11.11.03

Post Scriptum #71

Ainda há corvos por aqui.

Não queríamos encerrar este "dossier" do "Corvo", aberto a propósito das extraordinárias traduções que Isa Mara Lando e Margarida Vale de Gato nos ofereceram do poema de Poe (Post Scriptum #67 e 70), sem lançar mais algumas pistas de leitura. Neste sítio podem encontrar-se mais 22 versões em português do poema, entre as quais as de Fernando Pessoa (1924), aqui citado várias vezes, Machado de Assis (1883), Alexei Bueno (1980) e Sérgio Duarte (1998).

Entretanto, e porque as coincidências em torno de "O Corvo" continuam a acontecer, o Manuel Resende informa-nos que muito recentemente concluiu um poema para o próximo número da revista Inimigo Rumor onde também voam corvos. A próxima edição desta revista será integralmente dedicada ao Ruy Belo. O poema de Resende é um pequeno conjunto de variações sobre a "Nau dos Corvos", texto de Ruy Belo inspirado na famosa rocha que existe ao largo de Peniche, assim chamada por parecer uma nau quinhentista e nela abrigar muitos corvos, e onde era citado o inevitável poema de Poe.
O Manuel Resende cedeu-nos o seu poema para uma pré-publicação.



Fotografia da "Nau dos Corvos", Peniche, da autoria de Vasco Ribeiro.



DIVAGAÇÕES SOBRE O POEMA "NAU DOS CORVOS" DE RUY BELO

Para Jorge Silva Melo

tudo se perde nada se cria nada se transforma
se suspeitasses como está aquele grande rio eufrates
que te interessaria a pétrea pátria e o moreira baptista
pátrias é o que mais há e ainda ontem
engoli umas quatro (pide rasca gana) com este trejeito
de falar manso um português quotidiano
como quem não quer a coisa ora de
pois das palavras idas como uma maré
ficam conchas ou lixo? conchas ou o quê?
eu como tu presumo percorro repetidas distâncias
entre o lava-roupa e a cozinha mas agora perseguido
pelos predicados de primeira ordem comer dormir
enquanto lavo a louça ou arrumo a roupa
(são animais tristes
as camisolas vazias
e de orelhas murchas)

vou pensando talvez falta de abraços
que sou um ponto ténue e inextenso
por onde o mundo me suga e não fica nada
já se sabe o sol nasce sem nós e
anda praí muita circulação monetária
e muita guerra pra que não nos consultaram
mas por isso mesmo é mundo demais
para um só homem ou até vá dois
e olha que eu bem sei que aquela nespereira
ao canto do olho ao lavar dos dentes
trabalha para mim como todas as nespereiras
mas por isso mesmo é mundo demais

é que (como dizer-to a ti?) o tempo (detergente?)
tanto deu que sem se quebrar furou a pedra
entrou como uma enxurrada e
encheu-nos de presente e agora por cá
tudo decorre e tudo permanece
dum modo mais essencial
uma vez que as coisas vãs são mudáveis
mas não estamos mais perto de nada
e nunca estamos em casa em nenhum lugar
já não há professores do liceu agora são secundários
os factos colam o focinho à nossa cara
que fedor a uísque da classe média (alta)
na verdade as palavras debandaram
haverá certamente quem ache que é luxo
neste tempo de tanta escolha em que há tudo
dizem eles
pedir um fogo que não finde em cinza
e eu próprio se queres saber hoje
à falta de beleza convulsiva
e para alimentar a alma
pensei em comer dois almoços
sucessivamente

ah pensar localmente e agir globalmente
realmente não há como esses corvos
não os simbólicos que vêm nas noites negras
dizer nunca mais sobre a cabeça de pallas
nem sequer o heckle and jeckle que por acaso são pegas
nada disso aqueles corvos biológicos
aquelas aves abstractas que há nos matos
gosto do estilo deles que pisa com pés de corvos
o chão de terra e com asas negras
rasga os ares insalubres e com corpo habita
entre as latas de sardinha as reles ervas e todo
o lixo das coisas corvos arredios
corvos clandestinos
gosto da carne intragável e de ela ser intragável
do crocitar que não se escreve com u
nem nenhum amoroso carcereiro admira
da roupa que não tira ahs e ohs da boca dos meninos
pelo que podem andar no mundo livres

sim sim os corvos os não palradores
os que se abrigam ali para o lado sul
os que são pouca coisa o que podem
é preciso talvez fazer esse poema
mas para lá chegar há que esculpir com as palavras
com as palavras ir desbastando
até que ele surja bruto e radioso
e que importa que pensem que estamos pedrados
ou bêbados
vamos então dizer frases do género
"no mundo minúsculo
não é o bicho-de-conta
que empurra a formiga"


Manuel Resende.