14.11.03

Post Scriptum #75

Em meados dos anos 50, logo após a publicação do seu segundo livro de poemas, John Ashbery mudou-se para Paris. Aí conheceu o escritor francês Pierre Martory com quem viveu perto de 10 anos, praticamente os mesmos que esteve naquela cidade. Alguns dos mais conhecidos poemas de amor de Ashbery são dessa época ou inspiram-se nela.

Pierre Martory (1920-1998), antigo combatente da resistência francesa, é um dos segredos mais bem guardados da literatura francesa contemporânea. O seu trabalho só se tornou realmente conhecido a partir dos anos 90, depois da edição de The Landscape Is Behind the Door (Sheep Meadow Press, 1994), uma recolha de poemas seus traduzidos para inglês pelo próprio Ashbery.

O poema de Martory que aqui publicamos, Centro Cívico, Décimo Quinto Bairro, é uma versão de Miguel Gonçalves feita justamente a partir da tradução inglesa de Ashbery.


Pierre Martory, fotografado por Raimundo Mora.

CENTRO CÍVICO, DÉCIMO QUINTO BAIRRO

Tinhas que ouvir os passos dos soldados
as voltas magoadas o som da valsa do acordeão
abandonado no pavimento como um cortador de relva
assim que a parada passasse
tinhas que beijar o pé do soldado
tirar-lhe a bota e lamber-lhe o tornozelo
até onde o caqui de sete milímetros e meio de grossura permitisse
tinhas que sacudir a sua barriga como um tapete
era o dia da grande ilusão
quando eles depunham o seu profundo conhecimento
e fingiam estar à procura de atraentes sucessores
mas seria melhor procurar o coração
e colocar um despertador no seu lugar
um despertador que pudesse anunciar a alvorada como uma marioneta
mas que não levasse o café à cama
tinhas que remexer debaixo dos seus dentes falsos
à caça de diamantes escondidos com um dedo cheio de vida
à caça deles por todo o lado e não os encontrar
mesmo nas dobras da sua nudez.
A alegria de ser uma criança de um povo soberano
de dar uma mão às instituições
e de ver o seu nome inscrito no mármore
dos urinóis em letras de alcatrão
por uma simples bandeira em que nos tornámos
rufando o nosso cansaço pelas esquinas
que o vento perturba a menos que seja primeiro
o vento dos trompetes todo o amor para os ventos

Tradução inédita de Miguel Gonçalves.