força a noite passada por esta hora,
as borboletas voavam e os daiquiris gelados descaíam,
Lise estava deitada de costas no chão,
séria e sublime, ouvindo Schubert,
a minha cabeça explodia com uma rima:
foi uma bela noite, uma noite para agradar,
beijei-a na cozinha – êxtases –
e ocultámos o crime sob um manto de ternura.

O tempo está a mudar. Estava frio esta manhã
enquanto me dirigia para o parque, sem expectativas,
centenas de velhos sonetos no meu bolso
para lhe ler caso ela viesse. Mas os pinheiros entretanto
encheram-se de sol e a minha senhora não veio
em jeans azuis e camisola. Sentei-me e escrevi.

John Berryman (1914-1972). In Collected Poems, 1937-1971, Farrar, Straus & Giroux, Inc. Tradução de Miguel Gonçalves.

9.10.03

Post Scriptum #35

Se é sabido que, na "República", Platão deu cabo dos poetas porque eram imitadores de terceira e afirmava que, em princípio, não os queria na sua Pólis, como se justifica que escrevesse poemas aos namorados? (Manuel Resende)


Mais uma tradução exclusiva de Manuel Resende para este blog. Três epigramas de Platão (428 a.C.-347 a.C.).

Atiro-te a maçã e tu se acaso me tens amor
Aceitando-a, dá-me a tua virgindade
Se hesitas - que isso não se dê! - então toma-a na mesma
E lembra-te que a hora é só um curto instante

***

Maçã eu sou e quem me lança te ama; vá, faz que sim,
Xantipes; tu e eu havemos de murchar.

***

Agora, Aléxis não é nada, mas se eu belo o disser,
Em torno logo todos se põem a olhar.
Minh'alma, por que mostras ossos tu aos cães se a seguir
Vais sofrer? Fedro, não foi assim que o perdemos?

Post Scriptum #34

A Golden Gate Bridge, que se ergue sobre a Baía de São Francisco, é uma das mais belas e famosas pontes do mundo. Por muitas razões. Mas esta é a mais esmagadora de todas.

Ilha dos Amores #7

A Fernanda Alves enviou-nos mais uma sugestão. Desta vez, uma tela de Pieter Bruegel (1525-69), que se encontra no Museu Mayer van den Bergh, em Antuérpia. Clique na imagem para ver uma versão mais ampliada.


Pieter Bruegel, Dulle Griet (Mad Meg), c. 1562.

Post Scriptum #33

Mário de Andrade nasceu há exactamente 110 anos, a 9 de Outubro de 1893. Poeta, romancista, crítico literário e de artes plásticas, respeitado musicólogo, Mário de Andrade foi, nas palavras de Giuseppe Ungaretti, "o maior dos poetas brasileiros contemporâneos". O seu livro "Paulicéia Desvairada" (1922) representa o momento fundador da poesia brasileira moderna, e "Macunaíma" (1928) é um dos grandes romances do século XX. Mário de Andrade morreu aos 52 anos, em 25 de Fevereiro de 1945.
O texto que publicamos é o primeiro de "Paulicéia Desvairada" e é uma homenagem do autor a São Paulo, cidade onde nasceu, viveu e morreu.

INSPIRAÇÃO

São Paulo! comoção de minha vida…
Os meus amores são flores feitas de original!…
Arlequinal!… Traje de losangos... Cinza e ouro…
Luz e bruma… Forno e Inverno morno…
Elegâncias subtis sem escândalos, sem ciúmes…
Perfumes de Paris... Arys!
Bofetadas líricas no Trianon… Algodoal!…

São Paulo! comoção de minha vida…
Galicismo a berrar nos desertos da América!

8.10.03

Post it #2

Será que ninguém reparou ainda neste blog?

Post Scriptum #32

A MORTE DO ARTILHEIRO

Do sono da minha mãe eu desci ao Estado,
E encolhi-me na sua pança até gelar a minha pele molhada,
Seis milhas acima da terra, livre do seu sonho de vida,
Acordei com negra antiaérea e caças de pesadelo.
Quando morri varreram-me da cabina com uma mangueira.

Randall Jarrell (1914-1965)
Tradução de José Alberto Oliveira para a Rosa do Mundo, Assírio & Alvim, 2001.

Ilha dos Amores #6

A Teresa Rebelo enviou-nos esta sugestão para a nossa rubrica dedicada às artes plásticas: um brevíssimo mas esclarecedor apontamento sobre o famoso construtor de mobiles Alexander Calder.


