17.12.04

Post Scriptum # 431

Contos de Luís Graça no Granito.

Iniciamos hoje a apresentação do terceiro conto de Luís Graça, "´Tá Tudo na Maior?", pertencente ao seu livro "15 desatinónimos para Fernando Pessoa", a publicar em breve.

'TÁ TUDO NA MAIOR?
(Primeira Parte)


- 'Tá tudo na maior?
- Iééééééééé!
- Não 'tou a ouvir nada!
- IÉÉÉÉÉÉÉ!
- Assim, sim. Boa noite, Lisboa.

Rock in Rio em Lisboa. Mais uma edição a caminho do sucesso. O promotor Fernando Pessoa acertara na "mouche" outra vez. Para além de coordenador do festival, era ainda o "manager" da banda do momento, os "Village Persons": Bernie Soares, Álvaro Fields, Ricky Reis e Al Caeiro.
- E agora, a banda que todos esperavam, no palco principal da Bela Vista, para encerrar da melhor forma a edição deste ano: os "Village Persons"!
Mal Fernando Pessoa acabou de anunciar a banda, um enorme "bruá" subiu aos céus, fazendo-se ouvir até à Alameda Afonso Henriques. Cerca de 120 mil pessoas (a antiga lotação do Estádio da Luz) em delírio ovacionaram a banda que o país inteiro consagrou.
Os holofotes varreram o palco e incidiram sobre o quarteto de luso-americanos, que optou por entrar em cena ao som de um dos grandes "hits" do grupo: "In the poetry".
"Na poesia, é onde gostas de criar, na poesia, versos feitos para amar... we want you... we want you... we want you as a new recruit... larilolé... larilas... olé!... e quem não salta não é poeta... e quem não salta... não é poeta!".
Apesar da veterania da banda, o facto é que o concerto de encerramento do Rock in Rio funcionava como uma gigantesca ponte de união entre três gerações. Ao seu lado, a catarse musical de Paul McCartney ou Peter Gabriel não passara de uma brincadeira de crianças.
Al Caeiro, com as suas raízes campestres, estava vestido de chefe índio, como habitualmente, em homenagem à Associação de Amizade Cernancelhe - Connecticut; Bernie Soares, para não variar, dava nas vistas com os seus cabedais negros à "motard"; Ricky Reis era o marujo de serviço, com um estetoscópio ao pescoço; por fim, Álvaro Fields marcava presença como o polícia da estrada.

- Olá, Lisboa! É uma alegria enorme estar aqui no Rock in Rio - gritou Bernie Soares, o líder da banda, no final do primeiro tema de um concerto que tinha a duração prevista de três horas.
- E agora, com muito amor e carinho e um abraço especial para todos os emigrantes que estão a passar férias em Lisboa e andam lá fora a lutar pela vida... vamos tocar "A meio do outeiro", uma composição do Al Caeiro.
Num fabuloso espectáculo de luz, cor e alegria, "A meio do outeiro" arrebatou a multidão, inteiramente conquistada pelas brilhantes coreografias da banda, que misturavam sabiamente o "disco", o "soul", o "funk" e o folclore português, com um ligeiro toque de madressilva e Madredeus.
"Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro/Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava./ Ele é o humano que é natural/Ele é o divino que sorri e que brinca./E por isso é que eu sei com toda a certeza/Que ele é o Menino Jesus verdadeiro".
De rostos colados, todos à volta do microfone de Bernie Soares (o "lead singer"), Al Caeiro, Ricky Reis e Álvaro Fields conferiam um enorme "feeling" ao refrão: "Menino Jesus, Menino Jesus, Menino Jesuuuus verdadeeeeiroooo".
Mais atrás, uma loira, uma ruiva, uma morena e uma chavala de cabeleira afro tratavam dos coros: "A meio do outeiro, a meio do outeiro, a meio do outeiro... só tu... só tu... Menino Jesus... verdadeiro... verdadeiro... a meio do outeiro".
Centenas de T-shirts brancas com letras negras eram agitadas pelos fãs: "A meio do outeiro, Albert Caeiro". Ou então T-shirts negras com letras brancas: "Ricky Reis: Doctor, Doctor, give me the news, bad case of loving you".
As miúdas do coro estavam frenéticas no seu metro e 80, mais as botas negras de tacões altos, para combinar com os vestidos prateados brilhantes, colados ao corpo, com um decote sugestivo. Uma perfeita simetria de carnes, odores e movimentos.
No meio da multidão, estudantes universitários carregavam barris de cerveja às costas, com uma bandeirinha a sobressair do conjunto, estilo carrinho de choque da defunta Feira Popular. Os fãs, ávidos, consumiam cerveja às toneladas, mantendo, apesar disso, um comportamento irrepreeensível.

A noite estrelada convidava à fraternidade e à troca de intimidades. Os olhares dos fãs cruzavam-se insistentemente pelo meio dos decibéis, à espera de um heliporto do afecto onde acostar. À espera de um colo maternal feito doca.
- Obrigado, Lisboa! We love you! Vocês são uma audiência do mais great que há! Sinceramente trully! Palavra de honour! É uma grande honra para nós estar a actuar aqui. Viemos directos dos States só p'ra vocês!
Palmas. Aplausos. Histerismos vários.Aquelas coisas habituais nos concertos, não é? É preciso dar um certo desconto.
- Mas não foi sacrifice nenhum. Foi um verdadeiro pleasure! A gente voou de Newark, disse adeus à estátua da Liberty e pensou que vinha dar alegria aos nossos queridos portugueses. Nós somos 45 por cento americanos, 45 portugueses e 10 por cento não respondem/não sabem. Mas acima de tudo a nossa ária é a língua portuguesa!
Mais um tema. Mais uma voltinha. Mais uma viagem. É entrar, meus senhores, é entrar!
- Obrigado, Lisboa! Aqui a cantar para vocês, neste maravilhoso palco, as lágrimas escorrem-me pelo rosto. E eu gosto de ter as lágrimas a escorrer pelo rosto. Obrigado, Lisboa! Mas infelizmente, pelo mundo fora, há muitas crianças a chorar de fome. Crianças que não choram de alegria, como eu, neste momento, aqui convosco. Por isso gostava de vos dizer duas ou três coisas nesta noite de amor...
A multidão não deixou Bernie Soares prosseguir. Bastou uma fã de mamas a abanar ao vento proferir a palavra mágica: "Bernie! Bernie! Bernie!". Logo os milhares de fãs se puseram a repetir o alakazam do fanatismo musical: "Bernie! Bernie!Bernie!".
Bernie queria prosseguir. Bernie queria andar para a frente e não conseguia. Faltava-lhe espaço afectivo. Faltava-lhe uma aberta entre os fãs. Bernie levantou os braços e tentou continuar:
(Continua)

(Luís Graça)