29.10.04

There are three rules for writing a novel. Unfortunately, no one knows what they are.
- Somerset Maugham

Bom fim-de-semana.

O Povo é Sereno #178



O TU COM O VOSSEMECÊ OU A LÓGICA PODE SER UMA BATATA

Ontem, ao entrar no meu período filosófico quotidiano (ou seja, antes do bagaço e após a sobremesa do jantar) pensei com os meus botões que isto do "caso Marcelo" já cheiraria mal não fora a quantidade de revelações paradoxais que nos oferece a cada momento. Não fora o rol avantajado de lições que a cada passo nos dá para nosso proveito e exemplo.
Eis a última: Portugal, pelos vistos, é o único país do mundo em que dois opositores podem estar a dizer a verdade... embora tenham ambos versões diferentes do e sobre o mesmo assunto.
O insigne comentador (que tem um estilo de duque florentino) garante - e quem somos nós para duvidar? - que o seu amigo durante uma reunião o pressionou a moderar a verrina maquiavélica contra os rapazes do dr. Lopes - o nosso Santana - enquanto governantes desta nação multirracial, por sugestão pressionante dos gurus hardboiled da equipa que está no poleiro. O não menos insigne presidente director-geral da empresa que sustenta a TVI (que tem um ar de príncipe ou pelo menos de conde veneziano), por seu turno refere sóbria e solenemente - e quem somos nós para lhe infirmar a deixa? - que só falaram em coisas de estratégia empresarial, de assuntos de gestão de capitais e quejandas amenidades.
Em qualquer país um deles mentiria e outro falaria verdade. Mas isso era noutro país, olarilolé. Cá, tenho para mim que ambos falam verdade. E isto, para já, porque me recuso a acreditar que um destes senhores, verdadeiros exemplos para os mais novos - um na área da diversão televisiva domingueira, outro na dos negócios multicontinentais - esteja a mentir rascamente, sordidamente, como se fosse um baixo canalha desses que se arrastam pelos lameiros de Lisboa ou pelas alfurjas do Porto. Que esteja, para empregar o léxico do Raymond Chandler, "a mentir como um cão".
Depois, porque seria muito doloroso ter de se inferir a hipótese de que gente de qualidade, por mesquinhos interesses (políticos, empresariais?) estaria a desbobinar toda esta bambochata que vai arrastando na sua órbitra altas autoridades, areópagos nacionais, pais da pátria...
Tal coisa, tal suspeita, faria palpitar o nosso coração e o nosso bestunto: e se afinal esta gente de mérito e estatuto não passasse de (mas cala-te boca!).
Por isso, para tranquilizar o meu alanceado órgão tradicionalmente reservado às emoções, é que eu digo que a explicação é esta, tem de ser esta: ambos estão a falar verdade.
Como? Não sei. Mas tenho esta fézada, baseada no facto de que este é um país diferente.
E, francamente, é assim tão difícil de admitir que a lógica pode ser um tubérculo lusitano?


Nicolau Saião

Post Scriptum #398



Georg Heym
(Alemanha, 1887-1912)

UM ESGAR

A nossa doença é a nossa máscara.
A nossa doença é tédio sem fronteiras.
A nossa doença é como um extracto de preguiça e inquietação eterna.
A nossa doença é miséria.
A nossa doença é estar agrilhoado a um lugar.
A nossa doença é nunca podermos estar sós.
A nossa doença é não termos profissão, e se tivessemos uma [seria] a de a termos.
A nossa doença é desconfiarmos de nós, dos outros, do saber, da arte.
A nossa doença é falta de seriedade, falsa serenidade, sofrimento duplo. Alguém nos disse: como o vosso riso é estranho. Se esse alguém soubesse que este riso é o reflexo do nosso inferno, o amargo contrário do: "Le sage ne rit qu'en tremblant" de Baudelaire.
A nossa doença é a desobediência a Deus que nos impusemos a nós próprios.
A nossa doença é dizer o oposto daquilo que gostaríamos de dizer. Temos de nos torturar a nós próprios, observando as expressões fisionómicas dos que nos ouvem.
A nossa doença é sermos inimigos do silêncio. (...)
A nossa doença. É provável que alguma coisa a pudesse curar: o amor. Mas tínhamos de acabar por reconhecer que nós próprios nos havíamos tornado demasiado doentes para amar. Uma coisa porém existe que é a nossa saúde. Dizer três vezes "apesar disso", cuspir três vezes nas mãos como um velho soldado, e continuar então a avançar pela nossa estrada fora, como nuvens puxadas pelo vento do ocaso, em direcção ao desconhecido.

Georg Heym, A Autópsia e outros contos, apaginastantas, 1988. Tradução de Anabela Mendes.

Cimbalino Curto #120

Afinal, ainda não foi desta que o Passos Manuel reabriu. A culpa é da alcatifa.

28.10.04

Cimbalino Curto #119

Esta noite reabre o Passos Manuel, com um concerto de Electronicat ("alter ego" do músico francês Fred Bigot), acompanhado por Miss Le Bomb (vocalista do projecto alemão Queen of Japan). A programação para os próximos dias pode ser consultada aqui.

Entretanto, e também esta noite, a partir das 22h30, há mais uma sessão de poesia no Café Pátio, em Vila do Conde. Com António Pedro Ribeiro, Isaque Ferreira, João Rios, Bruno Neiva e José Peixoto (guitarra), numa "noite aberta a todas as vozes". Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro, Antero de Quental, Cesário Verde, António Maria Lisboa, Jim Morrison, Lou Reed, Bob Dylan e Ian Curtis são alguns dos poetas a dizer.

Post It #218



A Rua da Judiaria (dispensa apresentações e outras considerações) fez ontem um ano.

Umbigo #97




O que qualquer blogger procura é fazer soar o post como ainda nenhum outro soou. Fazê-lo soar como um instrumento musical, uma orquestra original, o mais perfeito dos meios de expressão. E, nesta perspectiva, creio que ninguém mais do que o Tawzeeto tem conseguido aproximar-se desse objectivo.

Post Scriptum #397



Wolfgang Bächler
(Alemanha, n. 1925)

EVASÃO

Evadir-me
das cercas de palavras,
das cadeias de frases,
dos sistemas de pontos,
dos entre-parênteses,
das molduras das miragens narcisistas,
das vírgulas, dos traços de união
- a envolver desconexões
evasivas, diluídas -
evadir-me
para a liberdade do silêncio.

"De costas para a janela: Poesia Alemã Contemporânea - I", O Oiro do Dia, 1981. Tradução de João Barrento.

O Povo é Sereno #177



TARDE PIASTE, CINÉFILO!

