6.6.05

Os que andam às aranhas...


Odilon Redon, "The Crying Spider" (pormenor), 1881.

venenosas, ditas tarântulas, os degredados filhos de Eva, os que cheiram mal, os que estão à rasca, os que são pretos em terra de brancos, os que falam com o cão ou com a aranha porque não têm com quem falar, os que vieram de longe para fugir do medo e da morte e encontram nas nossas ruas europeias o medo e a morte, os que ficam a saber o que é mais desprezo, mais indiferença, mais medo e mais morte, os que sonham que bailam, os que bebem até assumir a morte ainda em vida, os que deixam de falar ainda em vida a não ser com uma bela tarântula bela e sorridente como a morte, os que se enroscam num canto para morrer devagar: estas banalidades da vida (hélas!) formam uma peça de teatro de título A Aranha. Autor: Manuel Poppe. Editor corajoso: Veiga Ferreira da Teorema. Fui no sábado ao lançamento, na FNAC do Chiado. Parece-me uma boa peça para palco, e não só para ler no recato do quarto, feita à boa maneira de Tchékhov (sem imitar o russo), mas sabendo criar como ele uma poesia dolorosa a partir da linguagem mais comum. No lançamento, fiquei a saber mais duas ou três coisas de Manuel Poppe: que é irmão do saudoso Lopes Cardoso do velho PS, que ama a Rússia, que em 1975 fazia parte da multidão que, numa praça de Roma, rezou junto ao corpo de Pier Paolo Pasolini assassinado e ultrajado, e que é um grande comunicador: com um nervosismo contido e contagiante, pôs a falar naquele auditório da FNAC cultural não só os tímidos e os discretos mas também um espanhol e um exagerado mas lúcido profeta.

Filipe Guerra