28.8.04

O Povo É Sereno #146

Esta semana, no mítico IP5, (mítico sobretudo para nós, camionistas e emigreses), operação caracol.

Os primeiros da nossa espécie (isto é, os camionistas) protestam e querem que o Governo baixe os impostos dos combustíveis.

A minha alma (a parva) balança:

1) Gostaria que o Lopes Santana caísse com grande estrondo, batendo, com aqueles gestos presuntuosos, no princípio da realidade;

2) Gostaria ainda mais que a malta acordasse.

Porquê? - pergunta o ansioso leitor. Por muito simples:

porque baixar os impostos dos combustíveis é, com sua licença e do Edgar Correia, querer tapar o sol com a peneira. Penso sempre naqueles holandeses que vão sobreelevar os diques durante alguns anos desesperadamente e debalde (pois de balde) para tentarem conter a inexorável ascensão das águas (sempre quero saber onde os vão alojar, aos holandeses, os nobres europeus seus vizinhos).

Puxa, parece que estou a gozar, mas não estou. Estamos a mudar de época. O petróleo está caro e vai ficar caro.

O capitalismo em geral e os neo-liberais em particular tentaram e continuam a tentar convencer-nos de que a melhor maneira de lutar contra a pobreza é dar aos ricos a possibilidade de investirem, para que eles criem novos empregos, e etc., isto é, o produtivismo incessante, não vou estender-me sobre o assunto. Dizem eles em resumo: "na maré alta, todos os barcos sobem".

Só que, tal como o capitalismo configura o aumento da produtividade (em função do lucro privado), o crescimento exponencial do PIB (coisa impossível de conseguir num mundo finito), temos assegurado o esgotamento dos recursos para assegurar um rendimento razoável para os nossos predadores (já repararam como a figura do predador invade os nossos cérebros como explicação universal?)?

Pronto, pronto, já me estendi e já me embrulhei, mas é assim: eu tenho, faz de conta, 20 mil milhões de dólares e exijo um "razoável" retorno sobre o investimento de 5% (por amor de Deus, não é muito...); já viram quanto "eu" quero, em valor absoluto, daqui a 10 anos? Mas é isso que "eu" exijo da sociedade para continuar a investir, senão, não vale a pena. "Eu" sou o empresário e o lucro é o salário do meu trabalho, puxa! Não sejamos miserabilistas!

Poetas, engenheiros, cientistas, operários, e outra gente menor, que são? Especialistas nos seus domínios! Simples técnicos! "Eu" sou o empresário, aquele que domina os arcanos da nossa sociedade, quase deus, tenho estátua do José Rodrigues, puxa! Até a arte eu compro! Sou eu quem detém os direitos de propriedade material ou intelectual. Preciso de pensar? Contrato um pensador.

Alto aí, diz o leitor, e com razão. Começámos no IP5 e já vamos na propriedade intelectual? Pronto, desculpem, pronto... Então, bamos lá pra Biseu, porra e para o IP5 outra vez.

É mito dos economistas (bem, dos economistas dominantes, dos economistas que nos dominam, simples psitacistas da realidade realmente existente, não dos grandes teóricos, Ricardo, Marx, Keynes) que o mercado e os preços do mercado organizam por si optimamente a sociedade, mesmo contra a vontade dos humanos que realmente (sobre)vivem. Ora, pergunto eu: qual o verdadeiro preço do petróleo? Os 10-20 dólares que duraram nos anos 80-90? Os 40 dólares de hoje?

É óbvio que algum desses preços tem de ser mentira. Dir-me-ão: pois, o cartel da OPEP distorce o mercado. Só posso dizer uma coisa: o cartel da OPEP (por interesses próprios, não o nego, e que não são os meus interesses) tentou precisamente estabilizar os preços, que, nos mercados, flutuam em função das expectativas especulativas... E a verdade é que, durante os anos 80 e 90, quando o tal cartel era mais fraco, o petróleo estava a preços que não reflectem a sua escassez. Muito simples: o petróleo não se fabrica, o petróleo é escasso, o petróleo vai acabar, dentro de algumas dezenas de anos. Os poços que existem começam a esgotar-se e a seguir virá a exploração de poços cada vez mais exóticos.

Ora, e aqui é que bate o ponto: é racional uma sociedade que, à custa de petróleo demasiado barato, se organizou em torno do "just in time", do outsourcing, da deslocalização e do poder imenso da grande distribuição? Quero eu dizer, cada empresa se dedica apenas ao que sabe melhor fazer e encomenda tudo o resto a empresas de fora, as quais correm com os seus camiões a fornecer-lhe no tempo preciso aquilo de que ela precisa?

A nível mundial, é lógico que aviões pressurosos levem a Paris o peixe fresco de África onde o aguarda uma frota imensa de camiões que espalha tal preciosa mercadoria pelos estômagos dietéticos dos consumidores preocupados com a sua linha estragada pelos excessos da carne?

É lógico que os EUA sobrevivam comprando cada vez mais fora e vendendo promessas de pagamento, simples papéis, aos seus fornecedores?

E, pior do que tudo, a nossa grande revolução tecnológica dos últimos anos, que foi ela? A compressão de custos na distribuição, nem mais. As palermices das dotcom que vinham assegurar um maravilhoso mundo novo, reduziram-se a uma coisa muito simples: falhadas a maior parte das dotcom que iam trazer legumes e pizzas mais baratos a nossa casa, ficaram as centrais de compras das grandes empresas e das grandes cadeias comerciais que procuram (por quanto tempo, Catilina) espremer ao máximo os seus fornecedores: elas são os "consumidores" que venceram na Internet. Não me vou imiscuir na terrível guerra das coisas do espírito (venda de livros, ou piratagem de discos) que por aí lavra, pois, na minha modesta opinião, é coisa de somenos.

Ora, reparem: as grandes cadeias de distribuição organizaram as nossas cidades em função do petróleo barato. Parabéns, estimados ouvintes: estais preocupados com como pagar as reformas? Pois sempre quero saber quem vai pagar as vossas auto-estradas, as reparações das vossas pontes, as belas rotundas, as máquinas que regularmente limpam as simples e modestas estradas municipais para que possamos vislumbrar os sinais de trânsito.

E as férias nas Caraíbas? Petróleo barato. E a loucura imobiliária do Algarve? Petróleo barato. E o festival do Sudoeste? Petróleo barato. Eh pá, quando há tanta coisa maravilhosa à nossa volta: por exemplo, dois olhos que podem reflectir tudo o que há no mundo próximo e longínquo. Basta ter olhos de ver e de sentir.