Post Scriptum #49
Hoje há Brecht.
É um pequeno excerto da peça "Eduardo II" que Manuel Resende traduziu para a Cotovia, no âmbito da edição das obras completas de Brecht, e cuja publicação está para breve.
O excerto diz respeito ao momento em que Mortimer procura convencer o rei Eduardo a ceder às pretensões dos nobres, invocando as desgraças que decorrem da guerra. Por isso, relata a guerra de Tróia à sua maneira.
O que tem interesse é a forma como Brecht utiliza o verso livre para desvalorizar a versão tradicional do mito (note-se que muitas passagens da peça mantêm a versificação tradicional com versos de dez ou doze sílabas). Interessante pois este exercício é uma reflexão em acto sobre a História e as histórias que se contam sobre a História, fazendo-a servir os interesses do momento. Particularmente saboroso é este verso: "Terminou com um cavalo", que reduz a uma alusão a conhecida astúcia de Ulisses.
(Manuel Resende)
MORTIMER
Quando Páris comia o pão e o sal de Menelau
Na casa deste, dormia com ele - assim
Contam as antigas crónicas -
A mulher de Menelau, e ainda a levava,
Ao navegar para Tróia, na sua cama de rede.
Tróia ria. Risível parecia a Tróia
E justo para a Grécia, dar de volta,
Ao marido grego, já que era uma puta,
Esta carne dócil de nome Helena.
Só Lord Páris, compreensivelmente,
Se punha com rodeios, alegava
Que ela estava indisposta. Entretanto, vieram barcos
Gregos. Os barcos multiplicavam-se
Como pulgas. Uma manhã entraram uns gregos
Pela casa de Páris, para levarem consigo
A puta grega. Páris gritou
À janela, que esta era a sua casa,
A sua fortaleza, e os Troianos, ponderando
Que não deixava de ter razão,
Romperam em irónicos aplausos.
Os gregos seguiram pescando com as velas
Baixadas, até que numa cervejaria
No bairro do porto, alguém pôs
O nariz de outro a sangrar, com o pretexto
De o fazer por Helena.
E, quando menos se esperava, nos dias seguintes,
As mãos de muitos se atiraram a muitos pescoços.
Muitos que caíam dos barcos despedaçados,
A afogar-se, eram arpoados como atuns. No quarto crescente,
Faltavam muitos nas tendas, e nas casas
Muitos eram encontrados sem cabeça. Nesse ano,
Os caranguejos do rio Escamandro estavam
Muito gordos, mas ninguém os comia. Manhã cedo,
Estavam todos farejando o tempo,
Apenas cuidando se o peixe à tarde ia picar
Mas ao meio-dia dominava-os a confusão
E um intento.
Às dez horas ainda tinham
A figura humana,
Mas pelas onze,
Esquecendo o falar da sua terra, deixavam
Os Troianos de sentir Tróia, e os gregos, Grécia.
Além disso, sentiam os seus lábios transformar-se
Em beiços de tigre. E, ao meio-dia, fincavam
Os dentes no flanco do animal do lado,
Que gemia.
Ainda se, nas muralhas assaltadas,
Houvesse um homem sábio que
Os chamasse pelo nome da sua espécie
Talvez algum se detivesse, estarrecido. Seria bom
Que desaparecessem, lutando ainda e sempre,
Num barco de súbito velho
Que se afundasse sob os seus pés, antes de cair a noite,
Sem nome.
Mataram-se de forma atroz.
E assim a guerra durou dez anos
E foi chamada de Tróia e
Terminou com um cavalo.
Não fosse pois dos mais o entendimento
Desumano, os ouvidos moucos -
Tanto fazia que aquela Helena fosse puta
Ou avó da mais subida linhagem -,
Ainda hoje existiria Tróia, que era quatro vezes
Maior que a nossa Londres, não teria Heitor
Apodrecido com as vergonhas em sangue, e nem teria
O velho cabelo molhado de Príamo sido
Cuspido pelos cães, não teria toda essa
Geração morrido no meio-dia da sua virilidade.
Tradução de Manuel Resende.
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