14.12.04

Post Scriptum # 426

Contos de Luís Graça no Granito.

Prosseguimos hoje a publicação do conto "O Insondável Caso do Misterioso Ponto GL", de Luís Graça, pertencente ao seu livro "15 desatinónimos para Fernando Pessoa", a publicar em breve.


O INSONDÁVEL CASO DO MISTERIOSO PONTO GL
(Segunda Parte)


Era óbvio que Grafenberg também sabia o que era o mastoideu. Mas não foi disso que falou a seguir. Referiu de imediato que a "Borboleta em suspensão" também podia ser designada por Aka Somf (senta-te na minha cara). Meia-hora depois, com um ar grave, rematou: "O factor prazer durante a cópula é directamente proporcional ao conforto da posição que ambos adoptarem".
E isto independentemente de se ser de Esquerda ou de Direita.
- O senhor Fernando é um homem culto, já vi. Mas sabe, por exemplo, o que é o nó Y?
Já eram letras a mais para uma só tarde. Fernando António encolheu os ombros e Florbela Espanca solidarizou-se com o poeta, na sua ignorância.
- Y só conheço o suplemento do "Público", às sextas-feiras - afirmou Fernando.
- Nó, só conheço os de marinheiro e o górdio - disse Florbela.
- Para o movimento de nó Y, o homem alarga a lábia, servindo-se de dois dedos de uma mão e, com a segunda mão posicionada mais acima, coloca o dedo médio, ou os dois juntos, de modo a massajar o clítoris com movimentos laterais, para cima e para baixo, ou com movimentos circulares.
"Chapeau"!
Grafenberg não tinha apenas lábia. Ele sabia mesmo do que falava.
- Permitam-me que lhes aconselhe a leitura de Puchkine.
- Eu já leio os contos de Puchkine. Muitíssimo bons - confessou Fernando.
- Ah! o cavalheiro conhece os contos. Mas eu não me refiro aos contos. Refiro-me ao seu diário secreto. Conhece? Não? Está a ver como são as coisas?
Ora bolas! O Grafenberg começava a tornar-se um bocado chato, com a sua omnisciência. Está certo que já se tinha aprendido umas coisas, mas se o homem quase não passava a bola, era sabido que a tarde ameaçava tornar-se longa como o caraças. O melhor era mandar vir mais uma meia-dúzia de bagaços, pelo sim pelo não.
"E ser cornudo é horroroso e insuportável. Ninguém se aproveitou tanto da falta de conhecimento dos maridos como eu, e como eu gostava de ver os seus cornos a crescer, invisíveis para todos, excepto para mim!".
Pois. A páginas 25 do livro editado pela Difel.

O homem citava as páginas como quem bebe um copo de água. Ou um bagacito, no meu caso. Foi a Florbela quem salvou a situação, desviando a conversa para os tempos retroactivos dos romanos e levando o jogo para o livro escrito por John Clarke, primo do antigo campeão de Fórmula Um, Jim Clark. "Le Sexe à Rome", editions de La Martinière, gravura sugestiva na capa, com uma romana montada num romano. Uma pintura erótica da Rua Mercúrio, em Pompeia, no século I.
Alguns investigadores defendem que a mulher se chamava Maria José e o homem João Francisco, mas é altamente improvável.
- Sabe, amigo Grafenberg, muito do que nos disse já os romanos sabiam, séculos atrás.
- Não duvido, cara senhora. Mas é preciso sistematizar as coisas.
- O amigo Grafenberg sabia que a páginas 67 de "Le sexe à Rome" o último subtítulo diz "Tableaux de sex shows dans l'auberge de la rue Mercure?" - invectivou Florbela.
- Desconhecia totalmente, minha amiga. Por quem é!
- E sabia que isto só foi retirado das cinzas em 1823?
- Não fazia a mínima ideia.
Ora toma! Boa, Florbela! Só para o homem não ter a mania que sabe tudo. Já estava capaz de o mandar meter o dedo no rabo. Não o faço por mera prudência. O gajo punha-se logo a citar as técnicas de meter o dedo no rabo e eu é que ficava de cara à banda. Vou contra-atacar, agora que a Florbela já o encostou às cordas e o canto neutro está ocupado por vendedores de bijuteria.
- Amigo Grafenberg: já que estamos em maré de confidências, sabe o que é o ponto L?
O homem ficou branco. Suores frios começaram a escorrer-lhe pelas costas abaixo. Tantos anos de taradice sexual, tantas horas enfiado nas bibliotecas a masturbar-se com as gravuras antigas, tanto esforço posto em causa de um momento para o outro. Primeiro, o tal livro dos romanos que ele desconhecia por completo. Depois, um ponto L perfeitamente omisso no seu repertório de conhecimentos. Ó Céus cruéis!
Fernando António avançou, decidido.
- O Ponto L é o Orgasmo Literário, amigo Grafenberg!
Completamente derrotado, Grafenberg escusou-se com uma conferências das 9 da noite em Leipzig, com um helicóptero à sua espera, com um javali ao lume. Uma coisa assim. Foi-se. E tudo o vento levou.

