29.12.04

Post Scriptum # 440




Susan Sontag. A polémica intelectual e activista norte-americana morreu, na manhã de ontem, aos 71 anos, num hospital de Nova Iorque.


Uma tarde de Novembro de 1977, no Hotel Londra [em Veneza] (...) recebi um telefonema de Susan Sontag, que estava no Gritti. "Joseph", disse-me ela, "o que é que faz hoje à noite?" "Nada", disse eu. "Porquê?" "Bem. é que encontrei hoje na piazza a Olga Rudge. Você conhece-a?" "Não. É a mulher do Pound, não é?" "É", disse Susan, "e convidou-me para ir lá a casa hoje à noite. Assusta-me um bocado a ideia de ir sozinha. Importa-se de vir comigo, se não tem outros planos?" Eu não os tinha, e disse-lhe que sim, com certeza, tendo percebido muito bem - bem de mais, até - a sua apreensão. A minha, pensei, talvez ainda fosse maior. (...)
A morada indicada ficava no sestiere Salute. (...) Tocámos à campainha, e a primeira coisa que vi, depois de a mulherzinha de olhos como pequenas contas tomar forma na soleira, foi o busto do poeta, obra de Gaudier-Brzeska, poisado no chão da sala. A ofensiva do tédio foi repentina mas irresistível.
Serviram-nos um chá, mas ainda mal tínhamos sorvido o primeiro gole, já a anfitriã - uma senhora grisalha, diminuta, bem-posta, já com muitos anos em cima - ergueu o dedo afilado, que se encaixou numa espiral mental, e brotou-lhe dos lábios franzidos uma ária cuja partitura é do domínio público pelo menos desde 1945. Que Ezra não era fascista; que receavam que os americanos (estranha declaração, na boca de uma americana) o mandassem para a cadeira eléctrica; que ele não sabia nada do que se passava; que não havia alemães em Rapallo; que ele só se deslocava de Rapallo a Roma duas vezes por mês, para o programa de rádio; que os americanos, uma vez mais, estavam enganados quando pensaram que Ezra pretendia... A dada altura deixei de registar o que ela estava a dizer e limitei-me a acenar com a cabeça (...).
O que me despertou do meu alheamento foi o som da voz da Susan, indicando que o disco chegara ao fim. Havia no seu timbre uma sonoridade estranha, e pus-me à escuta. Susan dizia: "Mas a Olga não pensa com certeza que os americanos se zangaram com Ezra por causa dos programas de rádio. Porque, se fossem só os programas, o Ezra seria apenas mais uma Rosa de Tóquio". Pois bem, foi das melhores réplicas que alguma vez me foi dado ouvir. Olhei para Olga. Devo dizer que ela encaixou como uma valente. Ou, melhor ainda, como uma profissional. Ou não terá percebido bem o que Susan disse - mas duvido. "Então o que foi?", perguntou. "Foi o anti-semitismo de Ezra", respondeu Susan, e eu vi a agulha de corindo que era o dedo da velha senhora encaixar de novo na espira. Esta face do disco rezava: "As pessoas t~em que entender que o Ezra não era anti-semita; afinal de contas, chamava-se Ezra; tinha vários amigos judeus, incluindo um almirante veneziano...". A melodia era igualmente conhecida e igualmente longa - cerca de três quartos de hora; mas desta vez era tempo de partirmos. Agradecemos o serão à velha senhora e despedimo-nos.

Joseph Brodsky, Marca de Água.