13.8.04

Post Scriptum #320



John Berger
(Inglaterra, n. 1926)

UMA VEZ NO TEMPO DE UMA VIDA

Tudo começou numa pequena colina um pouco acima e a norte do sítio onde eu puxava o feno. No alto da colina havia três pereiras abandonadas, duas carregadas de folhas e a outra mostrando os troncos já acinzentados, sem uma única folha, morta. Por trás, o céu azul com grandes nuvens brancas.
Este pequeno lugar do campo - a nunca antes prestara atenção - captou o meu olhar e agradou-me. Agradou-me como aqueles rostos com que nos cruzamos na rua, rostos desconhecidos, sem nada de especial que os destaque mas que nos agradam por revelarem a vida no acto de ser vivida.
Pouco tempo depois, tive a sensação de que estava a ser observado. Durante um breve instante, julguei que estava alguém no alto da colina ou que algum rapaz tinha subido a uma das árvores. A pereira morta lá estava, ladeada pelas outras, cheias de vida. E ninguém ali havia.
Quando um homem aparece de surpresa a um animal, ou vice-versa, o campo de visão que entre eles se cria exclui tudo o resto à sua volta. Foi algo desse género o que se passou, com a diferença de que, entre o homem e o animal, há habitualmente uma relação de igualdade, ao passo que naquele caso eu sentia que a desigualdade era patente. Eu estava menos presente do que o pequeno lugar do campo que me observava.
(...)

Tradução de Helder Moura Pereira.