Um Quixote moderno
O nosso José Saramago tornou-se finalmente útil: escreveu o prefácio para o Don Quijote ilustrado que Hugo Chávez, para fins de alfabetização e iluminação cultural (e quiçá política, de forma indirecta), vai mandar distribuir gratuitamente, a partir de amanhã, por um milhão de venezuelanos! Na nossa fatuidade de pretensos detentores da verdadeira cultura, teremos sem dúvida duas reacções: uma pavloviana, aquela que surge sempre que ouvimos as palavras «Chávez», «Lula» ou «Fidel» e que nos faz salivar uma inteligente baba irónica; outra mais elaborada e racional que vai dizer que Chávez sim senhor, mas provará também, por a mais b, que se trata de um gesto ridículo e megalómano, com evidentes fins políticos, enfim, que vai dizer que é o regresso do Livro Vermelho em forma de Quixote. (Não o digo por suposição, mas por ter lido um debate sobre o assunto no excelente blogue francês sobre livros que se chama La République des Livres, donde tirei esta notícia.) Mas haverá quem se imagine venezuelano, ou tão-só tente compreender com humildade mais uma cultura diferente da nossa, para dizer que se trata de um gesto visionário de libertação, de perfeita identificação simbólica e política de um presidente que, como Quixote contra os moinhos de vento, ousa lutar contra o inelutável?
Filipe Guerra
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