Post Scriptum # 434
Contos de Luís Graça no Granito.
Prosseguimos hoje a apresentação dos novos contos de Luís Graça, com a publicação da segunda parte de "´Tá Tudo na Maior?", pertencente ao seu livro "15 desatinónimos para Fernando Pessoa", a publicar em breve.
'TÁ TUDO NA MAIOR?
(Segunda Parte)
Bernie queria prosseguir. Bernie queria andar para a frente e não conseguia. Faltava-lhe espaço afectivo. Faltava-lhe uma aberta entre os fãs. Bernie levantou os braços e tentou continuar:
- Muito obrigado! We love you! Thank you, Lisbon. Portugal é grande!
A multidão apanhou o lamiré e mudou de palavra de ordem:
- Portugal! Portugal! Portugal!
Milhares de bandeiras que tinham sobrado do Euro-2004 emanciparam-se das mãos dos fãs e começaram a bailar na atmosfera, autênticos bailarinos russos em pontas.
- Obrigado, Portugal! Obrigado, Lisboa! Mas deixem-me dizer...
A multidão não deixava. Se não fosse o controlo apertado da segurança, quase se poderia dizer que uma considerável parte da multidão estava "pedrada". Mas faz algum sentido falar disto num festival musical?
Finalmente, o senhor Soares lá conseguiu passar a sua mensagem:
- "Uma só coisa me maravilha mais do que a estupidez com que a maioria dos homens vive a sua vida: é a inteligência que há nessa estupidez. A monotonia das vidas vulgares é, aparentemente, pavorosa. Estou almoçando neste restaurante vulgar, e olho, para além do balcão, para a figura do cozinheiro e, aqui ao pé de mim, para o criado já velho que me serve, como há trinta anos, creio, serve nesta casa. Que vidas são as destes homens? Está há 40 anos em Lisboa e nunca foi sequer à Rotunda, nem a um teatro!"
Dois fãs que seguiam os "Village Persons" para todo o lado entraram em diálogo:
- O gajo já fez este discurso em Copenhaga, há dois meses!
- Pois foi. Trocou só as cidades e a profissão do velho. Em Copenhaga era um carpinteiro.
- Mas onde é que o gajo vai buscar estas coisas?
- Então não sabes?
- Não...
- Livro do Desassossego, página 183, Assírio e Alvim.
- Ah! pois é...
Bernie Soares anunciou a canção seguinte do alinhamento que os "Village Persons" cumpriam com a devoção de uma seita secreta:
- E agora um tema de Álvaro Fields, composto já há bastante tempo, quando éramos jovens. Mas ainda nos sentimos bastante jovens. Uma composição de Álvaro Fields: "Freddie".
E o grupo lá atacou a balada:
"Freddie, eu chamava-te Baby, porque tu eras louro, branco e eu amava-te/Quantas imperatrizes por reinar e princesas destronadas tu foste para mim/Mary, mal tu sabes quantos casais honestos, quantas famílias felizes/viveram em ti os meus olhos e o meu braço cingindo e a minha consciência incerta/Mary, eu sou infeliz/Freddie, eu sou infeliz".
Acenderam-se isqueiros, iniciaram-se em ofuscantes cintilações nocturnas aqueles coisinhos verde-alface e aqueles coisinhos rosa que são vendidos a pataco. Os braços da multidão ao jeito das vozes, de um lado para o outro, de um outro para o lado, como uma espiga ao vento nos verdes trigais em flor.
E depois Bernie Soares cedeu um bocadichinho de protagonismo ao Ricky Reis e ele veio anunciar a presença-surpresa de um convidado muito especial:
- E agora temos uma surpresa para vocês. É um homem de um sucesso enorme, respeitado em todo o mundo. Estava muito sossegadinho na tenda VIP, lá bem ao fundo, naquelas colinas distantes, a tentar passar despercebido. Mas nós fomos lá buscá-lo. Perdemos um bom bocado a convencê-lo, mas é com grande prazer que posso anunciar que o convidámos a vir cantar um tema do Álvaro Fields. Meus amigos e minhas amigas, é um sumo privilégio poder anunciar a presença neste estaminé de um grande senhor do mundo da canção, de um grande senhor da canção e de um grande senhor do mundo: Roberto Leal!
Roberto Leal entrou em cena no seu trote habitual de Alter, imaculadamente branco, com uma discreta publicidade institucional à Olá nas costas do casaco.
- Boa-noite, Lisboa! Olá, brasileiros deste país! Hello, everybody! My name is Leal, Roberto Leal. Shaken, not coiso-e-tal.
E o raio do homem agarrou logo a audiência. Passou o microfone por cima da cabeça, passou o microfone por baixo das pernas, passou o microfone por trás das costas. Pouca gente sabe, mas Roberto Leal fez um estágio no Chapiteau, na Costa do Castelo, quando era jovem.
- Lisboa, estás preparada? Então, aqui vai. De Álvaro Fields, "Meu coração postigo".
"Meu coração clube, sala, plateia, capacho, guichet, portaló/Ponte, cancela, excursão, marcha, viagem, leilão, feira, arraial/Meu coração postigo/Meu coração encomenda/Meu coração carta, bagagem, satisfação, entrega/Meu coração a margem, o limite, a súmula, o índice/Eh-lá,eh-lá,eh-lá, bazar o meu coração".
Mais um delírio. Mais outro grande momento para a história da música. Até as ameaças de nuvem se balançaram no swing compassado da voz Leal. E Bernie Soares voltou para o volante do microfone.
(Continua)
(Luís Graça)
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