Tenho andado um bocado distraído com acontecimentos subsidiários ou seja nacionais e, por isso, não me debrucei ainda sobre as eleições americanas. Se calhar já não vou a tempo de fazer inflectir o sentido dos votos, mas mesmo assim não posso deixar de referir as minhas razões para entender porque se deve votar em John Kerry.
A primeira é porque acho o homem uma pessoa séria. Ninguém se tinha ainda lembrado de pôr em destaque este facto, mas aqui deixo o detalhe. Se repararem bem, mesmo quando se ri - e o gestualismo é importante, revela a alma - parece que está com a expressão do Vincent Price ou do Cristopher Lee nas películas do Roger Corman. E ao apresentar-se assim num encontro futuro com o Chirac já é meio caminho andado para meter as cabras no curral ao pretensioso francês e nem falo no Putin, com o seu estilo de Golum do "Senhor dos Anéis".
Depois, Kerry bebe limonada enquanto o seu opositor não bebe mesmo nada (o que lhe permite possuir aquele ar um pouco à maneira do Peter Lorre no "Casablanca"). Quer dizer, beberá decerto água, mas isso é um líquido que não conta e nem preciso de recorrer à memória de todos recordando que o seu vice é o Dick Cheney. Por outro lado, os membros da Al-Qaeda em particular e o Michel Moore em geral terão a ideia de que Kerry é tão pusilânime, indeciso e manipulável como o ex-presidente Carter e apanharão uma saborosa surpresa: que ele, com excepção dos carinhos à Halliburton, fará exactamente o mesmo que George W. Bush no combate contra os magnatas disfarçados de fundamentalistas, o que permitirá que o engenheiro Ben Laden (sabiam que o homem é formado?) vá de mesquita em mesquita até ao espalhanço final.
E já agora, a talhe de foice, não esquecer que o Kerry é apoiado pela Woopi Goldberg, e não sei se mesmo pelo George Clooney. Não ouviram falar, mas são dois extraordinários actores estadunidenses.
Além disso, Kerry não é o candidato do Dr. Santana Lopes nem da Cinecittá. Nem o outro, aliás, já que me chamam a atenção para isso.
E o Bush quando se desloca (vulgo andar) dá um bocado à nalga, o que não parece bem nos noticiários nacionais e fica mal nos documentários. O Kerry, mais seco de carnes, é mais controlado e tem um ar mais presidencial.
Não falando que um não é inglês e o outro também o não é. Isto parece-me o mais importante, mesmo que haja discordâncias sobre o respectivo estilo de pensamento.
Assim, será de se tirar o rabinho da cama no próximo dia 2 e ir-se votar em massa. Do Minho ao Algarve, mas também é importante que os americanos que vivem nos EUA façam o mesmo e não se desculpem com terem de ir às compras no Lidl ou no Pagapouco.


Nicolau Saião

O silêncio é de ouro # 160



"Pithecanthropus Erectus", de Charles Mingus. A obra-prima de um dos maiores contrabaixistas do século XX. Bastava este disco de 1956, gravado para a Atlantic, para inscrever definitivamente o seu nome na história do jazz. Indispensável.

Raul Silva

26.10.04

Post It #217

Uma sugestão para o final do dia: Comam todos Rhabarbermarmelade!

Post It #216



Por indicação do Daniel Pedrosa, descobrimos a Born Magazine. Um sítio onde se cruzam os fios da arte e da literatura. O resultado é verdadeiramente fascinante. Ora vejam.

Ilha dos Amores #107



"O Outono Dourado. Slobodka", de Isaak Levitan, 1889.
Para acompanhar as suites para violoncelo solo de Benjamin Britten.

Post Scriptum #396


Retrato de Karl Kraus, em 1925, por Oskar Kokoschka.

Karl Kraus
(Áustria, 1874-1936)

Uma ciência que sabe tão pouco do sexo como da arte anda a espalhar o boato de que a sexualidade do artista é "sublimada" na obra de arte. Linda vocação da arte, a de evitar a ida ao bordel! Neste caso, seria muito mais refinada a vocação do bordel de evitar a sublimação através de uma obra de arte. Como é dúbio o efeito sobre o receptor do método utilizado pelos artistas, já para abstrair da sua prolixidade, é o que prova precisamente o caso do compositor que aquela ciência se compraz em apresentar como exemplo de uma sublimação bem conseguida. Os ouvintes da sua música sentem-se de tal modo estimulados pela sexualidade que nela está sublimada que não lhes resta muitas vezes outro caminho senão aquele a que o artista se esquivou, a não ser que eles próprios sejam capazes de proceder a tempo a uma sublimação. Se o artista tivesse escolhido o caminho mais simples, os ouvintes teriam sido poupados a este efeito. Eis como sucede que, com o mau hábito dos artistas de sublimar a sexualidade, esta consiga precisamente libertar-se e um assunto que por todos os motivos deveria permanecer um assunto privado do artista degenere num escândalo público.

Karl Kraus, "O Apocalipse Estável - Aforismos", apaginastantas, 1988.
Tradução de António Sousa Ribeiro.

Post Scriptum #395

Livros de Karl Kraus disponíveis no mercado português.



O Apocalipse Estável - Aforismos, apaginastantas, 1988. Tradução de António Sousa Ribeiro.

Os Últimos dias da Humanidade, Antígona , 2003. Tradução de António Sousa Ribeiro.

25.10.04

Ilha dos Amores #106



Vari Caramés, Sem Título, 1996.
Também em exposição no CPF.

Post Scriptum #394

Sétima Leitura
PROFECIA

MUITOS ANOS depois do Pecado a que chamaram Virtude nas igrejas e que bendisseram. Relíquias de velhos astros e recantos cheios de teias de aranha varridas pela borrasca que o espírito dos humanos há-de gerar. E, ao ajustar as contas dos antigos Dirigentes, a Criação estremecerá. E grande alvoroço cairá sobre o Hades e o chão cederá sob a grande pressão do sol. Que começará por reter os seus raios, sinal de que é tempo de os sonhos tirarem desforra. E depois falará, dizendo: Poeta exilado, no teu século, diz, que vês?
- Vejo as nações, antigamente tão arrogantes, abandonadas às vespas e às urtigas.
- Vejo as achas no ar fendendo os bustos dos Imperadores e dos Generais.
- Vejo os mercadores a cobrarem curvados o lucro dos próprios cadáveres.
- Vejo o encadear dos sentidos ocultos.
(...)

Odysséas Elytis, Louvada Seja (Áxion Estí).
Tradução de Manuel Resende.

Umbigo #96

Tenho um milhão de coisas inadiáveis para fazer durante os próximos dias. Vou fazer-me de morto. Morrer um pouco até conseguir ficar vivo outra vez.

Post It #215



Para Elsinore, seguir por aqui.

O Povo é Sereno #176



A VERGONHA DE UMA MILITANTE

Há alturas na vida em que gostaríamos de não ter razão - dias em que desejaríamos não confirmar as nossas intuições.
Infelizmente, vivo hoje um desses momentos. Não deixava de guardar o secreto desejo de poder escrever um texto em que confessaria ter exagerado quando escrevi que Jorge Sampaio, ao colocar nas mãos de Santana e dos seus rapazes o governo de Portugal, lançava os alicerces de uma prática política que reuniria, numa amarga salada, o pior das acções do dirigente do "Forza Itália" com o mais sinistro da prática do chefe do PSD-Madeira.
Desgraçadamente, os acontecimentos a que recentemente todos assistimos tornam impossível a concretização de tal desejo. Já conhecia (inclusive na pele, em Portalegre) exemplos de censura encapotada, de pressão sobre a comunicação social e/ou de instrumentalização da mesma para fins espúrios. Mas ouvirmos o que todos ouvimos dizer a esse porta-voz de Pedro Santana Lopes - lançou uma inquietação profunda no quotidiano de qualquer português esclarecido cujas aspirações estejam pouco para além da satisfação das necessidades primárias. Inquietação tanto maior quanto nos vamos apercebendo da preparação de um ataque feroz contra a imprensa regional independente, visando colocá-la nas mãos de grupos económicos manipuláveis. Só o senhor Presidente da República parece continuar a achar que tudo isto não é um ataque ao "regular funcionamento das instituições democráticas"...
Por tudo isto e por muito mais me impressionou uma crónica publicada num jornal de Mangualde, "O Zurara", assinada por Maria Liseta Neto, militante do PSD desde 1974. Tanto quanto sei não deseja ser nem presidente da República nem líder do partido fundado por Francisco Sá-Carneiro. É apenas uma mulher com uma visão lúcida, nua e crua, uma cidadã que sente na pele a vergonha de ser militante de um partido que foi tomado de assalto por um conjunto de "incendiários" (a expressão é de Villaverde Cabral), que vê um dos pilares da nossa democracia ser agente da sua perigosa erosão. Quem tiver olhos, que veja; quem tiver ouvidos, que ouça... Aqui ficam alguns extractos:
"[...] este PSD que teme a liberdade de expressão, que ousa tentar coagir aqueles que a exercem num estado de direito e democrático, este PSD não é o PPD que também eu ajudei a criar e há trinta anos defendo como militante de base [...] / Nele não me revejo. / Nem me revejo em ministros que publicamente assumem os seus 'estados de alma', apelando à mais ínvia das censuras [...]. / [...] / E quantos militantes como eu, por esse país fora sentirão a mesma vergonha e o mesmo constrangimento? / [...] / Hoje calaram Marcelo Rebelo de Sousa. / Quem vai ser calado amanhã? / Quando se cria um precedente desta natureza, quando aceitamos em silêncio estes exercícios inquisitoriais, todos nós perdemos um pouco das nossas vidas, dos nossos valores, da nossa Liberdade."

