21.12.04

Post Scriptum # 436

Contos de Luís Graça no Granito.

Concluimos hoje a apresentação dos novos contos de Luís Graça, com a publicação da terceira e última parte do excelente "´Tá Tudo na Maior?", pertencente ao seu livro "15 Desatinónimos para Fernando Pessoa", a publicar em breve.

'TÁ TUDO NA MAIOR?
(Terceira Parte)


Mais um delírio. Mais outro grande momento para a história da música. Até as ameaças de nuvem se balançaram no swing compassado da voz Leal. E Bernie Soares voltou para o volante do microfone.
- Há muitos intelectuais que não gostam do Roberto Leal. "E dão a sua opinião. Mas uma opinião é uma grosseria, mesmo quando não é sincera. Toda a sinceridade é uma intolerância. Não há liberais sinceros. De resto, não há liberais.
Ah! é um erro doloroso e crasso aquela distinção que os revolucionários estabelecem entre burgueses e povo, ou fidalgos e povo, ou governantes e governados. A distinção é entre adaptados e inadaptados: o mais é literatura, e má literatura. O mendigo, se é adaptado, pode amanhã ser rei, porém perdeu com isso a virtude de ser mendigo. Passou a fronteira e perdeu a nacionalidade."

As horas passaram. As horas voaram.Tema após tema. Delírio após delírio. Lisboa a suar de prazer. Lisboa voraz de música. Lisboa a destilar ânsias de melodia. Os "Village Persons" a sair do palco. Zeus a assobiar pelo meio das barbas, a pedir bis, lá das galinheiras. Neptuno a bater com os pés lá do fundo dos oceanos. Então e os encores? Encore, rien? Atão eles na voltam ao palco?
Voltou só um a anunciar a surpresa. Ricky Reis:
- Thank you, Lisboa. Especialmente para vocês, já em pleno prolongamento, a última surpresa. Para as meninas já tivemos um louro. E agora anunciamos um chocolatinho, bem moreno, para os meninos. É uma jovem promessa de Newark, toca piano e fala inglês: Alícia Chaves.
Por amor de Deus! Ai o nosso coração. Alícia Chaves cantou e encantou em "If I ain't got you", dedicado ao líder da banda e seu conselheiro musical, Bernie Soares.
- Esta miúda vai longe... e desnivela-se em conglomerados de sombra, recortados de um lado a branco, com diferenças azuladas de madrepérola fria (página 385).
Final do concerto. Todo a malta a penantes para casa. Músicos e entourage para os bastidores. E o Bernie com tiques de estrela do rock, a lançar olhares libidinosos às miúdas que lhe apareciam pela frente.
Mesa farta, tipo casamento. Bernie mandou-se às entradas: melão de Almeirim com morcela. E verde à pressão.
- "Conheço, translata, a sensação de ter comido de mais. Conheço-a com a sensação, não com o estômago. Há dias em que em mim se comeu de mais. Estou pesado de corpo e lorpa de gestos; tenho vontade de não me tirar dali de maneira nenhuma."
E vá de sentar a Alícia ao colo, sem respeito nenhum:
- Ai não te chamas mesmo Alícia Chaves? Chaves é nome artístico, porque a tua família é de Chaves e emigrou para os States... tem piada, só agora é que sei disto... e já te ando a dar conselhos há uns tempos...
"As tuas mãos são rolas presas. Os teus lábios são rolas mudas (que aos meus olhos vêm arrulhar). Todos os teus gestos são aves. És andorinha no abaixares-te, condor no olhares-me, águia nos teus êxtases de orgulhosa indiferente. Tu és toda alada." (página 292).
Bernie sentia um prazer imenso em ter Alícia ao seu colo. "Todo o prazer é um vício, porque buscar o prazer é o que todos fazem na vida, e o único vício negro é fazer o que toda a gente faz."
E a madrugada correu suave. Croquetes, paio, lombo enguitado (petisco alentejano, não conhecem?), batatas fritas de pacote, lagosta à Terminator, aletria, mousse de chocolate caseira, lasagna clássica e vegetariana. Coisas da música.
Depois, Fernando Pessoa entrou no convívio, a esfregar as mãos. O festival tinha corrido bem.
- Amanhã, já sabem. Todos prontinhos às 14 horas, temos um gig em Loures, no Pavilhão Paz e Amizade.

Von Grazen, 28/7/2004, 03h11m

Doping: Coors (Borrowed Heaven), The diary of Alicia Keys, gelados da Hagen-Dasz.


(Luís Graça)