Post Scriptum # 422
Contos de Luís Graça no Granito.
Esta é a segunda e última parte do conto "Mazurka Apassionata", de Luís Graça, cuja primeira parte publicámos ontem.
MAZURKA APASSIONATA
(Continuação)
A conversa estava no seu Evereste intelectual quando, ziguezagueando por entre os moinantes teutónicos, se chegou à boca de cena o grande Jorge Sandes, amigo íntimo de Frederik.
Se Álvaro já estava quase convencido das virtudes éticas da mazurka, a chegada de Jorge Sandes acabou por se revelar decisiva, porque o raio do homem era um nadinha persuasivo no que tocava a masturbar os méritos mazurkenses:
- Álvarinho, sabes que eu até tenho umas zangas valentes com o Fred, mas quando ele tem razão sou o primeiro a dar o baço a torcer. A mazurka foi a melhor coisinha que se inventou até agora, no que diz respeito a música. A mazurka é a rainha das danças sociais, quando bem executada. E aqui o Fred toca que é um disparate. A Maria Nicolaevna, filha do Nicolau, criou a Polka Mazur, que é um disparate de qualidade. Estupidamente divina, ainda melhor que uma Carlsberg estupidamente gelada, num fim de tarde na Fonte da Telha.
- Não sei quem é a Maria Nicolaevna. Já há muito tempo que não vou às putas. E a única que conheço com jeito para tocar, aqui nas docas, é a Heidi, que toca clarinete e é só quando está bêbeda.
- Álvarinho, acorda, por favor. A Maria Nicolaevna é a filha do Nicolau I da Rússia e criou a Polka Mazur em 1830!
- Sabia lá eu!
Frederik e Jorge Sandes resolveram deixar a conversa por ali e foram-se embora, deixando Álvaro embrenhado nos seus embebidos bagaçais.Mal saíram, Frida Pizza-Khalos olhou de soslaio para Álvaro dos Prados e dos lábios saiu-lhe um "psst" mais sibilante que uma naja desempregada a caminho de um trilho no meio de ervas altas.
- Herr Dos Prados, o senhor é que sabe da sua vida, mas eu se fosse a si tinha muito cuidado. O Herr Sandes gosta de se vestir de mulher quando está sozinho com o Frederik. Gosto muito de o ver a tocar na bazuka, mas é um sujeito estranho. O meu dever é avisá-lo!
- Ah! que frescura na face de não cumprir um dever! Agradeço todo o seu cuidado, Dona Frida, mas sei as linhas com que me coso. E também sei as outras linhas férreas todas. Tive uma boa instrução, D. Frida. Hoje a miudagem não sabe nada. É o dia todo enfiada no buraco do Osório, aquele "bunker" infecto cheio de mesas de matraquilhos, cavalinhos e dominó. No meu tempo, se queríamos divertir-nos, víamos as moscas ao microscópio, tínhamos caixinhas cheias de calhaus, tipo feldspato, mica, hulha, coisas assim, D. Frida. Então e as suas pinturas?
- Ah! tem estado tudo em meias tintas, Herr Dos Prados. Não é só a inspiração. Sabe, isto de ter uma tasca em zona de putas dá muito trabalho. Quem me dera poder dedicar-me à pintura a tempo inteiro.
- Se um dia fôr a Lisboa, pergunte por mim na Brazileira. Tenho uma amiga minha que a pode ajudar a mostrar os seus trabalhos.
- Ai sim? E ela pinta bem?
- Olá se pinta! Na zona do Rego ninguém pinta melhor do que a Paula. Abusa um bocado dos castanhos e das gajas com cara de enjoadas, mas tem uma pintura que sai muito bem no Natal e na Páscoa.
Álvaro mandou pôr a despesa na conta e saiu.
Para variar, estava um frio do caraças e chovia. "Hamburgo era uma cidade que não se comia nem com mostarda ou molho de tomate!", pensou Fernando António Nogueira Pessoa, um heterónimo que Álvaro tinha criado para os climas mais agrestes.
O Fred e o Sandes já deviam estar aconchegados num salão qualquer a discutir as últimas teorias filosóficas. Que ficassem com as paranóias deles. Álvaro pôs-se a caminhar ao sabor das mamas e das mini-saias, do cheiro convulso das ratas mal lavadas. Não lhe apetecia cobrir. Não lhe apetecia descobrir-se (continuava a chover). Nem se conseguia descobrir.
Havia dias em que acordava na cama com o Ricardo Reis. Havia noites em que não lhe saía da cabeça o Bernardo Soares. O pior era quando lhe invadia a intimidade um novo heterónimo, o Soares dos Reis, uma perniciosa mistura dos dois, que não descansou enquanto não arranjou um "tacho" num museu do Porto.
Álvaro nunca conseguiu vender-se aos simples interesses materiais.
"Não, não quero nada, já disse que não quero nada". Sempre disse isto. E nunca quis nada para si. Nem para si, nem para a Daisy, a sua miúda. A Ofélia recusou-se a fazer-lhe certas coisas e ele pô-la com dono.
"Está bem que o Soares dos Reis é um heterónimo com os seus méritos. Isso ninguém lhe retira. Foi ele que levou para o museu de Vila Velha de Rodin a famosa estátua do "Pensador". Ao fim da primeira semana os putos já a tinham enchido de grafitti, mas a culpa foi da falta de vigilância. Portugal é Portugal, não é? Não dá para deixar originais nas exposições, assim em auto-gestão, sem ninguém a vigiar".
Era um bom homem, Álvaro dos Prados. Com os seus defeitos, como toda a gente. Nem todos podem ter a arte de conjugar uma mazurka de trás para a frente.
Hamburgo tinha aparecido à má-fila na sua vida, enquanto o sócio de Herr Neuss Ferrari, Doktor Wolf Bat, não se decidia a dar andamento ao negócio do castelo. Mas a firma londrina tinha mandado Jonathan Parker com os documentos e o jovem perdeu-se de amores por uma miúda pálida, abriu uma fábrica de canetas e nunca mais se soube dele pelos lados da Roménia.
Coisas que um homem não pode prever.
Álvaro levantou a gola puída do casaco, abanou as abas do chapéu para sacudir a chuva, afiambrou meia-dúzia de passos mais decididos e desligou-se da realidade com a suavidade dos sonhadores.
Ele sabia que a eternidade lhe pagaria o devido tributo.
Com ou sem mazurkas.
Era o que mais faltava.
(Luís Graça)
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