Ruy Ventura

Umbigo #95

A minha próxima aquisição bibliográfica será "O Assessor". O livro de estreia de Gonçalo Zarcão, o autor que, este sábado, saltou da cabeça de Mário Santos directamente para o mundo das celebridades literárias. Trata-se de uma edição de "O Princípio do Contraditório" e custa 9,99 euros. Nem mais nem menos.

Um excerto:
"um assessor com as vacinas em dia, devidamente atrelado, é o melhor amigo do seu dono. (...) Assessorar é, mais do que uma profissão, um estado de espírito, uma vocação. E é assim que se pode ser ministro ou mesmo administrador de empresas de comunicação social sem que, por isso, se deixe de ser assessor, um serviçal." (p. 31).

22.10.04

O Povo é Sereno #175



A ORDEM DOS FACTORES

Fiquei parvo! Pensei a dada altura que estava a ouvir mal ou a perceber mal ou que estava com os copos. Apesar de não beber nada - excepto lá de vez em quando um tinto do Reguengo, um branco de Borba, um anis de Badajoz, um conhaque de Sevilha...
Mas vocês já perceberam: pensei que estava a ficar um pouco xoné ou então que por uma brusca mutação me transformara naquela personagem do Bradbury que tem o coração à direita e o fígado à esquerda por ser um habitante do outro lado do espelho.
Senão vejamos: ouvi com estas que a terra há-de comer o senhor doutor Souto Moura, que está procurador-geral da República, afirmar em plena reportagem televisiva que neste doce Portugal o sistema judicial é influenciado pelo facto de um fulano ser rico ou ser pobre... E que um tipo tem um determinado tratamento consoante seja uma truta ou um vulgar jaquinzinho...
Dir-me-ão: frase equilibrada, serena e justa - pois toda a gente sabe que isto é absolutamente verdade. Mas ser dita por um membro da magistratura, de tal modo importante! Isso é que fez tremer de excitação um inocente ingénuo como eu...
Mas o melhor ainda estava para vir!
Logo a seguir uns senhores que em geral estão do outro lado da barricada - vulgo causídicos - vieram dizer que não senhor, que cá na pátria toda a gente tem o mesmo tratamento, que aquilo de se supor que o dito sistema é um coio de discriminação e de corrupção ética até bradava aos céus...
Um deles, candidato a bastonário ou coisa que o valha - não sou um "expert" destes territórios - foi quase sublime: que o sistema é uma beleza, que no portugalinho a Justiça funciona... etc. e tal.
Ou seja: um dos da digna Confraria afirma que a confraria mete água. E os que deviam saber e talvez referir que a Confraria digna mete água - que não senhor, que está sequinha como o albornoz de um tuaregue...
Já não percebo nada disto... Por este andar qualquer dia, por exemplo, vem um carteirista afirmar que é uma vergonha roubar-se tanto nas ruas das grandes cidades e, a seguir, um polícia chega e põe-se a bradar que não senhor, que se rouba pouquíssimo, que a nível de roubalheira se é muito comedido e tudo funciona optimamente...
Ai, que a ordem dos factores é cada vez mais arbitrária!


Nicolau Saião

Post Scriptum #393

Era uma vez um gato que tinha um homem guardado dentro de uma caixa de sapatos. Quando o gato partia à aventura pelos telhados, o homem vingava a sua ansiedade em alpista e frutos secos. Um dia, o gato deixou a caixa aberta e o homem fugiu para sempre. Escravo da sua (in)dependência, o pobre humano lembrava-se todas as noites do sabor das cascas de pinhão, do som da pele a roçar no cartão prensado, dos pêlos do gato. É isto a saudade.

Mais um excelente texto de Miguel Cardina.

Já agora, e só para concluir, a curiosidade matou o gato.

Ilha dos Amores #105



Pormenor na Rua de Sampaio Bruno, Porto.
Fotografia de Francisco Costa.

Post Scriptum #392

Rimbaud nasceu esta semana há 150 anos.


Rimbaud, por Sidney Nolan.

CIDADE
Arthur Rimbaud

Eu sou um cidadão efémero e mediocremente satisfeito com uma metrópole supostamente moderna porque todo o gosto antigo foi apagado no mobiliário e nas fachadas das casas, assim como no plano da cidade. não descortinaríeis aqui os sinais de qualquer monumento de superstição. A moral e a linguagem reduzidas à sua mais simples expressão!, até que enfim. Estes milhões de pessoas, que não têm necessidade de saber quem são, conduzem tão identicamente a educação, o trabalho e a velhice, que esta forma de vida deve ser várias vezes menos longa do que a que uma estatística louca aponta para os povos do continente. É assim que, da minha janela, vejo novos espectros deslizando através da eterna e espessa fumarada de carvão - o nosso sombreado das matas, a nossa noite de estio! -, vejo novas Euménides diante do meu pavilhão que é a minha pátria e todo o meu bem, pois que aqui tudo é parecido com tudo -, e vejo a Morte que não chora, nossa filha diligente e prestável, e um Amor desesperado, e um Crime interessante ganindo na rua lamacenta.

Tradução de Maria Gabriela Llansol.

O Povo é Sereno #174



UM LONGO E DURO OLHAR

Há um filme, espécie de bíblia do mundo dos "gangsters" a sério, que a certa altura nos dá uma cena crucial. Já lá vou, mas convirá referir que nessa fita ("Dillinger") o papel principal é sustentado por um Warren Oates superlativo - esse mesmo, o do "Tragam-me a cabeça de Alfredo Garcia" do nosso colega "Bloody Sam" Peckimpah.
A talhe de foice eu aconselhava o seu visionamento a deputados, juízes e secretários de Estado e juro pelas alminhas santas que estou de boa-fé. Porque ficariam esclarecidos sobre o que é que um arquétipo dos "enragés", dos "gangsters" honrados (ou seja, todos nós, às tantas, numa sociedade torpe como a que temos) pensava sobre as suas profissões de risco. Mas adiante...
E a cena é esta: estando o Dillinger - na clandestinidade - num café a tomar uma refeição com a amada calha de ser topado, inteiramente por acaso, pelo Ben Johnson que faz de chefe detective e perseguidor-mor. Cavalheirescamente este entende que ali e no momento se está em território neutro e deve haver contemplação. Por isso, depois de uns minutos de umas estocadas de conversa, estende a mão nobremente ao seu adversário - que pura e simplesmente não lha aperta e o olha de maneira que demonstra que a vida para ele não é uma comédia de cavalheiros...
Este episódio cinematográfico ocorreu-me ao meditar nas recentes esgrimas entre o estimável professor Marcelo e a ainda mais estimável confraria de ministros e outros jovens que lhe querem dar o pontapé pl'a escada acima (como se dizia no tempo em que o paizinho do brilhante comunicador era do staff do regime de Salazar).
Porque, vejamos, censura tem havido sempre na nossa saborosa democracia - para os não pertencentes ao jet set (um pouco rasca, convenhamos) de que o professor é um brilhante e quase genial ornamento. Ainda há pouco tempo eu referi o que despudoradamente se está a tentar fazer a um radialista da RDP e podia aqui revelar-vos muitos outros casos de censura de que tenho conhecimento.
Este fungagá em torno do bravo Marcelo cheira-me a zaragata inter pares, a bulha entre gente "da panelinha" como dizia o Eça que o nosso professor, pondo-se estrategicamente à parte, há dias numa apresentação livresca atirou sobre os rivais.
Meus manos: atiremos nós a esta gente, com a dose quanto baste de altivez, um longo e duro olhar.
E mai'nada!...


