13.12.04

Post Scriptum # 423



NO MELHOR PANO

Com pedido de publicação, recebemos da Direcção Geral de Investigação o seguinte comunicado:

"Na sequência de acções efectivadas no âmbito do caso "Dicionário Prateado", dois membros duma brigada deram com um indivíduo a deambular num dos mais românticos jardins da cidade. Como a sua conduta se revelava suspeita, ao ser interpelado referiu com algum acinte que "andava a ver as vistas" e, numa clara tentativa de aliciar os agentes, disse ainda "Não vêem que bonito está o luar?...", o que o levou a ser detido de imediato. Instado sobre a sua profissão respondeu que era burilador de frases mas de momento se encontrava desempregado. Na revista subsequente verificou-se que estava munido, sem licença, de duas cedilhas e de um verbo reflexivo. Numa pequena bolsa de cabedal tinha ainda dezasseis vírgulas, alegando serem para consumo próprio. No entanto, pressionado com perguntas acabou por confessar que as subtraíra a um autor local de momento residente em Espanha (parece que nas ilhas).
Já na esquadra foi-lhe apreendida uma boa quantidade de mas, além de diversos quês de que não soube indicar a proveniência. O detido tinha ainda na sua posse duas ideias gerais e três postulados éticos. No seguimento do interrogatório tentou dizer que eram sim pertença de dois indivíduos estrangeiros (talvez seus cúmplices) de nome Vítor Hugo e Albert Camus, acabando contudo por confessar que os fabricara ele mesmo.
Presente ao Senhor Juiz de Instrução, o excelentíssimo magistrado determinou as medidas de segurança mais gravosas, indicando ainda que o detido estava impedido de utilizar pontos de exclamação e ditongos, sendo também alertado para a inibição de manejar bês, kapas e tiles. Dado que ficara provada a posse de uma gramática, o indivíduo recolheu de imediato ao calabouço por um período de catorze horas de leitura, sendo formalmente alertado para o facto de que não poderá, até determinação em contrário, contactar jotas e pontos circunflexos que não estiverem registados na Conservatória de Autores.
Ao detido foi levantado o competente processo."

(Nicolau Saião)