Num dia em que me achei mais moralista
O ódio é que nos move. Mas estou aqui há três horas, rodeado de árvores doentes (uma árvore pode cheirar mal?), bancos sujos e fontes secas, bancários frios na pausa do almoço, mulheres sozinhas (as crianças morreram?), velhos mesquinhos, e, além do ódio que tenho e não confesso, ainda não arranjei um inimigo para odiar. Um emprego arranja-se, uma fortuna ganha-se ou rouba-se, um amigo encontra-se, faz-se, trai-se, procura-se, inclusive por anúncio, o amor idem, só o ódio não tem verbo. Que o amor se volve em ódio, dizem os amantes desavindos desvairados. Que o ódio te vem do berço, ou, se tens Deus, que é de lá que ele te vem, já que o Senhor te dá o bom e o horrendo, diz-se à falta de melhor. O ódio é grande de mais, não cabe no dicionário, é um belo puro-sangue negro, radiactivo e carnívoro que troca as patas no galope como a hiena. É um ódio literário, não posso fugir a certas metáforas, mas ódio, ódio só na guerra. Mas vem da guerra ou antes a provoca? A guerra é imoral, o ódio e a fé são amorais, não dependem de nós. Mas movem o mundo. Não posso fugir a certas metáforas: amor é planta frágil, o ódio tem raízes de eucalipto.
Filipe Guerra
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