Nicolau Saião

21.10.04

Umbigo #94

RECEITA PARA MELHORAR POSTS

Material e metodologia

O post é extraído do blogue e imerso imediatamente numa solução de paraformaldeído. Após uma hora, as frases menos interessantes são dissecadas e prossegue-se com a fixação do post na mesma solução durante três dias. No fim desse período, juntam-se-lhe algumas frases e versos célebres de autores clássicos. O post é então polido através de lavagens repetidas com metanol e, por fim, imerso em hexametildisilazano e seco ao ar.
O resultado pode ser visto na imagem em baixo.

Post It #214



Ainda a propósito dos 150 anos do nascimento de Rimbaud, é absolutamente imprescindível uma visita ao sítio oficial das comemorações. Um exemplo maior das possibilidades que a internet oferece em favor da arte.

Post Scriptum #391

Rimbaud nasceu há 150 anos. Para assinalar a efeméride, o Quartzo, Feldspato & Mica publica, num quase rigoroso exclusivo, o manuscrito de "Le Bon Disciple", poema de Verlaine dedicado ao companheiro de venturas e desventuras.





LE BON DISCIPLE

Je suis élu, je suis damné!
Un grand souffle inconnu m'entoure.
Ô terreur! Parce, Domine!

Quel Ange dur ainsi me bourre
Entre les épaules tandis
Que je m'envole aux Paradis?

Fièvre adorablement maligne,
Bon délire, benoit effroi!
Je suis martyr et je suis roi,
Faucon je plane et je meurs cygne!

Toi le Jaloux qui m'as fait signe,
Oui me voici, voici tout moi!
Vers toi je rampe encore indigne!
- Monte sur mes reins, et trépigne!

Mai 1872

Señor Tallon #84

Ontem, por volta das 21h00, o resultado final era já mais do que previsível. Felizmente, as noites europeias oferecem outras alternativas a portistas decepcionados. Por exemplo, um excelente encontro entre italianos e um letão.

20.10.04

Ilha dos Amores #104



Eugène Atget, Corsets/379, c. 1912.

Umbigo #93


Cortei o post em dois para criar espaço para outra coisa qualquer mais dócil. Certos leitores apreciam posts irrepreensíveis e perfeitamente lapidados. Mas eu não.


Por isso, e por prazer, cortei-o ao meio. Delicio-me de forma consciente com a confusão e simetria e outros assuntos pérfidos.

Cimbalino Curto #117

O portuense é amoral. Aos nossos olhos, o Papua também o é... A cultura de uma cidade pode ser avaliada através do asseio das paredes das suas casas de banho públicas. No portuense isto é um fenómeno natural: o seu primeiro instinto artístico é o de escrever símbolos e ditos eróticos nas paredes. Mas o que é natural no portuense e no papua corresponde a um sintoma de degeneração no cidadão moderno.

Adolf Loos, "Ornament and Crime", Cambridge, MIT Press, 1997, pp. 19-20.
A tradução é minha.

Umbigo #92

No meio do caminho tinha uma pedra/ tinha uma pedra no meio do caminho./ E um post torto tropeçou na pedra/ na pedra um post torto tropeçou./ Post torto aos tombos por dentro de mim/ por dentro de mim aos tombos o post torto andou./ E por causa da pedra partiu a perna/ e por causa da perna assim ficou:/ post torto caído dentro de mim./ Nunca me esquecerei que no meio do caminho/ tinha uma pedra/ maldita pedra no meio do caminho.

Post Scriptum #390



Ó SOL imaginado da justiça * e tu mirto das glórias

por favor vos peço não * esqueçais a minha terra!


(...)



Odysséas Elytis, Louvada Seja (Áxion Estí).
Tradução de Manuel Resende.

19.10.04

O Povo é Sereno #172



Em 2002, o poeta mexicano Sergio Witz Rodríguez publicou numa revista local ("Critérios", nº 44) um poema intitulado "La Patria entre Mierda". O poema foi considerado por alguns responsáveis mexicanos um "ultraje às insígnias nacionais", desencadeando um aceso debate em torno do direito à liberdade de expressão. Dois anos e muita polémica depois, o Supremo Tribunal de Justiça do México estuda a possibilidade de sujeitar Rodríguez a um processo judicial. O autor incorre numa pena de 6 meses a 4 anos de prisão.
Eis o poema.

INVITACIÓN
(La patria entre mierda)

Yo
me seco el orín en la bandera
de mi país,
ese trapo
sobre el que se acuestan
los perros
y que nada representa,
salvo tres colores
y un águila
que me producen
un vómito nacionalista
o tal vez un verso
lopezvelardiano
de cuya influencia estoy lejos,
yo, natural de esta tierra,
me limpio el culo
con la bandera
y los invito a hacer lo mismo:
verán a la patria
entre la mierda
de un poeta.

Umbigo #91

Não tenho qualquer pudor em acusar a morte de incompetência, negligência, irresponsabilidade, etc. De facto, apesar dos seus deploráveis esforços para transmitir uma imagem de respeitabilidade, a morte é incompetente. Até posso tolerar muitas coisas à morte, mas creio que me assiste o direito de lhe exigir que, pelo menos, imponha alguma disciplina aos seus fantasmas. Há várias noites que um deles não me deixa dormir, trepando pela fachada do prédio e batendo insistentemente à janela com as suas horríveis historietas desafinadas. Já tentei explicar-lhe que devia ter mais consideração por quem trabalha. Mas nada feito. A morte manifestamente não tem pulso para controlar estas extravagâncias. Estando as coisas neste pé, só me resta uma saída.

Post Scriptum #389



Bulat Okudjava
(Rússia, 1924-1997)

VAI ACONTECER

Isto vai acontecer, vai acontecer,
não há maneira de o evitar:
os pássaros gritarão por cima da cidade,
orquestras tocarão,
o ar ficará mais límpido,
o troar do canhão será esquecido,
e o exército da fronteira
marchará para casa a cantar.
Isto vai acontecer, vai acontecer -
estou convencido de que fundirão as armaduras...
Não te esqueças de aprender a lição
deste dia necessário!

Tradução de Manuel de Seabra.

18.10.04

Señor Tallon #83

Bela metáfora.

Post It #213

Dozens of pirate copies of the new book by Colombian writer Gabriel Garcia Marquez are being sold in Bogota before the novel's release, publishers say.

Post It #212



Um dos melhores suplementos literários que se editam na Europa, o "Babélia", do diário espanhol "El Pais", regressou ao "canal aberto". Provavelmente, trata-se apenas de um bónus temporário. Mas de qualquer maneira, vale a pena aproveitar. O último número oferece um amplo dossier dedicado às literaturas árabes, tema da Feira do Livro de Frankfurt deste ano. Por aqui.

