Anna Grigorievna Dostoiévskaia
Foi a segunda mulher de Fiódor Mikhailovitch Dostoiévski, o profeta da Rússia, o antiliterato (como Tolstói), o homem sincero que seguia os movimentos das almas até ao fim, até à descida aos infernos, que nunca mentia, que assumia as suas fraquezas e as dos outros até não aguentar mais, até à abjecção, que punha tudo no papel, ora com um génio luminoso, ora com uma mediocridade comovente. Só uma Anna missionária e amante podia salvá-lo. Anna tinha 20 anos e foi encontrá-lo com 45, viúvo, pobre, doente (no auge da epilepsia), sozinho, rejeitado, enganado, mal pago (ganhava 150 rublos por caderno impresso quando Turguénev e Tolstói ganhavam 500), e mesmo assim era o amparo da família do falecido irmão (e responsável pelas dívidas deixadas por este). Anna, estenógrafa, começou por ajudá-lo a terminar a tempo O Jogador (que ele lhe ditava) e evitar assim que Fiódor Mikhailovitch se enredasse ainda mais na teia que lhe tecia um editor vigarista. Depois casou com ele e foi o seu anjo-da-guarda durante os 14 anos que o escritor ainda viveu. Ajudou-o a escrever os seus livros e deu-lhe os filhos por que ele ansiava. Soube compreender o vício do jogo e o ciúme doentio (ambos compulsivos) do marido. Amava-o infinitamente. «É certo que eu amava infinitamente o meu marido, mas não com aquele amor carnal ou apaixonado que acontece entre esposos da mesma idade; o meu amor era puramente cerebral, ideal. Tratava-se mais da adoração por um homem de grande valor moral diante de quem eu me inclinava. O meu coração enchia-se de enorme piedade por quem tanto havia sofrido, pelo ser privado de alegria e de felicidade que ele era, rejeitado por parentes que lhe deviam tudo, e por quem ele, no entanto, toda a vida mostrou grande bondade.» (Excerto de Memórias, de Anna Grigorievna Dostoiévskaia, publicado muitos anos depois da morte de Dostoiévski, a sair brevemente em tradução portuguesa). Tudo isto, a que tentei dar aqui algum esmero literário (como diria Dostoiévski), disse-o em linguagem de café de praia a um amigo, que me ripostou, à vista dos corpos na areia: «Amor não carnal, adoração, humm... Ainda bem que as memórias dela saíram depois da morte de Dostoiévski. Que homem, entre os 40 e 50 anos, gostaria que uma mulher tivesse pena dele e o amasse desta maneira?» Nós, leitores de Dostoiévski, aqui na praia pejada, é que não temos nada com isso, e em coro deveríamos gritar: obrigados, Anna Grigorievna, por lhe ter deitado a mão amante quando ele estava tão mal que já nem tinha vontade de escrever! Anna Grigorievna Dostoiévskaia morreu em 1918, quase trinta anos depois do marido.
Filipe Guerra
2 Comments:
Pela carinha parece que devia ser boa como o milho. Quem é que a andaria a trancar? Se calhar algum alferes de cavalaria ou um amanuense que nem deviam saber escrever uma porra duma carta. Mas tinham bela moca e isso é kinteressa, foda-se. Fazia ela bem, é o que de cá se leva e se foi boa pró pobre do Dosty...
É rbv e não rvb.
E o amigo não deve ter lido Gogól para falar assim de amanuenses com muita classe. Cartas como deve de ser, arre. Para fazer sonhar uma mulher boa.
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