21.8.04

Post Scriptum #331

Para chatear, aqui vai um texto do Paul Celan. Dizem que se refere a uma conversa que queria ter tido na montanha com Adorno. Adorno tinha escrito que após Auschwitz já não era possível escrever poesia. Segundo ainda se diz, Paul Celan tentou encontrar-se como ele para discutir isso, mas por não sei que razão, não se encontraram. Celan teve outro encontro falhado com o chamado filósofo, oops, pensador, alemão Heideegrer, quer dizer Heideger, puxa, Heiddeger, arre, Heiddegger. O Lenz de que aqui se fala é um dramaturgo alemão do fim do século XVIII, percursor do naturalismo, autor de peças "sociais". Tradução em cuecas. Sei que há outra do João Barrento, certamente melhor do que a minha, mas esta é minha, feita com o meu sangue e a minha dor.

Conversa na serra

Uma vez ao cair da noite, afundara-se já o sol e não só o sol, lá foi, saiu da sua casinha e lá foi, o judeu , judeu e filho de judeu , e com ele o seu nome, nome impronunciável, lá foi e veio, veio a pequenos passos por aí fora, fazendo-se ouvir pelo caminho, com o seu bordão, veio sobre as pedras, estás a ouvir-me, sim estás, sou eu, sou eu, eu e quem tu ouves, quem supões que ouves, eu e o outro, e, portanto, lá foi, ouvia-se a andar, lá foi ao cair da noite, já se tinham afundado algumas coisas, foi por sob as nuvens, foi à sombra, a sombra própria e a sombra estranha, pois o judeu, como sabes, que coisa tem que seja mesmo dele, que não seja emprestada, tomada e não restituída, lá foi, portanto, seguindo o seu caminho, o belo, incomparável caminho, caminhando como Lenz pelas serras, ele a quem deixaram viver lá em baixo, onde lhe pertencia viver, nos terrenos de baixo, ele, o judeu, caminhava, caminhava.
Caminhava, sim, caminhava por essa estrada, essa bela estrada.
E quem achas que veio ao seu encontro? O primo, o primo veio ter com ele, o primo direito, mais velho um quarto de vida de judeu, alto veio, veio, também ele pela sombra, emprestada, claro, pois, pergunto eu e pergunto-te a ti, como poderia vir com a própria sombra se Deus o fez judeu, veio, alto, veio ter com o outro, Gross chegou-se a Klein, e Klein, o judeu, calou o bordão diante do bordão do judeu Gross.
As pedras, também estavam caladas. E havia silêncio nas serras onde eles caminhavam, um e outro.
Portanto, havia silêncio, silêncio ali nas montanhas. Mas não durou muito o silêncio, pois quando vem um judeu e encontra outro, o silêncio não dura, mesmo nas montanhas. Pois o judeu e a natureza são estranhos entre si, sempre foram e ainda são, mesmo hoje, mesmo aqui.
Portanto, aí estão eles, os primos. À esquerda, floresce o lírio-turco, floresce selvagem, como em mais lugar nenhum, e à direita, o rapúncio, e o dianthus superbus, o cravo soberbo, não muito longe. Mas, eles, os primos, por culpa de Deus, não têm olhos, ou, melhor, até eles os têm, olhos, mas há um véu suspenso em frente deles, não, à frente não, por detrás, um véu que se move. Mal lá entra uma imagem, fica presa na teia, e começa a tecer-se um fio, e começa a tecer-se à volta da imagem, um fio-véu; vai-se tecendo à volta da imagem e gera um filho, meio imagem, meio véu.
Pobre lírio-turco, pobre rapúncio. Ali estão os primos, num caminho da serra, o bordão calado, as pedras caladas, e o silêncio não é silêncio. Nenhuma palavra se calou e nenhuma frase, é apenas uma pausa, um espaço vazio entre as palavras, um espaço branco, vêem-se as sílabas à espera ali em torno, à espera. São língua e boca, como antes, ambos, e nos seus olhos pende um véu, e vós, pobres flores, nem sequer estais aí, nem floris, não existis, e Julho não é Julho.
Os fala-baratos! Mesmo agora, quando as línguas deles tropeçam torpes nos dentes e os lábios deles não se arredondam, têm algo a dizer um ao outro. Bem, deixemo-los falar?
"Vieste de longe, fizeste um longo caminho para aqui chegar ?"
"De longe vim. De longe, como tu."
"Eu sei."