Post Scriptum #388

Post Scriptum #387



POEMA VII DO CAPÍTULO "A PAIXÃO".
Odysséas Elytis

VIERAM
vestidos de "amigos"
incontáveis vezes os meus inimigos,
pisando o chão antiquíssimo.
E o chão nunca se deu com os seus calcanhares.
Trouxeram
o Sábio, o Colonizador e o Geómetra,
livros de letras e números,
toda a submissão e toda a potência,
sujeitando a luz antiquíssima.
E a luz nunca se deu com os seus lares.
Nenhuma abelha se deixou nunca levar a começar o jogo do ouro;
nenhum zéfiro, a enfunar brancos panos.
Erigiram e fundaram
nos cumes, nos vales, nos portos,
torres poderosas e moradias,
madeiros e outros navios,
as Leis, as que prescrevem as riquezas e os interesses,
aplicaram-nas segundo a regra antiquíssima.
E a regra nunca se deu com o seu pensamento.
Nunca sequer rasto de deus deixou marcas nas suas almas;
nunca sequer um olhar de fada fez menção de lhes tirar palavra.
Chegaram
vestidos de "amigos"
incontáveis vezes os meus inimigos,
ofertando dádivas antiquíssimas.
E as suas dádivas mais não eram
que ferro e fogo.
Entre os dedos abertos que esperavam
apenas armas e ferro e fogo.
Só armas e ferro e fogo.


Odysséas Elytis, Louvada Seja (Áxion Estí).
Tradução de Manuel Resende.

15.10.04

O Povo É Sereno #171

Eleições nos EUA. Aqui.

O Silêncio é de Ouro #156



Hoje, no Rivoli, a partir das 22h00. Mais um espectáculo integrado no XIV Festival de Jazz do Porto a não perder. Uma excelente oportunidade para ouvir ao vivo um dos grandes saxofonistas da actualidade, Lee Konitz. Antigo colaborador de Miles Davis, Warne Marsh e Lennie Tristano, Lee Konitz é o autor de discos como "Duets", um dos grandes clássicos do jazz dos anos 60. Nos últimos anos, venceu o Jazzpar Price (1992) e compôs uma peça de música clássica "French Impressionist Music From Turn of the Twentieth Century". Para aperitivo, sugiro a audição de "Lee Konitz Live at The Half Note", gravado em Agosto de 1994 e editado pela Verve.

Raul Silva

Ilha dos Amores #102



Pormenor na Rua Sá da Bandeira, Porto.
Fotografia de Francisco Costa.

Post Scriptum #386



Tomaz Salamun
(Eslovénia, n. 1941)

CANÇÃO POPULAR

Todo o verdadeiro poeta é um monstro.
Destrói pessoas e o seu discurso.
O seu canto eleva uma técnica que arrasa
a terra para que não sejamos devorados por vermes.
O bêbado vende o seu casaco.
O ladrão vende a sua mulher.
Apenas o poeta vende a sua alma para separá-la
do corpo que ama.

Tradução de Pedro Amaral, a partir da versão inglesa de Charles Simic, disponível aqui.


De Tomaz Salamun estão publicados alguns poemas em português, incluídos na antologia "Nove Poetas Eslovenos Contemporâneos", editada pela Slovene Writers Association (Associação dos Escritores Eslovenos), com sede em Liubliana. O livro pode ser solicitado através do mail litcenter@mail.ljudmila.org. Além de Salamun, esta antologia inclui poemas de Uros Zupan, Dane Zejc, Svetlana Makarovic, Brane Mozetic, Boris Novak, Veno Taufer, Ales Debeljak e Kajetan Kovic. Do corpo de tradutores faz parte o português Casimiro de Brito.

14.10.04

Post Scriptum #385

Umbigo #90



O meu reino não é deste mundo. Cada vez tenho menos regras. Apenas tento manter a aparência de cidadão respeitável, frequentador de cafés, leitor de jornais. Apenas me sinto mais livre. Espontâneo na floresta. Espontâneo na fronteira. E trabalhar dois dias por semana, como Pessoa. O resto do tempo para pensar, criar, partir a loiça. Viver intensamente o instante. Como Mário, divino Mário de Sá-Carneiro em Paris. E deitar a obra aos abutres, ao fogo.
E recolocar os óculos para manter um ar respeitável, intelectual. E escrever. Masturbar a caneta na folha. Orgasmo. Orgasmo. Liberdade. Lábios. Baton rouge. Amo as putas sinceras a mascar chiclete. Até amo a cidade burguesa, coquete. É a minha cidade, apesar das pontes aéreas do Mesquita Machado e das estátuas do Cónego. Amo-a e morro afogado em café, em croft. Mário. Divino Mário. Tantos anos. Mesa de café a escrever versos. E continuam a não compreender-te. Fazem-te homenagens, colóquios, antologias, mas tu estavas para além, "um pouco mais de sol", dizias. Divino Mário. Braga, Paris, a mesma cidade. E eu possesso pela caneta azul, a ganhar ao copo, sem euros nem tostões.
Retiro os óculos e o mundo pára.
E as gentes continuam a entrar pela porta da "Brasileira". Como se a resolução dos problemas da Humanidade estivesse aqui. E o relógio é o mesmo. E o balcão é o mesmo. Os vidros são os mesmos. As conversas são as mesmas. E é tempo de sair. E, por momentos, julgo-me um deus porque penso que criei um mundo. E a rua do Souto é a mesma.


António Pedro Ribeiro.

O Silêncio é de Ouro #154



Para quem souber exprimir poderosa e ingenuamente a música dos diversos povos, e para quem souber escutar como convém, não será necessário dar a volta ao mundo, visitar as diferentes nações, entrar nos seus monumentos, ler os seus livros e percorrer as suas estepes, as suas montanhas, os seus jardins ou os seus desertos. Um canto judeu bem entoado faz-nos penetrar na sinagoga; numa verdadeira ária escocesa está toda a Escócia, assim como numa verdadeira ária espanhola, está toda a Espanha. Desta forma, estive muitas vezes na Polónia, na Alemanha, em Nápoles, na Irlanda, na Índia, e conheço melhor esses homens e essas regiões do que se os tivesse estudado durante anos.

George Sand, Consuelo.

Post Scriptum #384



ANDORINHA há só uma * e a Primavera é dura

O sol para girar * quer grande escravatura

Precisa que mil mortos * lhe empurrem as Rodas

E quer também que os vivos * lhe dêem sangue a rodos.

(...)



Odysséas Elytis, Louvada Seja (Áxion Estí).
Tradução de Manuel Resende.

