21.6.05

Época de exames

Desculpem esta intromissão pessoal e sentimental. A minha filha saiu para fazer um exame importante do 12º ano; se o falhar, não entra na universidade, para o curso esquisito que escolheu. A rapariga, nestes últimos dias, nem namora e quase não dorme, desleixou a verve satírica e rebelde, não exige suplementos de mesada, ficou outra, coitadinha. A mãe dela, de tantos nervos, tornou-se insuportável. Eu também. Nesta espera de duas horas que dura o exame, o que é que eu fiz? Acendi uma velinha à Nossa Senhora. Sem ironia. Sou ateu activo e luto sobretudo contra as memórias salazaristas, das quais coloco à cabeça todas as Nossas Senhoras que nos têm drogado. No entanto, acendi uma velinha, e cuspo na cara de quem me acusar de incoerência. Explico: lembro-me dos meus jovens exames e das velinhas que as minhas velhas tias galegas acendiam para que Nossa Senhora me abrisse a «memória» enquanto durava o exame; elas até rezavam, e os meus tios, de cabeça baixa, pisavam o sobrado com mais respeito. Então, como se pode ironizar contra pessoas que, de tanto nos quererem bem, utilizavam todas as armas ao seu alcance, incluindo a velinha, para nos ajudar nos exames? Somos animais? E mais: se a greve dos professores prejudicar o exame da minha filha ou, de qualquer outro modo, lhe aumentar o sofrimento, sou contra a greve dos professores. Em tempo de exames, tornamo-nos sentimentais.

Filipe Guerra

15 Comments:

Anonymous Anónimo said...

"Exmo. Senhor:
Vem por este meio o serviço que me cabe a honra de tutelar informar V.Exa. que sua filha, a despeito do requerimento (1 velinha de estearina superfina, de 1ª qualidade) dirigida a esta repartição, apanhou uma raposa ou seja chumbou no exame a que foi submetida.
Na verdade e concretizando, aproveito para informar que não é com uma velinha que se resolve o diferendo que, de há largo tempo, vem existindo entre V.Exa. e eu (cf. ateísmo impenitente).

Sem mais por ora e remetendo os meus cumprimentos, fico
de V.Exa. atentamente,

Maria Klopas, de Fátima e Ourém, e Samaria

4:18 da tarde  
Blogger Maria Heli said...

Adorei este post. Só isso! Revi-me, revi a época em que fiz exames, mesmo na faculdade, e a minha mãe acendia uma velinha!
Adorei que este seu texto me avivasse essa memória...num gesto, afinal, colectivo!

6:18 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Filipe, esta situação faz-me lembrar uma afirmação do senhor padre Lépido da minha infância, à porta da velha igreja, para aquelas ' suas ovelhas' que considerava tresmalhadas: "vós sois todos muito republicanos, mas na hora do aperto não chamam pelo Afonso Costa!".

Um abraço

Zé Povão

6:30 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Os rituais católicos fazem sempre falta. E são positivos. Toda a gente tem memórias assim belas e delicadas. A poesia destas coisas só os insensíveis a não sentem. Assim como não sentem a santidade da família, que vive mesmo nos aparentemente mais incréus. Um texto adorável e que nos diz isto em que penso tantas vezes: os verdadeiros cristãos nos momentos mais altos ou difíceis da vida, apelam sempre para o Salvador, ou para sua Mãe, pois neles nunca secou o sinal da Fé.
Quantas vezes o tenho dito a paroquianos mais impacientes.
Bem hajam por esta lição de sensibilidade humana!

6:31 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Paróquia de S.Jacinto - Algés. O anterior escrito não vinha completo

6:33 da tarde  
Blogger Nancy Brown said...

Caro Filipe,
Apraz-me ler postes deste género. Não sei porquê mas actualmente vivemos tempos estranhos, as pessoas parece que têm medo das suas pequenas discrepâncias... Eu por mim, tb descrente, há dois anos até fui crismada para baptizar o meu afilhado... Todos nós, felizmente, somos impiedosamente imperfeitos e ainda bem... A humanidade "em perfeição" seria um grande tédio!

