O sonho de Ivan Fiodorovitch
Um excerto do conto "Ivan Fiodorovitch Chponka e a Sua Tia", de "Noites na Granja ao Pé de Dikanka", de Gógol. Um pouco longo, é certo. Mas acreditem que vale a pena.
"Deitou-se mais cedo do que o habitual mas, apesar de todos os seus esforços, nunca mais adormecia. Por fim, o desejado sono, esse tranquilizador universal, visitou-o; mas que sonho lhe trouxe! Ainda nunca tinha sonhado com coisa tão incoerente. Ora girava e barulhava tudo à volta dele, e ele a correr, a correr, sem sentir as pernas... já de forças perdidas... de repente, alguém o agarra pela orelha. "Ah! Quem é?" - "Sou eu, a tua mulher!" - dizia-lhe uma voz, alto e bom som. (...) Sente-se esquisito, ele: não sabe como se aproximar dela, do que falar com ela e, além disso, repara que ela tem cara de ganso. Vira-se involuntariamente para o outro lado e vê outra mulher, também com cara de ganso. Vira-se mais uma vez - lá está uma terceira mulher. Mais uma volta - mais uma mulher. Nisto, sente grande aflição. Precipita-se para o pomar, mas no pomar está muito calor. Tira o chapéu e vê: também dentro do chapéu está uma mulher. O suor cobre-lhe a cara. Mete a mão no bolso para tirar o lenço - no bolso também está uma mulher; tira o algodão do ouvido - também lá está uma mulher... E ele, ora, põe-se a saltar ao pé coxinho, e a titi, a olhar para ele, diz com um ar importante: "Sim, tens que saltar, porque já és um homem casado." Aproxima-se dela, mas a titi já não é a titi, é o campanário. Então, sente que alguém o puxa por uma corda para cima do campanário. "Quem é que me está a puxar?" - pergunta lastimosamente Ivan Fiodorovitch. "Sou eu, a tua mulher, estou a puxar-te porque és um sino." - "Não sou nada o sino, sou Ivan Fiodorovitch!" - grita Ivan Fiodorovitch. "És mesmo o sino" - diz o comandante do regimento de infantaria de P*** que passa ao lado. Ou então, sem mais nem quê, sonhava que a mulher dele não era uma pessoa mas um tecido de lã; que ele, em Moguiliov, vai à loja de um comerciante. "Que pano deseja o senhor? - pergunta o comerciante. - Leve a mulher, é o tecido da última moda! Um tecido de primeira! Agora, toda a gente faz sobrecasacas dele." O comerciante mede e corta a mulher. Ivan Fiodorovitch põe-na debaixo do braço e vai ao alfaiate judeu. "Não - diz o judeu -, esta pano não presta para nada! Ninguém faz sobrecasacas dele..."
Cheio de medo, fora de si, Ivan Fiodorovitch acordou. O suor escorria-lhe pela cara abaixo."
Tradução de Nina Guerra e Filipe Guerra.
Será esta passagem um retrato fiel do próprio Gógol?
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