Umbigo #89



UNS COMEM FIGOS

O edifício era como se esperava que fosse: antigo, histórico, até um pouco imponente. Nunca o havia visto, mas os relatos não mentiam: sempre era a residência do mais poderoso, o mano que põe e dispõe e que tem as rédeas do poder...
Eu conseguira a audiência por cunhas a um tipo de influência no meio, um eclesiástico que me conhecia de pequenino. Tentara com o cacique local mas não me ligara peva: nisto de recomendações os curas são de facto mais fiáveis que um borrabotas político, no fundo novatos nestas andanças. Para ali chegar tivera de pagar o normal em viagens da outra banda, mas tudo bem. Se a vida está cada vez mais cara...
O porteiro e o par de seguranças musculosos, de óculos escuros e que se me jogassem um murro me transformariam em cocó de pássaro - deram-me acesso à Recepção depois de lhes ter mostrado o passe que os serviços respectivos me haviam facultado.
A recepcionista era morena e em estilo pantera, de olhos verdes com um brilhozinho diabólico muito bonito de ver. Era claramente do círculo do manda-chuva, uma das típicas mademoiselles da sua inteira confiança.
- Vamos ver se Sua Excelência o poderá receber mesmo - disse numa voz ligeiramente rouca que me esgalhou um pequeno arrepio - Hoje tem havido mais gente do que o costume... Dois chefes de governo estrangeiros, um dos maiores industriais do leste, um antigo prémio Nobel da Física, dois bispos europeus... Já vê!
Dispus-me a esperar, que remédio. O caraças da sorte, co'os diabos, decerto não me abandonaria e eu poderia apresentar ao excelentíssimo a minha petição! Enquanto raciocinava e o tempo ia passando, vi saírem do salão onde o boss dava audiência um conhecido dirigente desportivo, dois famosos generais, um distinto jornalista, um cardeal e um líder político, além duma "cocotte" do jet set e dois membros do sistema judicial. Todos com uma expressão contente e quase exuberante.
A pantera de olhos verdes, após ter atendido uma chamada interna fez-me sinal com o dedo. Aprocheguei-me. E ela, com o seu tom mais competentemente profissional, disse-me naquela voz sugestiva:
- Lamento, mas comunicaram-me que Sua Excelência vai estar muito ocupado no resto do dia... e se calhar até de noite. Irá ainda receber dois membros duma potência ocidental, um núncio apostólico, quatro dirigentes muçulmanos, um cineasta célebre, dois empresários de sucesso, três jogadores de futebol e o dono de uma cadeia de televisão, além das presenças normais. Terá de vir noutro dia!
Trinta vezes caneco! Que pouca sorte! Lá teria de fazer a viagenzona de novo, repetir tudo! Nem a cunha dum homem da Igreja bastara, raios!
Não seria inda hoje que poderia avistar-me e tratar do assunto que precisava com Lucifugo Rafacale, dirigente máximo da coisa e mais conhecido pelo seu nome secular de Senhor Satanás...
Arre!


Nicolau Saião

13.10.04

O Silêncio é de Ouro #153



Prossegue amanhã, 14 de Outubro, o programa do XIV Festival de Jazz do Porto, com a actuação de dois agrupamentos portugueses. Na primeira parte apresentam-se os portuenses DEP, cuja música, segundo o texto do programa, "viaja por linhas melódicas e faz descomplexadas incursões pelos blues e pelo rock". O seu espectáculo centrar-se-á nos temas incluídos no seu álbum de estreia: "Esquece tudo o que aprendeste", editado no final de 2003.
Na segunda parte, actua o quinteto de Nuno Ferreira, que apresentará, em primeira audição, uma obra original encomendada pelo Festival de Jazz do Porto. "Com este repertório", diz Nuno Ferreira, "presto homenagem a alguns dos músicos que moldaram o meu imaginário musical, nomeadamente Hermeto Pascoal, Lennie Tristano, Dave Holland e os Beatles."


Raul Silva

O Povo continua sereno.



Capa do Público de ontem, 12 de Outubro.

Post Scriptum #383



Delacroix escreve sobre Chopin:

Durante o dia, falou-me de música e isso animou-me. Perguntei-lhe o que era que estabelecia a lógica em música. Fez-me sentir o que é a harmonia e o contraponto; como a fuga é a lógica pura em música, e que compreender a arte da fuga é conhecer o elemento de toda a razão e de toda a consequência em música. Pensei em como gostaria de me instruir em tudo isto que aflige os músicos vulgares, e este sentimento deu-me uma ideia do prazer que os sábios, dignos de o serem, encontram na ciência. É que a verdadeira ciência não é aquilo que se entende vulgarmente por essa palavra, ou seja, uma parte do conhecimento diferente da arte. Não, a ciência assim concebida, demonstrada por um homem como Chopin, é a própria arte e, em contrapartida, a arte deixa então de ser aquilo que se considera vulgarmente, ou seja, uma espécie de inspiração que vem de não sei onde, que caminha ao acaso, e não apresenta senão o exterior pitoresco das coisas, para se tornar a própria razão iluminada pelo génio, mas seguindo um caminho necessário e contido por leis superiores.

Citado em "Chopin", de Jean-Jacques Eigeldinger, ed. CCB/ Público, 2004.

Umbigo #88 (ainda a propósito das palavras de Delacroix).

De facto, séculos e séculos de história e nada mudou. De um lado, os artistas que caminham em cima de andas, exibindo o seu irresistível nariz falso, com exuberante fogo de artifício no rabo e brilhantes filigranas pendendo de tudo quanto é lado - ah, mas que efeito extraordinário! Porque acreditam que simplicidade é sinónimo de banalidade. Porque acreditam que excesso é sinónimo de genialidade.
E do outro, os artistas que procuram a beleza na simplicidade, que querem ser claros, que usam palavras simples, despidas, que não perdem de vista a transparência, digamos, matemática da realidade.
E, ao longo de toda esta história, quem demonstrou ter mais tomates?

Post Scriptum #382

(...)
- O que é o bem? O que é o mal?/ - Um ponto Um ponto/ e sobre ele tu que te equilibras e existes/ e para lá desse ponto desordem e trevas/ e para cá desse ponto ranger de dentes de anjos
(...)

Odysséas Elytis, Louvada Seja (Áxion Estí).
Tradução de Manuel Resende.

12.10.04

Post Scriptum #381

(...) O silêncio que arroteei para depositar/ a semente da palavra e os germes dourados dos oráculos/ O cabo da enxada ainda nas mãos/ vi as grandes plantas dos pés curtos, voltando o rosto/ umas uivando outras deitando a língua de fora:/ Eis o espargo eis o funcho/ eis a salsa frisada/ o cravinho e o pelargónio/ a abóbora e a chicória/ As sílabas ocultas com que lutei para soletrar a minha identidade/ "Bravo" disse "e agora que conheces a leitura/ hás-de aprender muitas coisas/ se assimilares o insignificante" (...)

Odysséas Elytis, Louvada Seja (Áxion Estí).
Tradução de Manuel Resende.

Ilha dos Amores #101



Pormenor na Rua Sá da Bandeira, Porto.
Fotografia de Francisco Costa.

Post Scriptum #380



Sharon Olds
(E.U.A., n. 1942)

PESCANDO AO LARGO DE NOVA ESCÓCIA

De visita à terra natal do pai,
uma cultura de sangue, nessa semana as crianças
educaram-se no sangue. Largavam a linha,
largavam-na, largavam-na,
tão profundo era o mar.

Flutuávamos num pequeno dóri por cima dos
tonéis de água. Elas puxavam bruscamente a linha
do fundo, uma e outra vez,
peneirando os peixes: os anzóis esgachando-se
como agulhas de esmirna nas guelras.

Ao soltar-se a farpa, o som era como plástico
quebrando. Numa caixa de madeira
no fundo do bote, os corpos de dúctil
metal sapateavam, torcendo-se, deuses
de prata desenterrados. Quieto, peixinho,
diziam as crianças, Cala-te peixinho,
com escamas nas mãos e restos de tripa nos sapatos.

Eu brincava às mães no meio disto tudo,
a esposa da América, portanto não dizia nada,
o aço quebrando as mandíbulas cerradas,
a espessura brilhante do sangue das crianças.

Tradução de Margarida Vale de Gato.

Post Scriptum #379

Outros poemas de Sharon Olds, traduzidos por Margarida Vale de Gato, neste blogue:

Teme-se que se tenha afogado.
Jovens Mães I.
A Linguagem da Bazófia.
As irmãs do tesouro sexual.

