9.12.04

Post Scriptum # 429

Contos de Luís Graça no Granito.

O Quartzo, Feldspato & Mica tem o orgulho de apresentar, num rigoroso exclusivo, três dos mais recentes contos de Luís Graça. Estes textos, ainda inéditos, pertencem ao seu livro "15 desatinónimos para Fernando Pessoa", compilação de contos satíricos baseados no poeta, nos seus heterónimos e na sua obra, e que deverá ser editado em breve. Hoje publicamos a primeira parte do hilariante "Mazurka Apassionata".


MAZURKA APASSIONATA

O fumo dos cigarros amarinhava escandalosamente pelas paredes rascas de uma tasca de má fama com o nome vulgar de "Le Polonais Heureux". Acção: Hamburgo. Zona: docas. Porque sim.
O tempo fosco e irritante convidava ao suicídio por acção directa, mas Álvaro dos Prados estava mais virado para a cerveja alemã. E a verdadeira devassidão etílica e existencial não podia encontrar melhor porto de abrigo do que "Le Polonais Heureux", assim baptizado em homenagem a um franco-polaco tuberculoso que se parecia um bocado de trombas com Óscar Selvagem, vate céltico arrogante e genial.
Frederik "Show-Pain" (dava-lhe para os "blues" e a música é que levava a toda a força com o granel melódico-depressivo) era um "habitué" do "Le Polonais Heureux" e Frida Pizza-Khalos (a dona da tasca) resolvera mudar o nome do estabelecimento de "Adolfo Mau-Feitio" para "Le Polonais Heureux".
Quando Álvaro entrou, o bofes-moles do Frederik estava sentado à pianola a tocar a sua mais recente mazurka: "Allez les Blues", copos 68, alínea c). Fez sinal a Álvaro para que se lhe juntasse. O português abancou sem preconceitos. Com um gesto dos lábios e um trejeito de sobrancelha (só ao alcance dos bêbedos mais dotados) encomendou em morse-mais-ou-menos uma cerveja alemã e um "shot" do bagacinho importado de Campo de Ourique City. Pois evidentemente. O poeta tinha garrafa (trazida da santa terrinha) com poiso certo no "Le Polonais Heureux".
- Então, man?
Frederik não era de grandes cerimónias com as palavras e Álvaro respondeu-lhe na mesma moeda, que não em marcos alemães.
- 'Tá-se bem.
A amizade tem destas coisas. É capaz de juntar um polaco que desistiu de Zelazowa Wola (também... um gajo que nasce num sítio destes o melhor que tem a fazer é emigrar) a um português que não gostava de viajar nem à lei da bala, mas que chegou a Hamburgo de paquete, para tratar de uns assuntos a Herr Neuss Ferrari. Uns terrenos nos Cárpatos, uma trama assim meio para o psicadélico-transilvânico.
Cenas.
- Gostas da minha última mazurka?
- Já te disse várias vezes que isso da bazuka não é música a sério. É bonito, mas falta-lhe o sentimento do fado.

Frederik ficou um bocado sentido com a "overdose" de sinceridade de Monsieur dos Prados e embezerrou, depois de sussurrar de forma audível:
- O que percebes tu de música? A tua pátria é a língua portuguesa.
- Fred, a amizade tem destas coisas: é preciso ouvir as verdades de coração aberto.
- Álvarinho, sabes que curto de ti bué, mas a minha cena é mesmo mazurkas. Ando nisto há muito tempo. Em Paris toda a malta adora este "swing".
- Música é Stan Getz, Ike Quebec. Saxofone a sério.
- Álvarinho, o jazz é devassidão. Olha, para já, um é drogado, o outro é preto.
- Tens de perceber uma coisa. Cada um com os seus paraísos artificiais, desde que não chateie os outros. Além do mais, não podes dizer que não gostas de jazz. Até aposto que farias excelentes duetos com Bill Evans e Kenny Barron.
- Essas gajos mazurkam?
- Não mazurkam nada, foda-se, que já me fizeste falar mal! São pianistas do melhor. Cinco estrelas!
O fumo dos cigarros manhosos e o cheiro a sovaco de puta misturou-se de forma subreptícia na atmosfera delirantemente subversiva do bar. Álvaro dos Prados desconhecia que desconhecia toda a essência de uma boa mazurkada.
Com jeitinho, à medida que os "shots" de bagaço iam amaciando o bucho do lusitano, Frederik ia convertendo o amigo à causa das mazurkas. Na pior das hipóteses, deixava-o na dúvida.
- É como te digo, Álvarinho, quem nunca mazurkou não pode atirar a primeira pedra.
Valha a verdade que Frederik tinha o dom da palavra. Percorreu o passado com inaudita titilância e, em pezinhos de mocassin, foi convencendo Álvaro da relevância histórico-musical da sua causa.
- Isto já vem do século XVI. Agora é uma dança polaca, mas está intimamente ligada com o oberek, a polska e o kujawiak.
- Do Kujawiak lembro-me bem. Foi mais um bom avançado que o Sporting queimou.
A conversa estava no seu Evereste intelectual quando
(continua...)

(Luís Graça)