7.6.05

Morte negra, morte negra

Os leitores deste blogue, correndo o risco de passarem por maricas, exigem poesia. O Manuel Resende já começou (falo disto aqui porque, mais uma vez, não tenho acesso à caixa de comentários), criando dois actos poéticos altamente subversivos: escamoteou um comando de televisão, o que lhe pode valer prisão (passe a rima), comando que, como se sabe, é a coisa mais democrática que existe à face da terra porque permite trair um programa, abandoná-lo, voltar para ele, matá-lo e ressuscitá-lo, e que, sobretudo, elimina a necessidade de crítica (não gostas, muda de canal, não tens nada que dizer mal), demonstra a inutilidade da crítica, a imbecilidade da crítica (não exagero, há por aí muita alma liberal que tem este conceito inteligente bem arreigado lá no fundo!); o outro acto poético altamente subversivo de Manuel Resende foi ter sonhado com uma floresta comestível. Pois bem, caro senhor, não terá êxito: uma tal floresta depressa seria cortada, empacotada, liofilizada, transportada para os hipermercados, comprada, comida e cagada nas retretes multitudinárias. Agora, o meu contributo para dar poesia a este blogue, partindo do princípio de que a poesia não é útil, não se vende, não é linda, não refrigera nada por este tempo quente e seco: sucedeu que, estando eu na Galiza a tratar de uns papéis (quero ser galego), morreu mesmo ao meu lado, num café de velhos, uma velhota obviamente galega, muito enrugada, mulher ainda bonita. Comentários gerais dos sobreviventes: quando era nova, era a moça mais bonita jamais vista. Era um comentário cruel e vingativo: a senhora não só morrera indecentemente à vista de todos como viera lembrar aos da sua idade a morte natural da beleza uns quarenta anos antes. Há poesia nisto? Rosalia de Castro acha que sim, nesta quadrinha que cito de memória:

Morte negra, morte negra,
cura de dores e enganos!:
por que não matas as moças
antes que as matem os anos?

Filipe Guerra