9.8.04

Post Perlimpimpim #3

Um post que postei aqui aqui há dias provocou uma reacção imediata do João Luís Barreto Guimarães (o qual é poeta e médico), que me deixou a pensar durante muito tempo. Creio que a esmagadora maioria do planeta se está nas tintas para o que penso, o que só lhe fica bem. Mas, atendendo a que haverá duas ou três pessoas curiosas de saber se tenho algum fundamento (atenção, não escrevo "razão") no que digo, aí vai aço. Os desinteressados podem desligar. Obrigado.

Disse eu que uma consulta num consultório médico na Bélgica custa pouco mais do que um terço do mesmo acto clínico em Portugal. E concluí daí que a sociedade belga é mais igualitária do que a portuguesa. Depois de muito reflectir, mantenho o que disse.

Atenção, eu não disse que os médicos belgas ganham mais do que os portugueses. Ai não disse? Pois não disse.

É que, primeiro, aposto com quem quiser em como o preço ou aluguer de um consultório na Bélgica é bastante inferior ao de um consultório em Portugal. Isso tem a ver com o mercado imobiliário na Bélgica. É muito regulamentado (mas muitíssimo: não há centros comerciais a dar com um pau, os hipermercados são a conta-gotas, não se podem criar zonas de escritórios sem habitações, as rendas são condicionadas, isto é, indexadas à inflação, não se pode destruir quintais para alargar os prédios, etc.), de maneira que funciona melhor (mais concorrencial, menos especulativo) do que o português. Bruxelas, que é uma cidade cara, no contexto belga, é mais barata do que Lisboa e tem uma malha urbana muito mais uniforme do que qualquer cidade portuguesa, isto é, uma maior mistura de funcionalidades: há consultórios médicos, assim como há padarias e mercearias por todo o lado.

Segundo, como salientei, são raríssimos os médicos que têm secretária, porque as pessoas, a começar pelos próprios médicos, admitem que os médicos são gente como os outros, não são anjos que dejectam ambrósia e mel.

Terceiro, sempre tenho que reconhecer alguma falácia no que escrevi, mesmo que me custe (poxa, custou mesmo, mas menos que uma injecção). E a falácia é esta: o sistema belga é diferente do português. E eu limitei-me a comparar um aspecto: o preço das consultas. Na sua esmagadora maioria, os médicos são convencionados e, nos seus consultórios, trabalham para as caixas de previdência locais (a socialista, a cristã-democrata, a liberal e a independente são as principais). Já ouvi dizer que há médicos que não cumprem os preços convencionados das consultas (parece que podem, se o paciente for ou estiver distraído), mas a mim nunca me calhou (e sou distraído).

Ora, é evidente que, num país onde os salários são superiores, onde as empresas, também, têm uma medicina no trabalho mais a sério (e podem permitir aos seus trabalhadores que façam a revisão anual no médico assistente de sua escolha), etc., etc., o número de consultas médio de cada pessoa é certamente superior ao português e de carácter mais preventivo (não curativo). Atenção: isto é dedução minha, não um dado estatístico confirmado, mas creio que é fundamentado.

Nunca fui mais ao médico do que na Bélgica. Se é certo que estou mais velho, não é menos certo que nunca me lembraria de ir tantas vezes se o sistema não fosse tão impositivo. Ora o meu médico já me conhece os achaques e manhas de cor e salteado (e eu também já o conheço de ginjeira, só que não posso revelar pormenores, devido à deontologia profissional). Muitas consultas são pouco mais do que um pró-forma, para ver como vai a coisa. Um luxo.

Estou a lembrar-me de um pormenor que é paralelo a isto: se uma pessoa não fizer uma limpeza dos dentes anual não tem direito a pagamentos de dentaduras e coisas assim.

Não quero defender que o sistema é melhor ou pior do que o português, mas nas condições gerais da sociedade actual é mais igualitário, e nessa parte é que continuo a achar que tenho razão. Por outro lado, preciso de declarar que isto que digo, o digo um pouco a contragosto. E porquê, estimados ouvintes ou, melhor, lentes?

Porque o sistema de saúde belga é um exemplo perfeito do vício do compromisso que caracteriza essa sociedade: compromisso entre a medicina privada e o sistema público de saúde. O mesmo espírito de compromisso que faz com que as eleições pouco mudem no andamento da sociedade. Ganhem os socialistas, os liberais ou os cristãos-democratas, o governo é sempre uma coligação variegada socialistas-democratas-cristãos, ou socialistas-liberais, ou liberais-democratas-cristãos, ou até arco-íris (socialistas-liberais-verdes, etc.), etc. No entendimento, porém, de que certos equilíbrios fundamentais nunca são postos em causa.

Creio que uma das razões que permite manter hoje esta sociedade de pé é, hoje em dia, absolutamente excepcional: a Bélgica (que já não tem o Congo) é sede da Otan e da UE e por isso beneficia dos rendimentos que daí lhe advêm. Creio também que este tipo de compromisso não poderá manter-se muito tempo, face à tempestade neo-liberal que por aí vai.

Se ainda não perceberam, explico que nunca fui social-democrata nem partidário de compromissos com Freitas do Amaral, e que já é tarde para mudar. Mas isso não me obriga a ser cego. E reconheço que a associação Soares+Amaral (isto é uma maneira de falar) produziu uma sociedade (mesmo capitalista) mais fácil de viver (e mais humana) do que esta portuguesa, onde, apesar da revolução do 25 de Abril, os engenheiros ainda são "senhores engenheiros" e qualquer licenciado é "senhor doutor", e as filhas do António Ferro são êxitos editoriais. E isto não sendo uma monarquia, como a Bélgica. Ora, poxa, para um republicano socialista e de extr3#@ ixk3rd@, isto sabe mal ao passar na boca.

Mas, como disse o Trotsky, a burguesia tem muito mais experiência. Isto é, a burguesia inteligente, com substrato.

Saúde e Fraternidade (e auto-ironia), caros amigos.