Alexander Calder, Boomerangs, 1941

As esculturas irrequietas

Alexander Calder nasceu na Pensilvânia (E.U.A.) em 1898 e morreu a 11 de Novembro de 1976 em Nova Iorque. Escultor experimentalista com formação em engenharia, ficou conhecido sobretudo pelos mobiles - criaturas feitas quase sempre de arame e alumínio, mais ou menos coloridas, mais ou menos gigantescas, que hoje sobrevoam cabeças em museus de todo o mundo. Alguém disse que os mobiles de Calder "sintetizam a abstracção linear de Mondrian, as formas biomórficas de Miró* e as experiências de escultura cinética e em suspensão de Duchamp". Para mim, sintetiza um período da nossa vida que a memória não consegue alcançar. Aqueles primeiros meses, em que deitados confortavelmente na cama, aconchegados de cinco em cinco minutos por mãos de mãe, inocentes e felizes, dizemos gugu dada.




*Não é por acaso que na Fundação Joan Miró, em Barcelona, pode ser apreciada "A Fonte de Mercúrio", uma obra de Calder oferecida pelo próprio ainda em vida.

Teresa Rebelo

Post Scriptum #31

António Pedro Ribeiro tem um novo livro. Chama-se "Sexo, Noitadas e Rock n’Roll" (Edições Pirata) e sucede a "À Mesa do Homem Só. Estórias" (Edições Silêncio da Gaveta). A. Pedro Ribeiro é um dos mais conhecidos diseurs das noites do Porto, Braga e Vila do Conde. E é um excelente poeta. E é meu amigo. Alguns dos seus poemas podem ser lidos aqui.

7.10.03

Mensagem da Gerência #4

Tal como havíamos anunciado, o Quartzo, Feldspato & Mica está empenhado em divulgar a obra de autores estrangeiros menos conhecidos entre nós. Autores que, apesar da importância que possam ter, continuam de fora dos planos das editoras portuguesas. Nesse sentido, contactámos alguns dos nossos melhores tradutores.
E é com orgulho que anunciamos um primeiro contrato de amizade e exclusividade com Manuel Resende (n. 1948), tradutor profissional e fundador, juntamente com Carlos Leite, Jorge Vilhena Mesquita e José Carlos Marques, da revista Di Versos (lançada em 1996), dedicada maioritariamente à tradução de poesia. Entre os seus trabalhos mais conhecidos, contam-se traduções de Shakespeare, Bukowski, Carroll, Mishima, Kafka, Kóstas Takhtzís, Villiers de L'Isle-Adam, e sobretudo de poetas gregos como Seféris, Elytis, Kavvadias, ou Kiki Dimoulá (de quem já aqui publicámos um poema).
Os leitores de poesia certamente reconhecerão a importância deste acontecimento. Isto significa que a partir de hoje podem encontrar neste blog poemas de importantes autores estrangeiros, alguns dos quais totalmente inéditos em português, e trazidos até nós pela mão de um dos mais conhecidos tradutores portugueses.
A primeira tradução de Manuel Resende publicada exclusivamente neste blog é a de um belíssimo poema de amor (ou dois, segundo a tese de M.R.) do trovador occitano Raimont Rigaut ou Raimon Rigaut, que viveu por volta de 1250, pelo pouco que se sabe dele. É a primeira tradução de um poema de Rigaut feita em português.

Post Scriptum #30


A seguinte composição é atribuída a Raimont, ou Raimon, Rigaut. Não é de acreditar que se trate de um único poema, quer porque na primeira estrofe se defende uma tese completamente contraditória com a da segunda estrofe, quer porque a métrica é diferente (reproduzi exactamente a métrica do original). Trata-se, mais certamente, de dois fragmentos de trovas diferentes. De qualquer forma, interessante exemplo de poesia trovadoresca, que honraria qualquer Pipi das meias altas.

Manuel Resende



Dama que me der seu amor
Primeiro mo deixe fazer
Depois me dê seu acolher,
Seu acolher e seu honrar,
Seu doce abraço e seu beijar,
Que eu não sou um peco cortês,
Que de amor não sabe os porquês.
Tenha-me por louco quem queira,
Nisto não há melhor maneira.

Nunca por amor da cona
A dama pedi seu amor
Mas por sua fresca cor
E sua boca que almejo.
Que eu tantas conas teria
Quantas as que requeria.
Por isso prefiro eu o beijo
À cona que mata o desejo.

in «Terre des Troubadours», Les Editions de Paris, 1996, p. 30.

Ilha dos Amores #5


Ron B. Kitaj, The Ohio Gang, 1964.

Esta belíssima imagem foi-nos sugerida pelo leitor Francisco Costa.