8.3.04

Post Scriptum #168

"Os Sinos", de Edgar Allan Poe, numa tradução de Margarida Vale de Gato e com uma ilustração de Filipe Abranches.

aqui falámos da antologia poética de Edgar Allan Poe que a Margarida Vale de Gato está a preparar para a editora Errata. Graças a esse trabalho, já publicámos, em primeira mão, as traduções dos poemas “O Corvo” e “O Lago-Para”. Hoje, é a vez de “Os Sinos”, outro clássico de Poe. Como já é habitual, a Margarida preparou uma apresentação do poema e a excelente ilustração que acompanha o texto é de Filipe Abranches.

Tratando-se de um dos exemplos de poesia onomatopaica mais conhecidos na língua inglesa, o poema baseia-se em aliterações, rimas assonantes e monossilábicas a fim de caracterizar o som distinto de cada um dos sinos — de trenós, de casamento, de alarme e de finados — representantivos das quatro idades da História (prata, ouro, bronze e ferro) e do Homem (juventude, compromisso, crise e luto). A mudança da felicidade das duas primeiras estrofes para o desespero e solenidade das últimas correponde também a uma alteração de projecção no futuro para o tempo presente, dominado pelo canto triunfal (péan) da morte. A alegria prenunciada nas primeiras fases da vida humana é ironicamente concretizada pelo júbilo dos seres necrófagos extra-terrenos (ghouls). O texto destaca, portanto uma ideia central na poesia de Poe: a morte e a dissolução no absurdo para que tende todo o universo material, conforme explicitado na cosmogonia de “Eureka” (1848), o poema-ensaio que Poe compôs também no fim da vida (recentemente editado em Portugal, pela “Coisas de Ler” ).

Na tradução, uma vez que a sonoridade evocada pela repetição de «sinos» difere bastante do inglês, «bells», foram tomadas algumas liberdades poéticas de compensação; aceitam-se sugestões; existe ainda, em português continental, a versão de A. Herculano de Carvalho publicada em Musa de Quatro Idiomas, Lisboa, Ática, 1947.
Últimos reparos: «rúnica rima» pretende equivaler a um encantamento ou sortilégio, aludindo aos usos mágicos e divinatórios das runas, o primeiro alfabeto dos povos nórdicos; «tintibulações» traduz o inglês «tintinnabulations», de origem incerta, mas cuja primeira utilização costuma ser atribuída pelos dicionários a Edgar Allan Poe.




OS SINOS

1.
Escutai os trenós com sinos:
De prata, os sinos!
Que mundo de tanta alegria sua música anuncia!
E, retinindo, tilintam
No ar glacial nocturno!
Enquanto, em despique, as estrelas,
Salpicando os céus, cintilam
Com cristalino deleite;
Marcam tempo com aprumo
Como uma rúnica rima,
Nas tintibulações do ritmo—propaladas
Dos balidos dos chocalhos
Desses sinos, sinos, sinos:
Desses sinos que repicam seus badalos.

2.
Escutai das bodas os sinos:
De ouro, os sinos!
Que mundo de tanta harmonia em bonança anunciam!
No ar da noite tão fresco
Seu deleite é como um eco!
Notas de ouro se fundindo
Como um coro!
Canto dúctil que flutua
Até à rola que arrulha
Vendo a lua!
Oh, das celas onde se exala
É tremenda a eufonia que se escoa pelas salas!
Como apela!
E interpela
O futuro!—Como fala
Desse transe que impele
Ao balancear cadenciado
Desses sinos, sinos, sinos!
Dos carrilhões afinados,
Sinos, sinos, sinos, sinos:
Desses sinos que tremulam seus trinados!

3.
Escutai o alarme dos sinos:
De bronze, os sinos!
Que conto de tanto pavor sua turbulência ensina!
No ouvido ferido das Trevas,
Vociferando, gritantes,
De susto não podem falar!
Só sabem guinchar, guinchar
Dissonantes.
Num apelo clamoroso ao fogo todo-poderoso...
Numa irada reprimenda contra o fogo revoltoso,
Saltando alto, mais alto,
Com ânsia desesperada
E propósito obstinado:
Agora—ou nunca, alcançar
A face da lua pálida.
Oh, os sinos, sinos, sinos!
Que afligido conto ensinam
De terror!
Com que rugidos, furor,
Derramam o seu horror
No seio do túrgido ar!
Contudo o ouvido bem sabe,
Pelo estrídulo vibrar,
Como o perigo vaza e sobe...
Sim, o ouvido bem distingue
Pelo altercado ruído,
Por esse uivo diferido,
Que o perigo cresce e se extingue,
Pelo aplacar dos sinos ou por seu irado brado...
Desses sinos...
Sinos, sinos, sinos, sinos:
Desses sinos clamorosos com seu clangor destroçado!

4.
Escutai os dobres dos sinos:
De ferro, os sinos!
Que mundo de ideias tão graves invoca sua monódia!
E na noite sem rumor
Estremecemos de pavor
Ao sentido tão dolente desse tom!
Desse som que se decanta
Da ferrugem das gargantas
Tão rangentes.
E as gentes... ah, as gentes
Que vivem nos campanários
Solitárias,
E que dobrando, dobrando,
A monótona canção,
Se orgulham de estar rolando
A laje no coração...
Não são homem nem mulher...
Nem feras são...
São os Ghouls:
E é seu rei quem dobra os sinos,
E que com eles entoa
O Péan que assim ressoa!
E alegre enfuna o peito
Com esse Péan que ecoa!
Dança ao ritmo, e como troa!
E ao ritmo acerta o rumo,
Marca o tempo com aprumo
Como uma rúnica rima,
Ao Péan que assim ressoa
Desses sinos!
Desvairados realejam
Esses sinos, sinos, sinos...
E, redobrados, arquejam,
Regem tempo com aprumo,
E ele enfuna o peito à loa,
Álacre rima de runa
Dos sinos que vibram, ressoam,
Pulsam sinos, sinos, sinos...
Esses sinos tresloucados...
Sinos, sinos, sinos, sinos:
Sinos que rangem e plangem aos finados.

Edgar Allan Poe, 1848-1849.
Tradução de Margarida Vale de Gato.