Post Scriptum # 424
Contos de Luís Graça no Granito.
O INSONDÁVEL CASO DO MISTERIOSO PONTO GL
(Primeira parte)
Bela terra, Vila Viçosa. Fernando António combinara encontrar-se na localidade com a sua amiga Florbela Espanca, presidente de um movimento de libertação da mulher.
De forma secreta, Florbela também era a líder de um movimento sado-masoquista, que "noite sim-noite não" se reunia numa mansão para ler Sade, Bataille, Walser e praticar sexo violento.
O dia amanhecera com manias de brisa e histerismos de nuvens indecisas. Ora tapavam o sol, ora o descobriam sem o mínimo pudor. Poderia dizer-se com alguma propriedade que estava um céu de pintor. Não faltavam motivos iconográficos. O director de fotografia Robbie Muller também apreciaria sobremaneira os efeitos especiais da troposfera.
Fernando António estava imerso na leitura, bebia bagacinhos e de vez em quando levantava os olhos para o céu e ajeitava o chapéu, onde pousavam, de cinco em cinco minutos, libélulas particularmente adeptas de Florbela, que deitavam o canto do olho aos sonetos que Fernando António lia avida e fleumaticamente.
"Tanto clarão nas trevas refulgiu,/E tanto beijo a boca me queimava!/E era o sol que os longes deslumbrava/Igual a tanto sol que me fugiu!".
A páginas tantas, Fernando António cansou-se da inconstância das libélulas, no seu pousar e levantar assustadiço. Comeu uma, por mera dissuasão, pois o poeta ainda não tinha fome. Eram apenas 11 horas, 23 minutos e 55 segundos. Fernando António nunca tinha fome antes do meio-dia, 7 minutos e 18 segundos.
Florbela chegou pouco depois, com uma perla de transpiração a escorrer-lhe pela face esquerda. Sentou-se num desvario, levantou o braço e pediu um Martini, com uma casquinha de limão.
- Meu querido Fernando, então, o que me diz de Vila Viçosa?
- Bela terra, Florbela, bela terra.
- Eu sabia que o meu amigo havia de gostar. Por isso o convidei. Ó Fernando, tem uma coisa colada ao lábio, a sair-lhe da boca.
Fernando António levou a mão ao lábio e retirou cuidadosamente uma asa de libélula que tinha ficado presa.
- Não é nada. Obrigado, Florbela.
A conversa começou aos ésses, tomou rumos intelectuais, peregrinou por questões turísticas, andou ao sabor do vento e dos acasos. Pelas 13 horas, 19 minutos e 13 segundos, o marcador assinalava: Fernando António, 11 (bagaços) - Florbela Espanca, 6 (martinis). Certo que Fernando partira com avanço, mas a menina Florbela não era peca a dar-lhe com solenidade nos martinitos.
- Ó Fernando, acha que era boa ideia pedirmos qualquer coisa para petiscar, assim tipo almoço?
- A Florbela é que sabe. Por mim, não há nada como um bagacinho e um soneto dos seus. De resto, já comi um insecto, que nem me soube nada mal.
Vieram queijinhos frescos. Veio broa. Veio manteiguinha.Veio um jarrinho de tinto, para misturar com Seven Up, à camionista de longo curso, antes do "balão". Depois, como prato principal, cabrito assado à padeiro.
Tanto Florbela como Fernando não deram confiança às sobremesas, saltando logo para café e digestivos. No caso, cálices de Cointreau. Podia-se dizer que os dois amigos estavam bem. Estômagos aconchegados, a alma tranquila de ardências.
- Conte-me lá, Florbela, e o seu clube feminino?
- Sabe, Fernando, os tempos vão maus para a libertação das mulheres. O que me vale são as sessões de literatura nocturna. E mais umas coisinhas.
- Que coisinhas?
Florbela inclinou-se para a frente, agarrou com ternura na cabeça do poeta e segredou-lhe ao ouvido todo o pitéu sado-masoquista na mansão da Marquesa de Osga.
- A sério?!?
- Ó Fernando, eu ia lá brincar com uma coisa destas! Às vezes, basta tocarem-me num certo sítio e eu expludo logo. Sabe o que é o ponto G, não sabe?
Fernando António não sabia. Mas a vida tem curiosas coincidências. Um sujeito que discretamente lia o "Diário de Notícias" na mesa do lado, levantou-se num rompante, tirou o chapéu num gesto assaz nobiliárquico e apresentou-se:
- Se me permitem, creio que está no ponto de me apresentar. O meu nome é Ernst Grafenberg e sou o inventor do Ponto G. Sabem, o Ponto G "é uma área de tecido, semelhante a um botão, na parede exterior da vagina, que incha durante a excitação sexual. Quando o Ponto G é estimulado e suavemente pressionado, a mulher experimenta um orgasmo rápido e intenso. Alguns pesquisadores acreditam que o Ponto G pode ser o equivalente feminino à próstata, já que está situado perto do colo da bexiga. Procurar o Ponto G durante os preliminares é um modo excelente de ambos ficarem excitados sexualmente. A sua parceira deve deitar-se de costas enquanto você se coloca de lado, junto dela".
Primeiro, Fernando António e Florbela Espanca ficaram sem reacção. Poderia dar-se o caso de estarem em presença de um embusteiro, com particular tendência para memorizar extractos do livro "Sexo e Prazer", edições Asa. Fernando resolveu testar o homem:
- Então diga lá quantos centímetros de dedo indicador lubrificado se devem inserir na vagina...
- Bem, cinco a sete centímetros e meio - disse o alegado Grafenberg, enquanto levantava o seu indicador direito de forma professoral e os olhos lhe brilhavam.
Estes últimos pormenores convenceram Fernando António, que convidou o cavalheiro a sentar-se. Uma hora passada, pode-se dizer que os sintomas de intimidade se intensificaram. Grafenberg tinha o dom da oratória e era profundamente conhecedor da temática sexual. Além disso, possuía ainda o raro e apreciado mérito de misturar a linguagem científica com anedotas alentejanas sobre sexo.
- A senhora dona Florbela tem cara de ser dada a práticas sexuais, digamos, desviantes. E digo desviantes sem nenhum propósito de julgamento moral. Deixe-me que lhe aconselhe a posição de "Borboleta em suspensão".
Banzados. Ah! pois! Uma pessoa pode perceber muito de poesia, até pode ser dada às artes do sexo, mas não está à espera que lhe apareça um Ernst Grafenberg a aconselhar posições que tais.
Banzados. Foi assim que ficaram Fernando e Florbela.
Grafenberg estava embalado. Citou, de memória, o livro "O grande O", de Lou Paget, a páginas 115: "A posição de 'Borboleta em Suspensão' permite que a mulher controle a sensação de que precisa e quer. Neste desenho, em particular, ela apoia o peito contra a cabeceira da cama, enquanto o homem tem a cabeça apoiada na almofada. Desta forma, ele pode ajustar a pressão sobre o seu rosto e pescoço sem ficar com a sensação de que está a ser esborrachado".
Era óbvio que Grafenberg também sabia o que era o mastoideu. Mas não foi disso que falou a seguir.
(Continua)
(Luís Graça)
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