Fernando António e Florbela Espanca suspiraram.
- Olha, Fernando, vai o meu último soneto, antes do jantar?
- Vamos nisso, Florbela.
- Chama-se "Horas rubras". É assim: "Horas profundas, lentas e caladas/Feitas de beijos sensuais e ardentes,/De noites de volúpia, noites quentes/Onde há risos de virgens desmaiadas...
Oiço as olaias rindo desgrenhadas.../Tombam astros em fogo, astros dementes,/E do luar os beijos languescentes/São pedaços de prata plas estradas...
Os meus lábios são brancos como lagos.../Os meus braços são leves como afagos./Vestiu-os o luar de sedas puras...
Sou chama e neve branca e misteriosa.../E sou, talvez na noite voluptuosa,/Ó meu Poeta, o beijo que procuras!"
- Belo poema.
- Obrigada. Fi-lo há dias, no intervalo da orgia na mansão.
- Ah! daí a referência aos risos de virgens desmaiadas...
- Pois é, primeiro riem-se, depois desmaiam, quando percebem o que lhes vai acontecer. A propósito, vamos pagar a conta, que ainda tenho de ir comprar um capuz novo, antes da sex-shop fechar. Tenho usado um de cabedal preto que é uma verdadeira estufa. Uma pessoa até perde o prazer de estar a chicotear o vereador da Cultura...
Fernando António, cavalheiro, pagou a conta. Florbela saiu primeiro, em passo de corrida, dificultado pelos tacões-agulha dos seus elegantes sapatos à sado-masoquista. A sex-shop estava quase a fechar. Combinaram encontrar-se uma hora mais tarde.
O restaurante "O pargo enchernado" (especializado em "Pargo à la cherne","Caldeirada de lulas enraivecidas" e "Cataplana à la bacana com banana") era um "must" de Vila Viçosa e já tinha sido combinado que Fernando António e Florbela Espanca fariam as honras da casa no primeiro dia da estada do poeta no magnificente rincão telúrico de Portugal.
Fernando escolheu uma mesa discreta, ao pé da lareira, encimada por alguns versos de Florbela:
"Gosto de ti apaixonadamente,/De ti que és a vitória, a salvação,/De ti que me trouxeste pela mão/Até ao brilho desta chama quente". Ao lado, um brasão de Vila Viçosa e um quadro do Marquês de Bricolage, com uma caçadeira na mão e um perdigueiro aos seus pés.

Fernando sentou-se, pediu um tartex e um conhaque, só para entreter. Um criado de cabelos grisalhos e pinta de bissexual veio limpar a mesa das migalhas, com uma escovinha toda amaricada.
(Continua)

(Luís Graça)