14.10.04

Umbigo #90



O meu reino não é deste mundo. Cada vez tenho menos regras. Apenas tento manter a aparência de cidadão respeitável, frequentador de cafés, leitor de jornais. Apenas me sinto mais livre. Espontâneo na floresta. Espontâneo na fronteira. E trabalhar dois dias por semana, como Pessoa. O resto do tempo para pensar, criar, partir a loiça. Viver intensamente o instante. Como Mário, divino Mário de Sá-Carneiro em Paris. E deitar a obra aos abutres, ao fogo.
E recolocar os óculos para manter um ar respeitável, intelectual. E escrever. Masturbar a caneta na folha. Orgasmo. Orgasmo. Liberdade. Lábios. Baton rouge. Amo as putas sinceras a mascar chiclete. Até amo a cidade burguesa, coquete. É a minha cidade, apesar das pontes aéreas do Mesquita Machado e das estátuas do Cónego. Amo-a e morro afogado em café, em croft. Mário. Divino Mário. Tantos anos. Mesa de café a escrever versos. E continuam a não compreender-te. Fazem-te homenagens, colóquios, antologias, mas tu estavas para além, "um pouco mais de sol", dizias. Divino Mário. Braga, Paris, a mesma cidade. E eu possesso pela caneta azul, a ganhar ao copo, sem euros nem tostões.
Retiro os óculos e o mundo pára.
E as gentes continuam a entrar pela porta da "Brasileira". Como se a resolução dos problemas da Humanidade estivesse aqui. E o relógio é o mesmo. E o balcão é o mesmo. Os vidros são os mesmos. As conversas são as mesmas. E é tempo de sair. E, por momentos, julgo-me um deus porque penso que criei um mundo. E a rua do Souto é a mesma.


António Pedro Ribeiro.