27.10.03

Post Scriptum #52

UM CONTO DE KAFKA.

É mais uma tradução inédita de Manuel Resende. Trata-se de um texto que deverá integrar o primeiro volume de contos de Franz Kafka (1883-1924), a editar em breve pela Assírio & Alvim. Esta edição está a ser preparada pelo Manuel Resende em conjunto com outros tradutores, como o José Maria Vieira Mendes e o Álvaro Machado. A esclarecedora introdução é também da sua responsabilidade.

Este pequeno texto é um autêntico poema com duas "estrofes". A segunda nega a primeira, mas estão construídas em paralelo: um crescendo sem pontos que termina pela reacção de um hipotético espectador de circo (na primeira, um berro, na segundo, um silêncio e um choro). O paralelismo, porém, nega a própria negação, apontando ironicamente para a violência que se esconde por detrás dos sorrisos do segundo parágrafo e cuja verdade poderá estar no primeiro, só que escondida (daí a impotência do choro). Não posso deixar de pensar que isto é uma alegoria do regime de servidão voluntária em que vivemos na nossa sociedade.




NA GALERIA

Se alguma débil e enfraquecida amazona de circo se visse obrigada por um cruel director a girar ininterruptamente durante meses à volta da pista, à força de chicote, sobre um ondulante cavalo diante dum público insaciável, voando em cima do cavalo, lançando beijos, dobrando-se pela cinta numa saudação, e se essa representação se prolongasse até ao acinzentado horizonte de um futuro cada vez mais distante, sob o incessante estrépito da orquestra e dos ventiladores, acompanhada por ondas de aplausos que fluem e refluem, mas na realidade são como martelos de vapor... então, talvez algum jovem visitante do paraíso descesse rudemente o amplo anfiteatro, cruzasse todos os estrados, irrompesse na pista e gritasse através das fanfarras da orquestra que a tudo se amolda: Basta!

Como assim não é, como se trata de uma bela dama rosada, a qual rompe quase voando por entre os cortinados que os orgulhosos serventes abrem diante dela e como o director, buscando ansiosamente o seu olhar, se acerca como um manso animal e a alça, com sumo cuidado, para o cavalo malhado, como se se tratasse da sua neta predilecta que fosse empreender uma perigosa viagem, não se decide a dar a chicotada inicial, mas finalmente e dominando-se a si mesmo, opta por dá-la, ressoante, corre junto ao cavalo de boca aberta e com penetrante olhar segue os saltos da amazona; mal compreendendo a sua destreza artística, aconselha-a com gritos em inglês, e enfadado exorta os moços de estrebaria que seguram os arcos a prestarem mais atenção; antes do grande Salto Mortal ordena com os braços erguidos à orquestra que se faça silêncio e finalmente, ergue a pequena e desmonta-a do temeroso corcel, beija-a na face e nenhuma ovação do público lhe parece suficiente; e ela, pelo seu lado, sustentada por ele, erguida na ponta dos pés, envolta em pó, com ambos os braços estendidos e a cabecita deitada para trás, deseja compartilhar a sua felicidade com todo o circo... como isto é o que sucede, o visitante da galeria apoia o rosto na balaustrada e sumindo-se na marcha final como num penetrante pesadelo, chora sem dar por isso.

Tradução ainda inédita de Manuel Resende.

Entretanto, e ainda a respeito de Kafka, a New Republic publica hoje um extenso artigo de Zadie Smith dedicado ao grande escritor de Praga.

E há ainda o Kafka que se passeia pelas ruas de Belo Horizonte.