18.10.03

Post Scriptum #44

O Quartzo, Feldspato & Mica prossegue a publicação de traduções inéditas de autores gregos contemporâneos realizadas por Manuel Resende. Desta vez, apresentamos quatro poemas que são quatro pequenas obras-primas. O seu autor é praticamente desconhecido entre nós. Trata-se de Michális Ganas. A breve nota biográfica é também de Manuel Resende.

Michális Ganas (n. 1943). Poeta grego do pós-guerra e, como muitos da sua geração virado para o quotidiano e a sombra da infância, mas, no seu caso, tendo sempre presente o peso do trágico passado histórico. Também é autor de canções.

NAUFRÁGIO

A casa é velha cai caliça
Medem-se os flancos da parede.
Lá dentro a mãe
cá fora o polegar de deus,
que há-de destruí-la.
Vás para que canto vás,
as coisas voltam-se para te fitar,
vacas com sede.

Por detrás dos armários da cozinha
há outros armários
e por trás destes, ainda outros
até ao velho frigorífico.
Aqui adormecem as suas mãos artríticas
a senhora Lena e a senhora Maria...

A velha casa, que muito viajou,
de repente faz memórias, naufraga.


M. G.

Porta cheia de nós
remorsos da nogueira.
Gravas as tuas iniciais a canivete,
vais para a escola atrasado.
O professor que bata,
tens na boca
o gosto da imortalidade.

Diz-me se encontraste o canivete.
A porta, sei que a mudaram.


PERPLEXIDADE

Passas junto aos outros,
Medes-te às ocultas,
Dão-te por cima da tola.
Onde escondem eles
o corpo ajoelhado?
Na mala de couro
ou na alma de palha?

Disparam baixo as metralhadoras
ou te esquivas ou levantas voo.


PANCADAS SURDAS

É obra conhecer as nossas dificuldades
articular a alma
num problema difícil de palavras-cruzadas,
umas vezes na vertical, outras na horizontal,
passando a cada passo
por uns grandes quadrados negros,
tropeçando em amigos esquecidos.
Circunspectos habitualmente
por vezes insinceros
cheios de marcas de pancadas surdas.
Perguntamos como foi
e uns dizem
que escorregaram na banheira
e outros dizem
que escorregaram na rua,
esta terra anda cheia de cascas de banana.


Da recolha «Akáthistos Deipnos», Atenas, 1985. Tradução inédita de Manuel Resende.