11.10.04

Cimbalino Curto #116



"Salgueiros destitui Linhares da presidência", noticia o Público num brevíssimo texto na sua edição de domingo (não há ligação). Esta é uma boa notícia para os portuenses. O Salgueiros é uma das mais emblemáticas instituições da cidade, com um património que ultrapassa em muito a dimensão exclusivamente desportiva. Por isso, é muito difícil aceitar a maneira como em poucos anos o velho clube mergulhou numa crise da qual dificilmente conseguirá recuperar. Tudo leva a crer que terá havido uma longa e continuada má gestão por parte da direcção cessante, e que isso contribuiu significativamente para a desastrosa situação do Salgueiros. Em todo o caso, não creio que essa seja a única justificação para a crise do clube. O Salgueiros é uma imagem do que é actualmente o Porto. Uma cidade que todos os dias perde gente. Uma cidade sem confiança, sem motivação, sem orgulho. O Salgueiros morre ao mesmo tempo que morre o velho bairrismo portuense. Sim, o bairrismo é bom. É uma espécie de alma das colectividades e do associativismo. Mas sem gente não há bairrismo. Não é por acaso que a cidade assistiu a tudo isto com uma fria e confrangedora indiferença. O Salgueiros morre porque já não há pessoas para sentir falta do Salgueiros. O mesmo se passa com uma boa parte dos velhos clubes e associações da cidade. Uma cidade sem habitantes é uma cidade sem meios para conservar a sua identidade, as suas instituições, o seu orgulho. É uma cidade a prazo.

Umbigo #87



O PRAZER DE CITAR

Tenho um gosto pronunciado pelos provérbios e as citações. Os provérbios porque independentemente da sua justeza são pérolas de fantasia verbal; as citações porque correspondem sempre a momentos excepcionais do espírito, quando a mente em fase ascendente e profundidade fecunda traça girândolas que jamais se apagam.
Assim, por exemplo, quando um político astuto e cheio de ronha vem prometer mundos e fundos, tirando o pigarro uma pessoa pode responder-lhe parafraseando Churchill: "Pois... Como se eu não soubesse que a política é a arte de ajudar o público a não tratar dos assuntos que lhe interessam...". E se um malacueco até nós vem com falinhas mansas para nos interessar num negócio de mão-beijada, podemos raciocinar: "Tá bem, deixa... Como se eu não soubesse que não dá o frade do que bem lhe sabe!". Se alguém se queixa de que comprou um produto bom e barato, desses que a perclara televisão nos mete pelos lúzios adentro e que a breve trecho pifou, pode pensar com equilíbrio: "Fui um saloio... Então não sabia eu que as pechinchas dão em requinchas?". E ao saber que num determinado serviço público ou numa autarquia certos funcionários andaram a lesar o contribuinte mediante actos de pequena ou média corrupção abafados pelos superiores, pode comentar com filosofia: "Os javardos, na lama, são donos como el-Rei no Paço...". E ao que se admire de que num areópago os representantes populares passem o tempo a bulhar por dez réis de mel coado, esquecendo os interesses da nação, pode responder-se com sensatez: "Deixe lá... Se se pusessem de acordo é que se calhar era mau. Pois não sabe o meu amigo que quando os barões se abraçam quem leva as pauladas é o servo?". Espanta-se uma pessoa porque os inquéritos sobre os casos das contas de... e de... demoram a deslindar-se? É referir-se-lhe com bonomia: "Tenha lá tento! Então nunca ouviu dizer que a roupa suja deve ser lavada em família?" E ao fabiano que comente o ar patibular de certas figuras públicas pode esclarecer-se sensatamente, a exemplo de Oscar Wilde: "Note, meu caro, que cada sujeito tem a cara que merece. Aliás, a partir dos trinta anos cada um é responsável pela cara que tem...". Vem um tipinho muito moralista, metido na sua sotaina a dar conselhos à gente pela televisão e pela rádio, alertando-nos para a nossa falta de contenção na fala e para o nosso amor ao mundo, ao diabo e à carne? É repontar-se-lhe de pronto: "Sim, sim... Bem prega frei Tomás." Ou, como escreveu um dia Benjamin Péret, "Quando eu tinha 20 anos, os espertalhaços avisavam-me: vais ver quando tiveres 40 anos! Tenho 40 anos - não vi nada..."
Embora os ditames e as citações sejam inúteis para ultrapassar situações de facto - vejam, por exemplo, se é possível acabar com o abuso de poder de certos policiais com um provérbio jogado à cabeça deles - o que não admira pois lá reza o ditado sobre o "trinta-e-um de boca" e sabe-se que "cantar é bonito mas não enche barriga", serei sempre apreciador de tão formosos conceitos.
Bom, mas calo-me já para não correr o risco de algum leitor mais afoito me dizer "fique-se com a sua sabença que eu fico-me com a minha mantença" ou, pior ainda, "vozes de jerico não chegam ao firmamento".
E não me assistiria, está de ver, o direito de responder com uma parelha de coices - como fazem certas excelentes alimárias que nos tratam do quotidiano...


Nicolau Saião

Ilha dos Amores #100


Fotografia de Francisco Costa.

Post Scriptum #378

Geração literária é uma espécie de barquinho de papel sobre o qual muitos se amontoam para fazer a travessia do riacho. Uns poucos sabem nadar, outros tantos usam bóia ou se agarram no cangote dos nadadores. De vez em quando, o barquinho vira escorpião e começa o extermínio. Poucos chegam até a outra margem.

João Serenus.

Cimbalino Curto #114

Porto Vivo / Porto Morto.

9.10.04

Umbigo #86

Tive hoje (sexta-feira) o fogo a uns cinquenta metros da minha casa e a uns dez metros do meu terreno. Houve de resto muitos fogos simultâneos em vários distritos. E depois de algum pensar, cheguei a umas conclusões. Que são estas.

Estamos em Outubro. Chuviscou de manhã. Imensa gente por esses campos achou que era chegada a hora de queimar o "lixo" dos seus campos. E desatou a fazer queimadas. Só que o vento soprou fortíssimo e as faúlhas propagaram-se a grande velocidade. E, pronto, foi o desastre.

Ora, pergunto eu: mas que "lixo" é esse que as pessoas querem queimar? Matéria orgânica que muito bem faria à terra se lhe fosse restituída. Porque não deixam o restolho apodrecer tranquilamente? Porque precisam de "limpar" a terra, de a lavrar, de a deixar pronta para as sementeiras de Inverno ou de Primavera.

Pela minha parte, comecei a optar por passar uma grade sobre o restolho: a grade parte o restolho, que se deita sobre o solo, e alisa a terra. O restolho fica lá quietinho a apodrecer. Para o ano infiltrou-se no solo e, com o passar do tempo, fará húmus. Não é uma coisa que dê resultado logo (o resultado rápido que se consegue "limpando" a terra e deitando-lhe em cima adubos químicos, resultado rápido mas estirilizante: a terra é tratada como um mero suporte das raízes e o alimento das plantas é dado pela química - estou a exagerar, claro).

Na minha modesta opinião, as queimadas que se podem ou devem fazer não são estas: são as queimadas destinadas a eliminar "fatias" de matos, para criar espaços diversificados na paisagem rural, que interrompam a continuidade dos pastos das chamas. E devem fazer-se no Inverno.

Tudo isto não tem nada a ver, acho eu (mas quem sou eu para achar?), com os fogos do Verão e com a falta de prevenção. Devo, de resto, dizer, que, pela primeira vez que contactei directamente com os bombeiros, encontrei neles pessoas com uma calma extraordinária e uma atitude decidida e inteligente face aos fogos, apesar da falta de meios.

