15.12.04

Post Scriptum # 429

Contos de Luís Graça no Granito.

O INSONDÁVEL CASO DO MISTERIOSO PONTO GL
(Terceira e Última Parte)


Fernando sentou-se, pediu um tartex e um conhaque, só para entreter. Um criado de cabelos grisalhos e pinta de bissexual veio limpar a mesa das migalhas, com uma escovinha toda amaricada. O som da escova na toalha manchada de "Porta da Travessa tinto 1640, 2ª edição" produziu um efeito calmante no lisboeta, que pediu um charuto e se recostou no amplo cadeirão de cabedal. Pouco depois chegou Florbela, com um saco de plástico preto e doirado.
- Então, essas compras?
- Sabe, Fernando, este país está cada vez mais pindérico. Para além de fechar às 19 horas, a sex-shop tem uma capacidade de rotação de produtos verdadeiramente escassa. Lá tive de comprar um capuz do ano passado, uma coisa completamente ultrapassada. Já ninguém fustiga em Paris com um capuz assim. Mas nós somos o esgoto da Europa e Vila Viçosa deve ser a capital do "dumping" dos produtos S&M.
- Tenha calma, Florbela. Também não há-de ser assim tão mau.
- É, sim senhor. Já viu a carta, Fernando? Aconselho particularmente as "Enguias ao supremo enleio". É um prato de homenagem ao meu poema, que termina assim: "E quando a derradeira, enfim, vier,/Nesse corpo vibrante de mulher/Será o meu que hás-de encontrar ainda...".
Fernando estava mais virado para o tornedó de carapaus com molho à espanhola, acompanhado por feijão verde e castanhas assadas, uma especialidade do Chef Sílvio, recém-chegado de um estágio de "nouvelle cuisine" na Tasconha. Florbela pediu a Hamlet de Ovas de Intrujão. Com uma salada de alface e tomate, temperada com agriões.
O repasto estava a decorrer da melhor forma, ao som ambiente de Mozart, que se esgueirava pela sala ampla com a subtileza de um esquilo dos jardins de Gotemburgo. Na mesa ao lado, um sujeitinho não parava de rabiscar, em fúria, apontamentos para algo que o afligia. Escrevia e riscava, riscava e escrevia.
Às tantas, Fernando António, prestável, ofereceu-se:
- Peço desculpa de me intrometer, mas a minha pátria é a língua portuguesa. Posso ajudá-lo?
- Obrigadíssimo. Estou a tentar escrever a minha prosa de hoje para a crónica "O barbante na horizontal". Não me sai nada. Nem um filme, nem uma peça de teatro, nem um comentário político. Vila Viçosa secou-me...
- Não diga isso. Uma terra que inspira a Florbela não pode secar ninguém literariamente. Olhe, ainda hoje à tarde senti uma verdadeira aproximação ao Ponto L...
- Ó meu amigo, que felicidade! Quanto eu não daria para aflorar de raspão o Ponto L...

Fernando António estranhou que o fulano soubesse o que era o Ponto L. Mas a verdade é que estava perfeitamente ciente dessa realidade literária. Apresentaram-se.
- Fernando António, escritor.
- Eddie Rabbit, professor subsidiário.
- Então o que o traz a Vila Viçosa?
- Estou a preparar uma tese, precisamente sobre o Ponto L. E talvez sobre o Ponto GL.
- O Ponto GL?!? - estampou-se de estupores o rosto de Florbela.
- Sim, o Ponto GL é o nirvana. A definição é esta: "Atinge-se o ponto GL quando a qualidade literária é tão elevada que produz uma ejaculação". Ou seja, é a mistura do Ponto G com o Ponto L. Não há orgasmo mais perfeito.
- Nem a surfar um "pipeline" no Hawai? - perguntou Fernando.
- Nem isso. Nunca atingi o Ponto L, mas tenho amigos que o conseguiram, embora nunca atingissem o GL. Donde, o mais correcto é conformarmo-nos com o nosso destino. Donde, o melhor é continuar a ler Benjamin, Derrida e outros que tais. Dá sempre jeito para uma boa mesa redonda, um colóquio. Donde, cá vamos andando.
O diálogo prosseguiu animado pela noite fora. Fernando António, Florbela Espanca e Eddie Rabbit partilhavam a paixão pela literatura. Ora, se juntarmos a esse gosto uma mesa farta e aprimorada, que mais se pode pedir? Eddie Rabbit acabou por escrever a sua crónica à sobremesa ("O cinema de animação existe?") e saiu com os dois amigos para a noite de Vila Viçosa, agitada por uma movida sempre renovada.
No restaurante "O pargo enchernado", finalmente vazio, um quadro vetusto ganhou uma animação particular. O Marquês de Bricolage podia finalmente mexer-se. Fez uns exercícios de desentorpecimento, baixou-se para um afago ao canídeo e desabafou:
- Porra, estava a ver que estes chatos nunca mais se iam embora. Como está o meu Mondeguinho? Uma festinha no Mondeguinho, uma festinha no Mondeguinho...
Na parede em frente, num quadro de Sisley, um homem num barco gritou para o Marquês de Bricolage:
- Ó Marquês! Todas as noites é a mesma coisa. Desvie lá a arma! Sempre que faz festas ao cão a arma fica apontada para o meu quadro. Não lhe chegou ter acertado na aguarela da Catarina Eufémia na Noite de Natal?
Quem sabe alguma coisa sobre os fantasmas de Vila Viçosa que ponha o dedo no ar. Está bem, Grafenberg, está bem... vejo que o senhor sabe.

Von Grazen, 20/7/2204, 00h45m.

(Luís Graça)

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