O Povo é Sereno #143
MESMO NA BISCA DÁ GOSTO
Às vezes a emoção domina-me. Ante a beleza, os rasgos de muito talento, um horizonte sobre as montanhas, um pequeno bosque à entrada dum deserto? Sim, em todas essas circunstâncias. Mas, garanto com sinceridade e doçura algo irónica (magoada?): muito mais me emociono agora ante a estupidez pura e dura. No fundo, admirável como uma flor um pouco maldita.
Claro, vocês não acreditam, pensam que estou a fazer espírito. Mas e se eu vos disser que é a verdade verdadinha?
Deixem-se de coisas. E meditem em que sou um tipo um pouco sofisticado: conheci alguns génios, tive experiências de assarapantar; vi países distantes e amenidades em regiões inóspitas; li muitos livros, contemplei muitos quadros - bons livros e bons quadros - e como "gourmet" basta que notem que pela estrada real da minha garganta, até ao saco-das-migas, passaram algumas das mais deliciosas iguarias que a saborosa inventiva de povos criou. Estão a seguir-me?
Agora o que me turba e perturba, o que me excita mesmo - é mais a estupidez, quando poderosa e quase criativa. E quanto mais descarada melhor.
O meio político, evidentemente, lança-me em deliciosas navegações pelo prazer, admito que torcido, da emoção mefistofélica. Mas outros sectores e outras personalidades também me comprazem.
Há bocado, por exemplo, um digno futebolista da (gostosamente algo estúpida) selecção olímpica, dizia altiva e estupidamente que os erros cometidos em barda iriam ser debatidos mas - e aqui está o motivo do meu gosto - "entre nós e não na praça pública!".
Ainda bem que nunca este senhor pensou que é tributário do povo português, que a praça pública a que alude é nada menos que o local onde o povinho tem direito a pedir contas a quem o representa!
Para mim, desde há um certo tempo em que me tenho sofisticado, a estupidez altiva (soberba) é um festim para o meu interior a depravar-se paulatinamente. Que delícia!
Nicolau Saião
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