29.6.05

Poesia e usura

Decididamente decidido a estragar a digestão ao maior número possível de pessoas que venham aqui, sobretudo depois das sensacionais revelações dos últimos dias, então aí vai mais um insulto à poesia.

Ezra Pound tinha um programa de rádio de propaganda na Itália fascista. Porquê? Porque sinceramente, não acreditando forçosamente em tudo o que Mussolini dizia, adoptava o ponto de vista do artesão medieval, inimigo da usura, do juro.

O ponto comum entre ele e os fascistas era esse: a usura. Os fascistas, repositório de todos os ressentimentos, atacavam o capitalismo pelo lado da finança (usura), enquanto o ajudavam pelo lado da política (se não perceberam, metam explicador). Marinetti vogava alegremente nessas águas, ele que defendia a velocidade, a violência, a guerra, a técnica moderna.

Ezra Pound punha-se numa posição diferente: ele acreditava sinceramente no seu discurso. Ele era de facto um artesão, como o provam as inúmeras traduções-versões que nos legou. Mas a sua teoria não deixava de ser ingénua e manipulável.

Aí vai numa das várias traduções que correm em português (um dia em que me ache mais pachorrento, talvez perprete a minha versão):

Com a Usura



Com a usura nenhum homem tem casa de pedra firme
de blocos bem talhados
e bem lisos
para o desenho os recobrir na face,
com a usura
nenhum homem tem um paraíso pintado na sua igreja

harpes et luthes
nem sítio onde a Virgem receba a anunciação
e onde um feixe de luz jorre da ferida,
com a usura
nenhum homem vê Gonzaga os seus herdeiros e as suas concubinas
nenhum quadro é pintado para durar
ou viver com ele
é pintado mas é para vender,
para vender depressa
com a usura, pecado contra a natureza,
o teu pão é feito cada vez com piores farrapos
o teu pão é seco como o papel,
sem trigo da montanha, sem boa farinha
com a usura o traço torna-se grosseiro
com a usura não há fronteiras
e nenhum homem pode achar um lugar para a sua casa.
0 pedreiro fica longe da sua pedra o tecelão longe do seu ofício.
COM A USURA
a lã não chega aos mercados
os carneiros não ganham lã com a usura
A usura é uma peste, a usura torna romba a agulha nas mãos da virgem
e embaraça os gestos da fiandeira.
Pietro Lombardo não veio pelo caminho da usura.
Duccio não veio pela usura
Nem Pier della Francesca; Zuan Bellin` também não foi pela usura
nem foi com ela que pintaram «La Calumnia».
Não foi pela usura que veio Angelico; nem Ambrogio Praedis,
Nem veio a igreja talhada em pedra assinada: Adamo me fecit.
Não veio pela usura Santa Trófima
Não veio pela usura Santo Hilário,
A usura corrói o cinzel
Ela corrói a arte e o artesão
Ela enrodilha o fio no ofício
Ninguém aprende a bordar a ouro seguindo o modelo dela;
0 azul tem um cancro por causa da usura; o carmesim fica por bordar
A esmeralda não encontra Memling
A usura mata a criança ainda no ventre
Ela corta a carreira aos jovens
Ela leva à cama a paralisia, ela está deitada entre a jovem desposada e o seu esposo.
CONTRA NATURA
Levaram prostitutas a Eleusis
Ao banquete assentam-se cadáveres
A convite da usura.

Ezra Pound

(Tradução de Goulart Nogueira)

2 Comments:

Anonymous Anónimo said...

permita-me, um complemento:

(...)

"A Sra Pound era uma mulher muito bonita, bem educada, talvez com modos um pouco afectados. Incomodava e surpreendia um pouco com os seus pequenos sarcasmos, ou os seus epigramas, aliás, tal como acontecia tantas vezes com o Ezra. O Sr Pound era caloroso, informal, muito gentil. Era aferidor do governo na Casa da Moeda de Filadélfia. Convidou alguns de nós a visitar o santuário. Mostrou-nos ínfimos pesos e medidas, explicou vagamente como se analisava o ouro - " Aqui está", e abriu a pesada porta -parecia a porta de um armário de ferro, e não de um cofre; de qualquer modo estava cheia de barras de ouro - " Aqui está", e as moedas estavam empilhadas em montes certinhos, "façam favor de se servirem, com gargalhas divertidas."
Será que alguém alguma vez notou, lembrou isto, ou sequer sabia disto? Parece-me que o trabalho de Homer Pound para o governo, em Filadélfia, teve um papel extravagante, nos impulsos de Ezra. Usura? Usura. Ezra esteve, a dada altura, ao que parece obcecado com essa palavra. Essas referências nos Cantos foram para mim difíceis de acompanhar. Não quero dizer que Ezra quisesse o ouro para ele. Queria com ele mudar o mundo. Será que alguém pode mudar o mundo com o ouro?

Ouro na cabeça dela e ouro nos seus pés,
E ouro onde se juntam da saia ao revés,
E em um cinto de ouro que o meu amor enfite;
Ah! qu'elle est belle, La Marguerite.

Leu-me William Morris num pomar debaixo das macieiras em flor. - sim, penso que estavam em flor."
...

in " Fim do Tormento
recordando Ezra Pound"
H.D.
edição Assíro & Alvim
trad. Filipe Jarro

2:37 da manhã  
Blogger Rui Manuel Amaral said...

Uma moderna tradução de Pound para português de Portugal era uma grande oferta que nos fazias, Manel.
Há uns tempos, a Assírio anunciou uma nova antologia de poemas do Pound. Mas nunca mais se falou em nada, E os Cantos? Não há uma tradução dos Cantos em português de Portugal.

12:05 da tarde  

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