Em tempo: caros amigos, perdoem este fantasma vindo do nada. Deixei passar o aniversário do Quartzo, não contribuí para a festa, que foi linda, pá, por razões cá muito minhas que não quero tornar públicas. Mas que gosto deste blogue, gosto. E continuo a agradecer aos amigos que para aqui me convidaram. Feliz aniversário atrasado para nós, rapazes e Sophie.

8.10.04

Post It #210

Algumas das maiores raridades bibliográficas do mundo. Agora a preços de feira.

Post Scriptum #377


Fotografia de Magela Ferrero.

Había nacido con zapatos. Rojos, finos, de taco alto, que fueron la desesperación de todos los que vivimos juntos en aquel tiempo.
Y en la cara tenía varias dentaduras, y lentes celestes como el fuego.
Al pasar, por la tarde, parecía el ángel de la devoración con pie punzó. Mas, en realidad, amó la luz solar. Comía guindas, llevándose una a cada boca.
Y sentía temor y amor hacia el Maestro Tigre que llegaba en la noche a buscar doncellas.
Y nunca la eligió.

Marosa di Giorgio (Uruguai, 1932-2004).

Mais sobre Marosa di Giorgio:
entrevista com a autora, no Jornal de Poesia, e artigo de Luis Bravo, na revista Agulha.

O Povo é Sereno #166

JUSTIÇA OU DESIGUALDADE

O princípio do "utilizador-pagador", recentemente invocado para justificar a introdução de portagens nas auto-estradas SCUT, constitui um bom exemplo dos objectivos que movem os que hoje seguram as pastas da governação (sem a legitimidade do voto popular).
Travesti político, este princípio camufla uma inversão dos valores da justiça e da democracia, sobre os quais deve assentar uma sociedade baseada na dignidade humana, na igualdade de oportunidades e na solidariedade. Populismo (mal) dissimulado, representa a vontade de destruir um Estado norteado pelo objectivo da promoção do bem comum, através da redução das assimetrias entre regiões pobres e ricas, melhorando as condições de vida das populações, sobretudo das mais desfavorecidas, através da criação de empregos.
Não existe separação "ideológica" entre esta medida agora anunciada e a estratégia seguida por este governo para a Saúde, a Segurança Social, as Finanças e, embora às escondidas, para a Educação e para a Administração Pública. As justificações que a demagogia apresenta são semelhantes, sob uma falsa capa de justiça social.
Não nos deixemos enganar. Entre a justiça social e a desigualdade, os actuais governantes não hesitam. Parecendo desejar a primeira, estão a construir tijolo a tijolo a segunda, promovendo o lucro dos grupos económicos, branqueando a corrupção e a evasão fiscal, tirando aos pobres para dar aos ricos.
Cabe aos cidadãos deste país impedi-lo.


Ruy Ventura

Ilha dos Amores #97



Pormenor na Rua de Alexandre Braga, Porto.
Fotografia de Francisco Costa.

Cimbalino Curto #113

Enterneci-me ao ler o que o Pacheco Pereira hoje postula no Público sobre a polémica em torno do professor Marcelo. E também me acometeu certa piedade cristã - por não ter tido o bom Pacheco tempo para escrever uma palavrinha que fosse sobre um seu amigalhaço do Porto que tem dedicado os três últimos anos a tentar silenciar a imprensa.

Manuel Jorge Marmelo

Post Scriptum #376



Marin Sorescu
(Roménia, 1936-1996)

CAPRICCIO

Todas as noites
Junto as cadeiras da vizinhança,
As disponíveis,
E leio-lhes versos.

As cadeiras são muito receptivas
À poesia
Se soubermos como as dispor.

Por isso
Fico emocionado,
E durante algumas horas
Conto-lhes
A morte maravilhosa da minha alma
Ao longo do dia.

Os nossos encontros
São habitualmente sóbrios,
Sem entusiasmos
Inúteis.

Seja como for,
É possível dizer-se:
Cada um fez o seu dever,
E pode seguir
Adiante.

Tradução Colectiva.

7.10.04

Señor Tallon #82

Creio que nunca comprei um livro em função dos prémios que tenha recebido ou de anúncios de página inteira nos jornais. Mas uma escritora que acaba de ganhar o Nobel e que mantém um sítio na internet com esta página de entrada, merece que abra um precedente.

O Povo é Sereno #165



OS BOIS PELOS NOMES

Aproveitando o barulho das luzes e porque ainda tinha uns fragmentos de tempo livre, fui uns dias de férias e também andei de comboio por sítios onde não me chegava o rumorejar da vida nacional.
Na volta fui como o resto do país colhido de súbito pelo mais ingente dos casos, o mais atrofiante - e não estou a brincar - caso de demonstração clara duma situação que nos permite aquilatar do estado cacarejante da nação: o caso da suspensão do programa televisivo do renomado Prof. Rebelo de Sousa, conhecido entre os happy few por Marcelo.
A secas, clarete, que a coisa já teve outros desenvolvimentos excitantes.
Porque o Prof. Marcelo - que é um homem, ao que me dizem, da área do Direito - é um comunicador excepcional, um estratega das palavras, o criador - ao que me revelam - de uns tais "factos políticos", figura de estilo sob a qual se acoitam divertidas e apropriadas manigâncias políticas, alçapões metafóricos onde se enfiam os nossos protagonistas republicanos e monárquicos, enfim - o jet set da circunstância lusitana. É, além disso, um homem de influência legítima, um magnífico professor de para-literatura (as suas recomendações televisivas de livros dados a lume são, de acordo com o que pesquisei, deliciosamente pessoais) e uma das figuras com que a nação pode contar na hipótese de uma catástrofe (politica). Em resumo, uma figura de recorte incontornável.
O que eu queria dizer, em jeito de conclusão ou de moral da estória, é que conforme observadores bem colocados e não sei se maliciosos referem, este homem de alta qualidade teria cedido a pressões de sectores que não gostam de ser postos em causa por gente de gabarito. Com os gemidos do povinho, que é lerdo, podem eles bem - é só virar a face para o lado e deixar passar os queixumes. Mas se aparece um da confraria a destoar o caso fia mais fino.
E eis o que me ocorre: um homem de qualidade, de alto valor moral e ético como é o dele, cala-se assim atrapalhado como um vulgar sujeitinho? Fazendo a vontade a maganões? Não seria de esperar que aguentasse a pé firme, os mandasse para os apitos e continuasse a sua obra pedagógica neste lugar tão necessitado de heróis?
E uma dúvida - quase sacrílega - me assalta e me deixa cheio de tremores: será que o distinto professor afinal não passa de um tarimbeiro mais da cena política? De um simulador, de um angariador de pachelgas que lhe engolem a lábia como caramelos?
Eu parece-me que não! Que a explicação será outra, quiçá quase metafísica e que o nosso homem, numa genial reviravolta, porá tudo em pratos limpos - derrotando os maus que lhe quiseram tapar as análises pondo-lhe um adesivo na boca e vingando-nos a todos, provando que vale a pena acreditar nas suas palavras ágeis e até então semanais.
Cá por mim, torço inteiramente por ele!


Nicolau Saião

Post It #209

E pronto. A academia decidiu. O escritor milionário do dia está encontrado. Resta-nos acrescentar que o nosso Zé Povão esteve muito próximo de acertar no nome do feliz contemplado.

Post It #208

Mais um dos meus favoritos está a celebrar um ano de vida. É o Torradas, do Nuno Cruz.

Ilha dos Amores #96



Pormenor na Rua de Alexandre Braga, Porto.
Fotografia de Francisco Costa.