13.6.05

Memórias de um leitor

Num pequeno recanto de uma casa meio encoberta por duas amoreiras, havia naquele tempo uma estante de pinho, tão pequena que nela mal cabiam os livros que continha. Com seis anos feitos havia pouco tempo, eu mal sabia ainda ler. Ia olhando contudo para aquele recanto, enquanto D. Maria Guilhermina tentava avivar a minha atenção com a sua voz calma, que jamais sairá da minha memória.
Alto, com laivos de verde e de castanho, demasiado grande para as minhas mãos, aquele livro seduzia-me. Um dia, à socapa, retirei-o do local onde há muito descansava. Pu-lo sobre a carteira (uma daquelas carteiras que hoje existem...) e sentei-me, a tentar compreendê-lo. Via, em pequenas carreiras, ora um P, ora um M, ora um V, mas as palavras eram ainda tão mágicas quanto a pequena gruta existente entre dois canxos, na encosta virada aos Pomares. D. Maria Guilhermina aproximou-se. Passou a sua mão pelo meu cabelo. Pegou na capa do livro, como quem conduz uma criança pela mão, e ensinou-me a dizer: "O Palhaço Verde".
Só mais tarde soube ler o nome que mais acima se desenhava: Matilde Rosa Araújo. Quando o consegui, surgiu na minha frente uma tela feita de sílabas que foram entrando pelos meus ouvidos, como se fossem a doce voz do vento, sussurrada entre as acácias, os sobreiros e as oliveiras. Tudo começou nesse momento. Uma estranha sinestesia passou a inundar-me. Nela se misturavam o desenho das letras, a música das sílabas e, ao mesmo tempo, um mundo novo que passei a descobrir em todos os recantos da minha aldeia.
Minha mãe (que de há muito ia compondo dentro de mim a essência da poesia nascida na noite dos tempos) um dia lembrou-se de me pegar na mão. De mãos dadas, fomos os dois até ao Rossio. Era uma tarde de sol. Debaixo do plátano, ficámos os dois olhando a curva do cemitério. (No fundo do horizonte, tentava descobrir - sem o saber - o verde do palhaço.) Ouvi, de repente, da boca dos outros companheiros, mais experientes: "Aí vem!". Uma velha carrinha subia com vagar a encosta. Verde, como o palhaço, como a folha rija dos sobreiros. Parou no largo e abriu as portas. Não acreditei. Lá dentro havia livros... Apresentado por minha mãe (leitora assídua durante a adolescência, ali e na casa do ti' Domingos Fernandes), ouvi da boca de um senhor alto e magro, com rosto misterioso: "Parece que gostas de História... Anda cá, há aqui um livro de que vais gostar..." "Quem é este?", perguntei, olhando uma figura solitária que contemplava, numa gravura, meio mundo do alto de um penhasco. "É o Viriato". Levado para casa, foi aquele o primeiro dos tesouros que ao longo de toda a infância me foram emprestando o sr. Faria e o sr. Coimbra. Era sempre com tristeza que os abandonava à sua viagem interminável. Restava-me a tranquilidade de ir guardando na memória palavras e palavras, imagens e imagens, com que fui construindo a arquitectura da minha casa imaginária.
Passaram alguns anos. Cheguei à adolescência rodeado por livros, num vaivém constante entre a Rua da Fonte Nova e os locais sempre distantes em que se resguardavam. Oscar Wilde, Matilde Rosa Araújo, Egito Gonçalves, Jules Verne, Maria Tavares Transmontano, Trindade Coelho (muitos e muitos outros) eram membros de uma galeria pessoal de personagens enigmáticas, estranhas, mas encantadoras.
Certo dia, numa tarde de trovoada, reparei que tinha outros livros em casa. Volumosos alguns, como pedras vivas. Peguei num deles. Tinha um título que falava comigo, habituado às andanças pela serra, descendo a grutas, subindo rochedos, contemplando sozinho a imensidão do mundo: "Folhas Caídas", de Almeida Garrett. Li-o de fio a pavio. No final, respirei, como deve respirar quem recebe um baptismo de imersão. Adormeci (eram seis horas da tarde) e só na manhã seguinte voltei a acordar.
Dias depois escrevi os meus primeiros versos, tão ingénuos e sentimentais que hoje teria pudor de mostrá-los fosse a quem fosse. Nas semanas que se seguiram, li, quase sem parar, o "Há Mais Mundos", de José Régio, a "Mulher de Trinta Anos", do Balzac, "A Mulher Vestida de Branco", de Wilkie Collins...
Nunca mais parei. Nem neste dia - em que releio Cesário Verde e vou saboreando uma biografia de Lou Andreas-Salomé, em que espera por mim o sétimo e último volume de "Em Busca do Tempo Perdido", monumento que me acompanha desde Janeiro de 2004.

Ruy Ventura

2 Comments:

Anonymous Anónimo said...

É só para te dizer que o mesmo monumento me acompanha desde janeiro de 2004 e que entrei já no sétimo volume. Um abraço do amigo Nuno Duarte

10:49 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

É sempre um prazer lê-lo, Ruy. E também muito agradável é deparar com o meu caro Nuno Duarte, a quem endosso o firme abraço.

As suas evocações, Ruy, têm o sêlo de quem ama de facto os livros e as palavras que eles contém. E que sabe que isso depois se repercute em nós e que cria outras palavras e realidades por vezes raras e acrescentadas.
Como no seu caso.

10:22 da manhã  

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