Umbigo #87
O PRAZER DE CITAR
Tenho um gosto pronunciado pelos provérbios e as citações. Os provérbios porque independentemente da sua justeza são pérolas de fantasia verbal; as citações porque correspondem sempre a momentos excepcionais do espírito, quando a mente em fase ascendente e profundidade fecunda traça girândolas que jamais se apagam.
Assim, por exemplo, quando um político astuto e cheio de ronha vem prometer mundos e fundos, tirando o pigarro uma pessoa pode responder-lhe parafraseando Churchill: "Pois... Como se eu não soubesse que a política é a arte de ajudar o público a não tratar dos assuntos que lhe interessam...". E se um malacueco até nós vem com falinhas mansas para nos interessar num negócio de mão-beijada, podemos raciocinar: "Tá bem, deixa... Como se eu não soubesse que não dá o frade do que bem lhe sabe!". Se alguém se queixa de que comprou um produto bom e barato, desses que a perclara televisão nos mete pelos lúzios adentro e que a breve trecho pifou, pode pensar com equilíbrio: "Fui um saloio... Então não sabia eu que as pechinchas dão em requinchas?". E ao saber que num determinado serviço público ou numa autarquia certos funcionários andaram a lesar o contribuinte mediante actos de pequena ou média corrupção abafados pelos superiores, pode comentar com filosofia: "Os javardos, na lama, são donos como el-Rei no Paço...". E ao que se admire de que num areópago os representantes populares passem o tempo a bulhar por dez réis de mel coado, esquecendo os interesses da nação, pode responder-se com sensatez: "Deixe lá... Se se pusessem de acordo é que se calhar era mau. Pois não sabe o meu amigo que quando os barões se abraçam quem leva as pauladas é o servo?". Espanta-se uma pessoa porque os inquéritos sobre os casos das contas de... e de... demoram a deslindar-se? É referir-se-lhe com bonomia: "Tenha lá tento! Então nunca ouviu dizer que a roupa suja deve ser lavada em família?" E ao fabiano que comente o ar patibular de certas figuras públicas pode esclarecer-se sensatamente, a exemplo de Oscar Wilde: "Note, meu caro, que cada sujeito tem a cara que merece. Aliás, a partir dos trinta anos cada um é responsável pela cara que tem...". Vem um tipinho muito moralista, metido na sua sotaina a dar conselhos à gente pela televisão e pela rádio, alertando-nos para a nossa falta de contenção na fala e para o nosso amor ao mundo, ao diabo e à carne? É repontar-se-lhe de pronto: "Sim, sim... Bem prega frei Tomás." Ou, como escreveu um dia Benjamin Péret, "Quando eu tinha 20 anos, os espertalhaços avisavam-me: vais ver quando tiveres 40 anos! Tenho 40 anos - não vi nada..."
Embora os ditames e as citações sejam inúteis para ultrapassar situações de facto - vejam, por exemplo, se é possível acabar com o abuso de poder de certos policiais com um provérbio jogado à cabeça deles - o que não admira pois lá reza o ditado sobre o "trinta-e-um de boca" e sabe-se que "cantar é bonito mas não enche barriga", serei sempre apreciador de tão formosos conceitos.
Bom, mas calo-me já para não correr o risco de algum leitor mais afoito me dizer "fique-se com a sua sabença que eu fico-me com a minha mantença" ou, pior ainda, "vozes de jerico não chegam ao firmamento".
E não me assistiria, está de ver, o direito de responder com uma parelha de coices - como fazem certas excelentes alimárias que nos tratam do quotidiano...
Nicolau Saião
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