22.10.04

O Povo é Sereno #175



A ORDEM DOS FACTORES

Fiquei parvo! Pensei a dada altura que estava a ouvir mal ou a perceber mal ou que estava com os copos. Apesar de não beber nada - excepto lá de vez em quando um tinto do Reguengo, um branco de Borba, um anis de Badajoz, um conhaque de Sevilha...
Mas vocês já perceberam: pensei que estava a ficar um pouco xoné ou então que por uma brusca mutação me transformara naquela personagem do Bradbury que tem o coração à direita e o fígado à esquerda por ser um habitante do outro lado do espelho.
Senão vejamos: ouvi com estas que a terra há-de comer o senhor doutor Souto Moura, que está procurador-geral da República, afirmar em plena reportagem televisiva que neste doce Portugal o sistema judicial é influenciado pelo facto de um fulano ser rico ou ser pobre... E que um tipo tem um determinado tratamento consoante seja uma truta ou um vulgar jaquinzinho...
Dir-me-ão: frase equilibrada, serena e justa - pois toda a gente sabe que isto é absolutamente verdade. Mas ser dita por um membro da magistratura, de tal modo importante! Isso é que fez tremer de excitação um inocente ingénuo como eu...
Mas o melhor ainda estava para vir!
Logo a seguir uns senhores que em geral estão do outro lado da barricada - vulgo causídicos - vieram dizer que não senhor, que cá na pátria toda a gente tem o mesmo tratamento, que aquilo de se supor que o dito sistema é um coio de discriminação e de corrupção ética até bradava aos céus...
Um deles, candidato a bastonário ou coisa que o valha - não sou um "expert" destes territórios - foi quase sublime: que o sistema é uma beleza, que no portugalinho a Justiça funciona... etc. e tal.
Ou seja: um dos da digna Confraria afirma que a confraria mete água. E os que deviam saber e talvez referir que a Confraria digna mete água - que não senhor, que está sequinha como o albornoz de um tuaregue...
Já não percebo nada disto... Por este andar qualquer dia, por exemplo, vem um carteirista afirmar que é uma vergonha roubar-se tanto nas ruas das grandes cidades e, a seguir, um polícia chega e põe-se a bradar que não senhor, que se rouba pouquíssimo, que a nível de roubalheira se é muito comedido e tudo funciona optimamente...
Ai, que a ordem dos factores é cada vez mais arbitrária!


Nicolau Saião