"Justine", o insustentável peso do ser
Alexandria. A cidade onde a vida se queima em lume brando. Onde a certeza da morte é sublimada na animalidade melancólica do encontro de corpos. Onde tudo acontece porque tem de acontecer e os cheiros se misturam com os fados, num Oriente em que os ocidentais poisam como pombos à procura de milho.
A cidade onde o spleen é de tal maneira asfixiante que até as paixões homicidas se diluem no tédio insuportável do cair da tarde. A cidade onde o smog de alma afoga os bons e os maus sentimentos.
Justine não pode pedir a Sam que toque outra vez. Porque o Café El-Bab não é o Rick's Café. Como se um amor de Bonnie and Clyde, condenado a morrer com 97 balas, viesse ao seu encontro mais cedo ou mais tarde.
Alexandria. A cidade onde o vício e a virtude se praticam com a mesma naturalidade e as serpentes devoram as maçãs e enrubescem nos rostos com a timidez pacata da alvorada. A cidade onde as serpentes oferecem sestércios às fêmeas e estas riem ou aceitam. Mas nunca se ofendem.
A cidade onde a perfeição e o Inferno tomam uma cerveja à mesa de Fausto, enquanto Goethe se espoja num bordel barato, em que se comem azeitonas de Itália. Mas se tudo o que é em excesso é pecado, o pecado de Alexandria é a conversão do Inferno no mais puro dos quotidianos.
Alexandria. A cidade em que as egípcias velhas se rebolam nos leitos com um anão corcunda que é barbeiro, espião polivalente e arquitecto de defuntos; em que as damas da alta sociedade perdem tardes de bridge para ouvir escritores decadentes a falar de poetas; em que o mais rico cidadão começa por perdoar a licença da mulher, porque tem na alma o mais puro amor; e em que o homem mais feio sabe espantar uma herança de loucura para longe, a golpes de falo no útero das fêmeas que se vendem com a placidez da necessidade e a serenidade das derrotas anunciadas.
E se o mal é o bem pervertido, então não há mal. Por isso, todas as derrotas acabam em bem.
Como um fiacre a passear à beira-mar, devotado ao amor.
E que tal beber uma cerveja no Inferno, Justine? Ou perder o juízo nos infortúnios de um bordel de crianças, enquanto um marujo sujo, como em "Querelle", se desfaz nos abismos de si mesmo?
E deixar deslizar pelos intervalos do mar um beijo que se desfaz nos lábios de um homem?
Imaginem que Justine cai.
Imaginem que Melissa cai.
Cai no torpor de uma dança ordinária de cabaret, numa reles imitação de Salomé, com o rosto cravejado de make-up, enquanto os homens a olham com olhos de quem nunca a viu.
Imaginem que Melissa cai.
Cai na asneira de se deixar cair nas mãos de marinheiros que lhe dão cantáridas.
E que depois de renascer como uma Fénix pode intercambiar a timidez com uma doença venérea benigna, mas irritante, made in Síria, por generosidade aristocrática de Pombal.
"Justine" é escrito como um filósofo constrói o seu sistema: de forma metódica e abarcando os temas verdadeiramente importantes para a Literatura, ou seja, a Vida.
Por isso fala de Morte, de Desejo, de Deus, de Inveja, de Vaidade, de Compulsão, de Beleza, de Amizade, dos Astros, do Mar, da Lua, das Nuvens, do Vento.
"Justine" é, ao mesmo tempo, um romance, um poema, uma aula de filosofia, um desabafo, um exercício de estilo. Com o carimbo de arte maior. Indubitavelmente, como diria Pursewarden.
No fundo, "Justine" é uma mistura de "Viagens na minha terra" (de Garrett), com "Os Maias" (de Eça). Todos nós temos na vida uma Joaninha de olhos verdes, uma enorme e auto-torturante capacidade de amar. E desatamos a correr para o "americano" de forma displicentemente decidida.
Luís Graça, Culturgest, 14/4/2005
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