6:34 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Oh! Mas segundo o Catecismo reformado de Matteo Vignazzi, adoptado pela Santa Sé, "o cristão e o cristianismo tende para a perfeição".
Logo isto não é ser imperfeito, é caminhar no sentido certo.
Pela minha parte, como azevias pelo Natal, que celebro entusiasticamente. (A quem não saiba, o comer azevias é, de acordo com Jorge Marques Belo, no seu "Usos tradicionais", um simbolismo de comungar).
E porque é que a perfeição seria aborrecida ou monótona? Afinal nunca se atinge!
Chamar-se imperfeição a este excelente post de Filipe Guerra é uma atitude já não direi anti-cristã mas, pelo menos, um pouco injusta.
O que não admira - uma vez que o nome Nancy Brown aponta claramente para alguém que deve ser da religião anglicana ou pelo menos metodista.

7:30 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Sempre he ditto que Portogallo non era il lugare de ateos qui se decya.
En el petto di questos ateos brilla il signale de la pura lux dibina.
Por questas e por queoutras é qui yo nunca, nelos dias del Consiglio, he perdito la feh de una revigoranza de la Santa Eclesia.
Vos benedicto, figlios mios!

7:35 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Claro que não se chamava pelo Afonso Costa! O que não impede que se diga: quem é que queriam que se chamasse depois de séculos de doutrinamento?
E estes escritores e confrades não são ateus: são boas pessoas, ou seja pessoas boas, talentosas e, devido aos males do mundo que não desejam, enragées que tentam lutar contra o esvaziamento que rodeia a sociedade.
Gente bondosa e não perigosa. Por vezes estrilham um pouco mas nada de cuidado.
No fundo, gente de paz que, contra os patifes frios que inçam esta vida, são um passarinho nas bocas das cobras.
Embora, por literatura, façam a parte de mauzões duros e em guerra.
Os perigosos são outros...

8:03 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Recriei um gesto da infância feliz. Estar num exame e saber que ardia uma vela por mim («por acaso» pagã mas que o catolicismo recuperou) fazia-me sentir mais amado do que se a minha família fosse rica e me pagasse a escolaridade num colégio da Suíça. Daí até quererem pôr-me já como braço direito do Bento XVI... Intelligence: perigoso, perigoso é quererem confinar todos os gestos humanos aos desígnios dos deuses.

8:43 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Mas ninguém o quer por como nada, valha-o Deus! O que recria é o acto bom duma pessoa boa. Uma coisa bela que vive em si.
E os deuses não são para aqui chamados, mas peço-lhe que acredite que um intelligence também é um ser humano e por isso às vezes também se comove com actos/textos assim de quem às vezes se diz que é um terrível adversário do mundo livre.
Apesar de tudo, o mundo livre.
Os perigosos são outros, mas esses...e mais não direi.

10:37 da tarde  
Blogger Amélia said...

«E estes escritores e confrades não são ateus: são boas pessoas, ou seja pessoas boas, talentosas e, devido aos males do mundo que não desejam, enragées que tentam lutar contra o esvaziamento que rodeia a sociedade.
Gente bondosa e não perigosa. Por vezes estrilham um pouco mas nada de cuidado».
Eu sou mesmo ateia e, por acaso, não acendo velas a ninguém E sou boa pessoa...(acho eu, mas não deve achar Intelligence....:)- com humor.

11:20 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Nem só os que não são ateus são pessoas boas. Por vezes é ao contrário. Com grande frequência.
E apesar de não ser lógico isso, também sou ateu e por aqui não são poucos.
E a Amélia também é uma pessoa boa. Creia que sei isso.
A bom entendedor/a...

1:24 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Quando o meu sobrinho prestou provas para entrar na faculdade, pela 1º vez acendi muitas velas, apesar de mentais, e andava de coração mirrado até que tm tocou com a boa noticia.Então fui a um bar e acendi 2 velas materiais em estado liquido. Todas as velas me ajudaram a manter o equilibrio emocional.

1:47 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Ah, as velas em estado liquido! Há umas velas escocesas tão espiritualmente iridiscentes que até o pavio vale a pena!...


Zé Povão

3:04 da tarde  

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