"Sabes. Sabes e vês: a terra dobrada até aqui, dobrada uma vez e outra vez e três vezes, e aberta no meio, e no meio há água, e a água é verde, e o verde é branco, e o branco vem ainda mais de cima, dos glaciares, e poderíamos dizer, mas não deveríamos, que esta é a língua que aqui conta, o verde com o branco lá dentro, uma língua que não é para ti nem para mim, porque, pergunto-te eu, para quem é destinada, a terra, não para ti, digo eu, não te é destinada, nem para mim, uma língua, bem, uma língua sem Eu e sem Tu, só com Ele, só com Isso, percebes, só com Ela, e mais nada."
"Percebo, percebo. No fim de contas, vim de muito longe, de muito longe como tu. "
"Eu sei."
"Sabes e queres perguntar: e mesmo tendo vindo de tão longe, até aqui, mesmo assim, porquê e para quê?"
"Porquê e para quê? Porque tinha de conversar, talvez, comigo ou contigo, conversar com a minha boca e a minha língua, não apenas com o bordão. De facto, com quem é que ele conversa, o meu bordão? Conversa com as pedras, e as pedras, com quem conversam elas?"
"Com quem hão-de conversar, primo? Não conversam, falam, e quem fala não conversa com ninguém, primo, fala porque ninguém o ouve, ninguém, ninguém, e nessa altura ele diz, ele mesmo, não a boca nem a língua, ele, e só ele, diz: estás a ouvir-me?"
"Estás a ouvir-me, diz ele - eu sei, primo, eu sei? Estás a ouvir-me, diz ele? E Estás-a-ouvir-me não diz nada, não responde, porque Estás-a-ouvir-me é só um com os glaciares, é o que se dobrou em três e não é para os humanos? O verde e branco que ali está, com o lírio-turco, com o rapúncio? Mas eu, primo, eu que aqui estou no caminho, aqui onde não pertenço, hoje, não porque ele se tenha afundado, o sol e a sua luz, eu, aqui, com a sombra, a minha e a que não é minha, eu-eu que posso dizer-te:
Estou deitado nas pedras, no passado, sabes, nas lajes; e perto de mim, os outros que eram como eu, os outros que eram diferentes e no entanto como eu, meus primos. Estão deitados, dormindo, dormindo e não dormindo, sonhando e não sonhando, e não me amavam e eu não os amava, porque eu era um e quem quer amar um quando há muitos, mesmo mais do que os que estão deitados junto a mim, e quem quer ser capaz de amar todos, e não to escondo, não os amei a eles que não podiam amar-me, amei a vela que ardia no canto esquerdo, amei-a porque ardia, não porque ardia, porque era a vela dele, do pai da nossa mãe, porque nessa noite começara um dia, um dia especial: o sétimo, o sétimo que havia de ser seguido pelo primeiro, o sétimo e não o último, primo, não a amei, amei o seu arder e, sabes, não amei nada desde então.
Não, nada. Ou talvez tudo o que arde como ardia a vela nesse dia, o sétimo, não o último; não o último dia, não, já que aqui estou, aqui, neste caminho que dizem que é belo, aqui estou junto ao lírio-turco e ao rapúncio e a cem passos, mais acima, aonde poderei ir, a lárica dá lugar ao pinheiro cembra, vejo-o, vejo-o e não o vejo, e o meu bordão que falava com as pedras, o meu bordão está calado agora, e as pedras dizes que podem falar, e nos meus olhos há esse véu que se move, há véus, véus que se movem, levanta-se um, e lá está outro, suspenso, e a estrela lá está, sim, lá está ela ali em cima, sobre a serra, se quiser entrar terá que casar-se e em breve já não será ela, mas meio véu e meio estrela e eu sei, eu sei, primo, eu sei que te encontrei aqui, e que conversámos, muito, e que essas dobras ali, sabes que não são para os humanos, e não são para nós que saímos de casa e viemos encontrar-nos aqui, sob a estrela, nós os judeus, que viemos como Lenz pela serra, tu Gross e eu Klein, tu, o fala-barato, e eu, o fala-barato, com os nossos bordões, com os nossos nomes impronunciáveis, com as nossas sombras, que são nossas e não são nossas, eu e tu aqui - eu aqui, eu, que te posso dizer tudo isto, poderia ter dito e não digo e não te disse, eu, com um lírio-turco à esquerda eu com o rapúncio, eu com a minha vela ardida, eu com o dia, eu com os dias, eu aqui e ali, eu, talvez acompanhado - agora - pelo amor dos que não amei, eu a caminho de mim, aqui em cima."